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Full text of "Paleoethnologia. Antiguidades monumentaes do Algarve tempos prehistoricos"

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ENCADERNAÇÃO 

ALHARES,    L.DA 


R.  Almirante  Pessanha,  11 

LISBOA 


Digitized  by  the  Internet  Archive 

in  2012  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://archive.org/details/paleoethnologi01veig 


ANTIGUIDADES  M0HUM1TAES  DO  ALGARVE 


PALEOETHNOLOGIA 


ANTIGUIDADES  lillfflS  DO  MI 


TEMPOS  PREHISTORICOS 


POR 

SEBASTIÃO  PHILIPPES  MARTINS  ESTACIO  DA  VEIGA 

Sócio  correspondente  da  academia  real  das  sciencias 

e  da  sociedade  de  geographia  de  Lisboa,  do  instituto  e  da  sociedade  broteriana  de  Coimbra, 

do  imperial  instituto  archeologico  germânico  de  Roma,  da  sociedade  franceza 

de  archeologia,  da  real  academia  da  historia  de  Madrid,  da  sociedade  económica  de  Málaga, 

da  academia  de  archeologia  da  Bélgica, 

do  instituto  archpologico  e  geographico  pernambucano,  collector 

e  fundador  do  museu  archeologico  do  Algarve 


VOLUME  I 


LISBOA 

IMPRENSA  NACIONAL 

1886 


Cu 


11 


1 1 


;%    \ 


ADVERTÊNCIA 


No  programma  geral  d'esta  obra  estavam  destinados  todos 
os  assumptos  concernentes  ao  período  neolithico  para  consti- 
tuírem o  primeiro  volume,  suppondo  que  não  excederiam  o  nu- 
mero de  paginas  que  cada  livro  deve  ter,  em  vista  da  terceira 
condição1  do  contracto  que  o  governo  commigo  celebrou  para  eu 
descrever  em  cinco  ou  seis  volumes  as  Antiguidades  monumentaes 
do  Algarve;  e,  com  effeito,  se  me  houvesse  limitado  aos  desco- 
brimentos provenientes  do  reconhecimento  que  me  foi  incum- 
bido para  a  elaboração  da  carta  archeologica  d'aquella  província, 
o  calculo  não  falharia. 

Succedendo  porém  haver  noticia  de  terem  posteriormente 
apparecido  outras  muitas  antiguidades,  que  deixavam  perceber 
a  existência  de  importantes  estações  não  ainda  conhecidas,  de- 
terminou o  governo  que  fossem  estudadas,  a  fim  de  serem  sym- 
bolisadas  na  carta  archeologica  e  descriptas  na  obra  contractada. 

Feita  uma  exploração  complementar,  ganhou  a  carta  mais 
cincoenta  e  sete  logares  com  antiguidades  prehistoricas ;  mas 
ainda  assim  pensei  que  accresceníando  umas  cem  paginas  ás 
que  o«  volume  devera  conter,  poderia  abrangel-as,  e  com  este 
intuito  começou  o  trabalho  da  composição. 


1  «Condição  3.a  Cada  volume  não  conterá  menos  de  trezentas  paginas  de  texto  de 
corpo  12  n.°  2,  entrelinhado,  formato  8.°  lranccz  grande,  a  fora  as  estampas  e  desenhos 
correspondentes.» 


VI 


Quando,  porém,  estando  já  impressas  mais  de  quatrocentas 
paginas,  se  calculou  faltarem  ainda  umas  duzentas,  e  que  nu- 
merosas estampas  tinham  de  ser  addicionadas,  notou-se  que  o 
livro  attingiria  extraordinária  grossura,  de  que  resultariam  di- 
versos e  simultâneos  inconvenientes ;  pois  ficaria  assim  em  des- 
harmoniosa  desproporção  com  o  formato;  a  brochura  seria  assaz 
trabalhosa,  demorada,  de  muito  despendio  e  pouco  consistente; 
subordinado  a  uma  taxa  bastante  elevada,  que  de  certo  impedi- 
ria o  consumo;  seria  sensivelmente  incommodo  para  a  leitura; 
estragar-se-hia  com  facilidade,  obrigando  logo  o  possuidor  á  in- 
evitável despeza  da  encadernação;  e  o  peso,  que  ficaria  tendo, 
causaria  muito  embaraço  e  avultado  custo  para  poder  ser  trans- 
portado por  via  postal. 

Todas  estas  considerações,  praticamente  suscitadas  pelo  des- 
envolvimento do  livro,  logo  que  chegou  aos  dois  terços  da  sua 
composição  typographica,  me  obrigaram  a  reduzil-o,  sem  com- 
tudo  interromper  ou  alterar  a  numeração  ordinal  dos  capitulos  e 
da  paginação,  emquanto  não  chegasse  ao  seu  termo  final  o  estudo 
respectivo  a  todos  os  característicos  pertencentes  ao  período 
neolithico,  os  quacs  forçadamente  tiveram  de  ser  repartidos,  e 
concluídos  no  segundo  volume,  já  em  grande  parte  impresso 
para  em  breve  tempo  ser  levado  á  publicidade. 


Nenhum  prefacio,  poucas  explicações  e  vários  agradecimentos 


O  prefacio,  que  competia  a  este  livro,  ja  não  pode  ler  ca- 
bimento, porque  foi  escripto  numa  conjunctura  em  que  algumas 
illusões  animavam  ainda  os  intuitos  verdadeiramente  bons  e  ge- 
nerosos com  que  desejei  empenhar  os  meus  mais  decididos  esforços 
para  firmar  um  programma,  que,  em  razão  da  sua  proficuidade, 
regesse  methodicamente  o  descobrimento,  o  estudo  e  a  represen- 
tação do  riquíssimo  thesouro,  sempre  mal  comprehendido  e  mal 
estimado,  das  mui  complexas  antiguidades  paleoethnologicas  e 
históricas,  que  todos  os  entendimentos  illustrados  deviam  presu- 
mir que  existisse  largamente  ramificado  em  todo  este  reino;  e, 
com  effeito,  aquellas  illusões,  emquanto  não  fui  compellido  a 
transferir  o  museu  archeologico  do  Algarve  para  uma  apertada 
e  sombria  arrecadação  da  academia  de  bellas  artes,  não  deixa- 
vam de  ser  alimentadas  com  algum  fundamento,  visto  que  até 
então  nunca  me  tinham  sido  recusados  os  auxílios  de  que  care- 
cia aquella  nascente  e  mui  esperançosa  instituição. 

As  causas,  porém,  que  promoveram  o  encerramento  do  mu- 
seu, produziram  outros  adversos  resultados,  que  aqui  me  abste- 
nho de  relatar,  comquanto  indispensavelmente  julgue  dever 
declarar,  que  o  retardamento  nesta  publicação  não  me  pode  ser 
attribuido,  porque  tendo  o  governo  contractado  a  primeira  edição 
da  minha  obra  em  cinco  ou  seis  volumes,  e  obrigando-se  por 


VIII 


uma  cscriplura  de  contracto  a  fornecer  para  cada  um  as  respe- 
ctivas estampas,  somente  em  30  de  março  de  1886  acabei  de 
receber  as  que  havia  muito  tempo  impediam  a  impressão  d'este 
primeiro  tomo;  o  que  me  levou,  para  as  intercalar  na  ordem 
geral  dos  assumptos,  a  alterar  em  grande  parte  o  manuscripto 
que  desde  agosto  de  1885,  embora  por  este  motivo  forçadamente 
incompleto,  já  tinha  apresentado;  e  se  a  composição  não  começou 
logo,  mas  muitos  mezes  depois,  foi  por  haver  numerosos  traba- 
lhos accumulados  nas  oíficinas  typographicas  da  imprensa  na- 
cional, e  não  por  falta  de  texto  preparado ;  pois  até  ao  fim  do 
quarto  capitulo  não  havia  estampas. 

Dadas  estas  explicações  a  todas  as  pessoas  que  vagamente 
me  tenham  julgado  em  falta,  reservo  as  que  por  emquanto  ficam 
em  silencio  para  um  escripto  de  outra  Índole,  se  a  tanto  for  obri- 
gado. 

Antes  porém  de  dar  logar  n'este  livro  ao  primeiro  capitulo, 
cumpre-me  registrar  algumas  palavras  de  respeitosa  lembrança, 
de  que  me  confesso  devedor  a  muitas  pessoas  ainda  existentes  e 
á  memoria  de  outras  já  fallecidas,  que  .me  honraram  com  o  seu 
efficaz  adjulorio  desde  que  a  meu  cargo  tomei  o  estudo  geral  das 
antiguidades  do  Algarve. 

N'estes  termos  e  com  estes  intuitos,  cabe  a  primasia  ao  go- 
verno que  em  1877,  certamente  por  informações  ou  conceitos  de 
que  eu  não  era  merecedor,  me  preferiu  entre  os  sócios  da  aca- 
demia real  das  sciencias  de  Lisboa  para  a  elaboração  da  carta 
archeologica  do  Algarve,  havendo  na  academia  sapientes  archeo- 
logos,  que  muito  melhor  teriam  sabido  corresponder  a  um  tão 
difficil  emprehendimcnto. 

A  este  respeito  posso  afoulameníe  declarar,  que  não  me  of- 
fereci,  não  me  fiz- lembrado,  e  que  não  foi  sem  grande  hesitação 
que  annui  ao  convite  do  governo,  como  se  me  fora  dado  presa- 
giar  a  impagável  perda  da  minha  anterior  traquillidade  e  as  ruí- 
nas que  um  mesquinho  antagonismo  desde  então  me  foi  prepa- 
rando. 

Ao  actual  sr.  ministro  do  reino,  que,  sendo-o  igualmente 


IX 


em  1880,  se  dignou  incumbir-mc  da  organisação  do  museu  ar- 
cheologico  do  Algarve,  porque  o  julgou  ião  indispensável  para  a 
comprovação  authentica  da  caria  archeologica,  como  de  publica 
utilidade  scientifica,  envio  o  meu  mais  respeitoso  agradecimento, 
por  baver-me  confiado  a  direcção  de  um  serviço  sobremaneira 
importante  e  honroso,  sentindo  porém  que  s.  ex.a  não  tenha 
ainda  podido  examinar  a  verdadeira  c  assaz  injustificável  causa 
que  originou  o  encerramento  d'esse  museu,  para  o  restaurar 
agora,  que  pode  ser  em  maior  escala  ampliado  e  enriquecido 
com  preciosas  collecções  ultimamente  organisadas,  e  mantel-o 
com  os  mesmos  fundamentos  de  reconhecido  préstimo  que  o  le- 
varam a  determinar  a  sua  fundação. 

Com  mui  valiosa  cooperação  concorreu  o  sr.  conselheiro 
António  Maria  de  Amorim,  director  geral  de  instrucção  publica, 
tanto  para  eu  poder  levar  a  effeito  os  trabalhos  respectivos  a 
carta  archeologica,  como  para  os  da  organisação  do  museu,  e 
ainda  posteriormente  para  os  da  exploração  complementar  que 
fiz  em  1882. 

Ficando  pois  todos  estes  serviços,  e  bem  assim  os  que  são 
relativos  á  publicação  d'esta  obra,  subordinados  á  sua  superior 
direcção,  cabe-me  o  dever  de  manifestar-lhe  o  meu  reconheci- 
mento pela  benevolência  com  que  os  tem  auxiliado,  esperando 
porém  que  queira  empregar  a  sua  mais  vigorosa  iniciativa,  como 
ao  seu  cargo  compete,  para  qu^  o  museu  archeologico  do  Al- 
garve, onde  estão  depositadas  as  minhas  antigas  collecções  e  de- 
vem estar  outras  muitas  ainda  ignoradas,  seja  promptamente 
reorganisado,  sem  dependência  de  pretenciosas  intrusões,  a  fim 
de  que  readquira  o  valor  scientifico,  que  ninguém  lhe  pode  ne- 
gar, e  a^consideração  com  que  taes  instituições  estão  sendo  alta- 
mente estimadas  e  mantidas  nos  paizes  de  mais  adiantada  civili- 
sação. 

Foi  assaz  melindrosa  a  situação  em  que  me  achei  no  Algar- 
ve, tendo  a  meu  cargo  reconhecer  as  antiguidades  que  deviam 
ser  symbolisadas  na  carta  archeologica,  pela  maior  parte  concen- 
tradas em  terrenos  de  dominio  particular.  Era  pois  mister  solici- 


X 


lar  licença  aos  proprietários  para  por  meio  de  excavações  chegar 
a  classiíical-as. 

Numerosas  licenças  foram  pedidas  e  nenhuma  recusada. 
Não  lendo  o  direito  de  lançar  mão  dos  monumentos  descober- 
tos em  propriedade  alheia,  mas  receando  que  ficassem  dispersos 
e  em  risco  inevitável  de  se  perderem,  a  todos  os  proprietários 
propuz  oficiosamente  tomar  eu  conta  dos  que  fossem  achados 
para  com  elles  organisar  um  museu,  que  ficasse  representando 
as  antiguidades  da  nossa  bella  província.  A  idéa  agradou  geral- 
mente, porque  era  o  inicio  fundamental  de  uma  instituição  útil 
e  honrosa  para  o  Algarve. 

Alguns  parentes  e  amigos,  querendo  porém  levar  os  seus 
obséquios  a  um  maior  grau  de  primor,  preferiram  offerecer  para 
as  minhas  collecções  particulares  numerosos  monumentos  e  arte- 
factos que  tinham  antecedentemente  encontrado  nos  seus  traba- 
lhos ruraes,  e  d'este  modo,  assim  como  comprando  todos  os  obje- 
ctos antigos  que  me  eram  apresentados,  consegui  dar  ás  minhas 
antigas  collecções  grande  desenvolvimento. 

Ricos  e  pobres  me  receberam  sempre  com  a  mais  mimosa 
affabilidade,  e  por  isso  não  acho  termos  bastante  significativos 
para  testemunhar  a  esses  meus  prezadíssimos  conterrâneos  os 
agradecimentos  de  que  me  considero  devedor  á  bizarria  e  cava- 
lheirosa  franqueza  com  que  se  dignaram  tratar-me.  A  todos  fiquei 
devendo  mui(o  favor,  e  se  não  aggrego  aqui  a  extensa  relação  de 
tantos  nomes  sympathicos,  é  porque  a  tenho  n'esta  occasião  a 
muita  distancia  das  minhas  vistas.  Nos  diversos  capítulos  d'este 
livro  citarei  porém  vários  nomes,  que  julgo  associados  a  este  tra- 
balho pela  elevada  significação  dos  serviços  auxiliares  que  repre- 
sentam. 

Não  posso  deixar  em  esquecimento  as  attenções  e  a  coadju- 
vação que  encontrei  em  todas  as  auetoridades  nas  diversas  occa- 
siões  em  que  necessitei  recorrer  á  sua  intervenção,  assim  como 
os  espontâneos  obséquios  com  que  numerosas  pessoas  particula- 
res se  dignaram  receber-me  em  varias  terras  do  meu  transito. 

Desde  o  começo  dos  trabalhos  da  exploração  até  uma  data 


XI 


posterior  á  do  encerramento  do  museu  archeologico  do  Algarve, 
alguns  periódicos  políticos  e  litlerarios  quizeram  dislinguir-me 
com  a  sua  benevolência,  engrandecendo  os  meus  modestos  ser- 
viços. 

Longe  de  poder  corresponder  condignamente  a  esses  bene- 
méritos do  progresso,  porque  nunca  chegam  a  ser  sufficientemente 
retribuídas  estas  dividas  bonrosissimas,  dividas  que  crescem 
como  decorrer  dos  tempos,  sendo  animadoras  companheiras  da 
vida  e  títulos  que  sempre  ficam  ennobrecendo  o  devedor,  compe- 
te-me  comtudo,  endereçar  aos  auetores  de  tantos  conceitos  pri- 
morosos, embora  immerecidos,  o  meu  mais  confraternal  protesto 
de  grato  reconhecimento,  deixando  aqui  estas  poucas  palavras 
para  o  manterem  e  memorarem. 

Em  igual  obrigação  me  julgo  também  para  com  alguns  sábios 
estrangeiros,  signatários  de  valiosos  escriptos,  em  que  o  museu  do 
Algarve  e  o  meu  humilde  nome  ficaram  lembrados.  Refiro-me  prin- 
cipalmente aos  srs.  Virchow,  Cartailhac,  de  Laurière,  de  Ceuleneer 
e  Henri  Martin,  auetores  dos  relatórios  respectivos  aos  trabalhos 
do  congresso  de  anthropologia  e  de  archeologia  prehistorica,  cele- 
brado em  Lisboa  no  mez  de  setembro  de  1880,  e  bem  assim  aos 
preciosos  escriptos,  que  o  dr.  Emilio  Hiibner  tem  publicado  rela- 
tivamente aos  monumentos  com  que  organisei  a  secção  epigra- 
phica. 

Ás  pessoas  que  não  visitaram  o  museu  e  áquellas  que,  podendo 
e  devendo  promover  a  sua  reorganisação,  agora  muito  mais  am- 
pla, o  toem  deixado  ha  tantos  annos  em  lamentável  abandono, 
seja-me  permittido  solicitar  a  leitura  d'esses  relatórios,  não  para 
que  tomem  em  consideração  os  mal  cabidos  louvores  de  que  fiquei 
devedor  á  cortezia  desses  respeitáveis  cultores  e  propagadores 
da  sciencia,  mas  para  que  não  levem  a  sua  negligencia  até  o 
ponto  de  desprezarem  o  único  museu  que  em  Portugal  foi  metho- 
dicamente  organisado  para  representar  por  epochas  distinctas  e 
em  ordem  geographica  as  antiguidades  de  uma  província  inteira. 
Dando  pois  o  maior  apreço  a  esses  títulos  de  subida  importância 
com  que  ficou  memorado  o  museu  por  mim  instituído,  compete-me 


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neste  logar  agradecel-os  a  esses  sábios  distinetissimos,  que  tanto 
me  têem  honrado. 

Ao  sr.  Cartailhac  devo  ainda  muito  mais,  porque,  parecendo 
não  ter  julgado  sufíicientes  os  benévolos  louvores  com  que  me 
havia  distinguido  no  relatório  que  dirigiu  ao  ministério  de  in- 
strucção  publica  de  França,  quiz  de  novo  confirmar  e  desenvolver 
as  suas  anteriores  asserções  no  esplendido  livro  intitulado  Les 
ages  préhistoriques  de  ÍEspagne  et  du  Portugal,  onde  representa, 
descreve  e  recommenda  numerosos  caracteristicos  das  antiguida- 
des paleoethnologicas  mais  typicas  do  museu  do  Algarve,  con- 
trastando por  este  modo  com  o  systematico  desfavor  dos  que 
deviam  engrandecer,  em  vez  de  amesquinhar,  a  incontestável 
significação  scientifica  d'aquelle  conjuncto  de  padrões  monumen- 
taes. 

Envio  portanto  ao  sr.  Cartailhac  as  affirmações  do  meu  mais 
expressivo  agradecimento. 

Em  vários  capítulos  d'este  livro  serei  mui  gostosamente  obri- 
gado a  referir-me  aos  serviços  com  que  fui  auxiliado  pelo  meu 
mui  presladio  conterrâneo  o  sr.  Joaquim  José  Júdice  dos  Santos, 
mas  não  é  demasiado  lembral-os  desde  já ! 

Logo  que  o  governo  me  incumbiu  de  organisar  o  museu,  o 
sr.  Júdice  dos  Sanios,  a  meu  convite,  enviou-me  immedialamente 
as  suas  famosas  collecções  de  instrumentos  prehistoricos,  acom- 
panhadas de  monumentos  e  numerosos  objectos  caracteristicos 
de  varias  nacionalidades  históricas,  que  durante  muitos  annos 
tinha  colligido  no  Algarve;  com  essas  collecções,  methodicamente 
distribuídas,  representei  muitos  logares  indicados  na  carta  ar- 
cheologica  e  augmenlei  os  grupos  destinados  a  comprovação  das 
antiguidades  de  outros  ainda  necessitados  de  bons  exemplares. 

Emquanto  o  museu  esteve  aberto  ao  publico,  o  sr.  Júdice 
dos  Santos  reforçou  as  suas  collecções,  enviando-me  os  objectos 
que  ia  adquirindo,  e  somente  retirou  tudo,  também  a  meu  pe- 
dido, na  occasião  em  que  o  museu  foi  transferido  e  arrecadado 
a  instancias  do  inspector  da  academia  de  bellas  artes  sob  o  pre- 
texto de  carecer  do  espaço  que  oceupava! 


XIII 


Esla  prova  de  confiança  com  que  o  sr.  Júdice  dos  Santos 
quiz  distinguir-me,  não  posso  eu  deixar  de  lembrar  com  muita 
consideração,  assim  como  o  espontâneo  offerecimento  que  me  fez 
num  artigo  publicado  no  Districto  de  Faro,  de  poder  de  novo 
contar  com  as  suas  collecções  logo  que  se  trate  da  reorganisação 
do  museu. 

Comquanto  por  vezes  haja  de  referir-me  n'este  livro  a  outros 
bons  conterrâneos,  a  quem  fiquei  devedor  de  importantes  obsé- 
quios, cumpre-me  deixar  já  aqui  indicados  os  nomes  dos  que 
mais  contribuíram  para  o  desenvolvimento  das  minhas  collecções 
e  com  maior  pecúlio  para  a  organisação  do  museu. 

Refiro-me  aos  cavalheiros,  meus  distinctos  amigos,  os  srs. 
Manuel  José  de  Sarrea  Tavares  Garfias  e  Torres  (de  Portimão), 
João  Lúcio  Pereira  (de  Olhão),  Sebastião  Fernandes  Estacio  da 
Veiga  (de  Tavira),  António  José  Nunes  da  Gloria,  prior  de  Ben- 
safrim,  e  José  da  Costa  Serrão,  administrador  do  concelho  de 
Aljezur. 

Já  não  posso  directamente  agradecer  á  ex.ma  sr.a  D.  Maria  do 
Carmo  Estacio  da  Veiga  eTello  uma  selecta  collecção  de  antigui- 
dades históricas  que  reuniu  na  quinta  da  Torre  de  Ares,  nem  ao 
sr.  Francisco  Simão  da  Cunha  a  collecção,  que  me  legou,  de  excel- 
lentes  objectos  antigos,  descobertos  na  sua  quinta  do  Arroio, 
perto  de  Tavira,  porque  aos  que  cessaram  de  existir,  só  me  é 
licito  registrar  aqui  um  preito  de  respeitosa  homenagem  em  sua 
memoria. 

Compete-me  também  especialisar  o  nome  do  sr.  António  de 
Paulo  Serpa,  hábil  empregado  na  direcção  das  obras  publicas  do 
districto  de  Faro,  pela  intelligencia  e  acerto  com  que  desempe- 
nhou todos  os  trabalhos  de  que  o  incumbi  entre  Alcoutim  e  Al- 
bufeira, como  bem  o  exemplificam  as  plantas  que  levantou  e 
sobre  todas  as  das  minas  de  Ossonoba,  e  bem  assim  pela  zelosa 
circumspecção  com  que  dirigiu  o  serviço  da  contabilidade,  mui 
intimamente  aggregado  ao  da  fiscalisação  das  explorações. 

Para  os  trabalhos  de  plantas  e  desenhos  muito  concorreu 
igualmente  o  sr.  João  Tavares  Bello,  a  cjuem  confiei  a  direcção 


XIV 

dcf  desenho  das  estampas  que  no  museu  estão  coordenadas  em 
pasla  reservada;  e  porque  Irato  de  recordar-mc  dos  homens  mais 
prestadios  que  me  acompanharam  nas  minhas  Ímprobas  excur- 
sões, não  estranhem  os  meus  leitores,  que  entre  tantos  nomes  dis- 
tinctos,  inclua  o  de  um  pobre  marítimo  de  Faro,  José  Viegas, 
porque  foi  elle  o  descobridor  dos  jazigos  da  idade  do  bronze 
no  Monte  da  Zambujeira,  perto  de  Castro  Marim,  um  dos  mais 
vigilantes  apontadores  dos  meus  trabalhos,  e  activo  empre- 
gado de  inexcedivel  probidade;  o  que  me  deixou  praticamente 
mais  um  exemplo  de  que  a  honra  portugueza  é  ainda  um  dos 
mais  immaculados  brazões  da  classe  popular  d'esta  nação. 

Não  posso  deixar  em  esquecimento  os  serviços  com  que  me 
auxiliou  o  sr.  João  Nunes  Faria,  canteiro  que  reside  na  freguezia 
de  Santa  Barbara  de  Nexe,  a  quem  incumbi  o  descobrimento  e 
compra  de  todos  os  objectos  antigos  que  podesse  adquirir,  con- 
fiando na  sua  intelligente  actividade  e  no  conhecimento  que  tinha 
de  todo  o  território  da  província.  Foram  muitos  os  logares  com 
antiguidades  que  descobriu  e  numerosas  as  suas  acquisições,  mas 
as  que  obteve  por  obsequio  de  amigos  e  conhecidos,  assim  mesmo 
m'as  transmittiu,  não  me  permittindo  a  minima  retribuição, 

Os  monumentos  epigraphicos  da  Fonte  de  Apra,  da  Silveira 
e  do  Colmeal,  assim  como  diversos  objectos,  que  em  seus  logares 
serão  descriptos,  são  offerecimentos  seus  para  as  minhas  colle- 
cções.  Comprazo-me  pois  de  poder  memorar  n'estes  termos  a 
honradez  e  o  préstimo  de  um  modesto  operário.  Outros  similhan- 
tes  serviços  me  fez  o  sr.  António  Marcellino  Madeira,  descobrindo 
muitos  logares  com  apreciáveis  antiguidades  na  freguezia  de  Ca- 
cella,  onde  vive  modestamente  do  trabalho  da  sua  lavoura,  e 
adquirindo  para  as  minhas  collecções  excellentes  objectos  antigos 
que  existiam  esparsos  em  poder  de  ignaros  possuidores. 

Em  alguns  museus  de  Lisboa  achei  auxílios  mui  valiosos. 

No  museu  zoológico  da  escola  polytechnica  francamente  me 
permittiu  o  sr.  conselheiro  Barbosa  du  Bocage  os  estudos  que 
precisei  fazer,  e  no  museu  mineralógico  da  mesma  escola,  onde 
me  foi  mister  proceder  a  classificação  de  vários  exemplares  pa- 


XY 

leontologicos  e  de  alguns  instrumentos  do  pedra  de  mui  difficil 
reconhecimento  apparente,  encontrei  sempre  os  mais  profícuos 
auxílios  no  seu  sábio  director,  o  sr.  conselheiro  Pereira  da 
Gosta,  e  no  meritissimo  naturalista  adjunto,  engenheiro  de  mi- 
nas, o  sr.  Jacintho  Pedro  Gomes,  a  quem  a  sciencia  e  aquella 
nobilíssima  escola  devem  já  mui  importantes  serviços. 

No  museu  da  secção  geológica  lambem  o  seu  distincto  dire- 
ctor, o  sr.  Nery  Delgado,  auclor  de  preciosas  publicações  scien- 
ti ficas,  me  permiltiu  observar  os  interessantes  característicos  pa- 
leoethnologicos  alli  grupados  sob  a  epigraphe  de  cada  uma  das 
estações  exploradas,  e  tomei  varias  notas,  que  hão  de  ver-se  des- 
envolvidas em  alguns  capítulos  d'esta  obra,  sendo-me  fornecidos 
apreciáveis  esclarecimentos  pelo  sábio  professor  da  universidade 
de  Zurich,  o  sr.  Paulo  Choffat,  a  quem  este  paiz  deve  estudos  e 
publicações  da  mais  elevada  importância  scientifica,  e  pelo  mui 
festejado  anthropologista,  o  sr.  F.  de  Paula  e  Oliveira,  ao  passo 
que  o  insigne  mineralogista,  o  sr.  Alfredo  Bensaude,  procedia 
com  delicada  precisão  á  analyse  chimica  de  alguns  dos  meus 
instrumentos  de  pedra,  que  á  simples  vista  ninguém  poderia  clas- 
sificar. 

No  museu  do  Carmo  permittiu-me  o  seu  presidente  e  funda- 
dor, o  sr.  Narciso  da  Silva,  que  copiasse  três  placas  de  schisto 
gravadas,  e  de  outras  placas  similhantes,  existentes  no  museu 
de  Évora,  me  mandou  excellentes  copias  o  sr.  Gabriel  Pereira, 
erudito  archeologo,  tão  conhecido  e  estimado  no  paiz,  como  bem 
considerado  no  conceito  de  sábios  estrangeiros. 

Os  apreciáveis  resultados  de  valiosíssimos  estudos  anthropo- 
logicos  com  que  o  sr.  dr.  Francisco  Ferraz  de  Macedo  muito  me 
auxiliou,  vão  enumerados  num  capitulo  do  segundo  volume. 

Finalmente,  um  outro  serviço  importantíssimo,  de  que  carece 
o  terceiro  volume  d'esta  obra,  embora  não  me  fosse  ainda  confiado, 
julgo  poder  esperar  do  meu  illustradissimo  conterrâneo,  o  sr.  João 
Bonança,  auetor  de  uma  obra  de  grandioso  theor  que  vae  come- 
çar a  ser  impressa  sob  o  titulo  de  « Historia  da  Luzitania  e  da 
Ibéria»,  com  tão  extraordinária  complexidade  de  assumptos  alta- 


XVI 

mente  scientificos  e  litterarios.  que  me  faz  anciosamente  desejar 
a  sua  publicidade.-  Refiro-me  á  interpretação  dos  celebre^  monu- 
mentos da  necropole  da  Fonte  Velha  de  Bensafrim  com  inscri- 
pções  'gravadas  em  caracteres  paleographicos  peninsulares,  que 
até  hoje  ainda  ninguém  tinha  decifrado,  mas  cujo  alphabeto  e  pro- 
cessos de  applicação  á  leitura  d'esses  venerandos  padrões  da  pre- 
historia  da  península  o  sr.  João  Bonança  affirma  ter  descoberto 
á  custa  de  muitos  annos  de  aturado  estudo  e  de  uma  perseve- 
rança inabalável. 

D'este  modo,  aquelles  monumentos,  que  depositei  no  museu 
do  Algarve,  assim  como  toda  a  nummaria  celtiberica,  as  rochas 
in  situ  e  os  artefactos  que  restam  com  taes  legendas  até  agora 
mysteriosas,  readquirirão  a  rediviva  expressão  de  uma  linguagem 
de  ha  muito  emmudecida,  que  foi  fallada  e  ficou  escripta  n'esta 
ultima  plaga  do  Occidente  desde  tempos  remotíssimos,  e  passa- 
rão a  ser  os  mais  authenticos  documentos  históricos,  geographi- 
cos,  numismáticos  e  linguisticos,  d'essas  civilisações  quasi  igno- 
radas; e  por  isso  aqui  anlicipo  os  tributos  de  admiração,  que 
possam  ser  devidos  a  um  tão  corajoso  operário  do  progresso. 

Ficam  reservados  muitos  mais  nomes  para  serem  inscriptos 
noutras  paginas d'esta  obra,  em  que  o  meu,  de  todo  o  ponto  hu- 
milde, melhor  fora  que  houvesse  sido  substituído  por  algum  de 
mais  abonada  idoneidade. 


SUMMARIOS 


1  —  As  cartas  archeologicas  e  a  sua  significação. — Conveniência  de  serem  di- 
vididas em  cartas  paleoethnologicas  ou  de  archeologia  prehistorica,  em 
cartas  de  archeologia  histórica  e  em  cartas  monographicas  especiacs, 
tanto  de  archeologia  prehistorica,  como  de  archeologia  histórica.  —  Car- 
tas que  podem  servir-lhes  de  base. —Processo  mais  seguro  para  a 
sua  elaboração.— Indispensável  classificação  e  ordenação  dos  critérios 
locaes  que  devem  representar.  —  Utilidade  e  deducçòes  que  se  derivam 
(Testas  cartas.  —  Citam-se  as  que  já  estavam  publicadas  quando  teve  prin- 
cipio a  do  Algarve,  muitas  que  em  seguida  foram  tendo  publicidade  e 
algumas  que  estão  sendo  coordenadas.  —  Legenda  internacional  que  ficou 
determinada  para  as  cartas  paleoethnologicas  ou  prehistoricas  em  substi- 
tuição dos  anteriores  symbolos  arbitrários  de  convenção. — É  esta  legenda 
internacional  empregada  pela  primeira  vez  em  Portugal  na  carta  prehi- 
storica do  Algarve.  —  Occorrencias  que  retardaram  a  publicação  d'esta 
carta.  —  Como  devem  ser  comprovadas  estas  cartas  e  como  o  foi  em  1880 
a  do  Algarve? — Prevenções  respectivas  á  carta  chorographica  que  a  esta 
serviu  de  base. — Elementos  geographicos  existentes  nos  outros  paizes  para 
este  género  de  trabalhos. — Desenvolvimento  que  teve  esta  carta  prehisto- 
rica após  os  resultados  práticos  de  uma  exploração  complementar  effeituada 
em  1882.  —  Mostra-se  que  com  a  publicação  d'esta  carta,  dos  dois  pri- 
meiros livros  que  representam  e  descrevem  as  antiguidades  prehistoricas 
que  symbolisa  e  com  a  reorganisação  scientifica  do  museu  archeologico 
do  Algarve,  fica  estabelecido  o  systema  a  que  deve  ser  subordinado  o  es- 
tudo e  a  representação  das  antiguidades  prehistoricas  e  históricas  do  terri- 
tório nacional .  —  Iniciativa  do  auclor,  levada  a  vários  congressos  estrangei- 
ros para  o  regulamento  definitivo  dos  signaesde  convenção  internacional, 
que  deve  ser  adoptado  nas  cartas  de  archeologia  histórica.  — Instrucçòes 
que  acerca  d'estas  cartas  devem  ter-se  em  vista.  —  Observem-se  na  carta 
prehistorica  os  signaes,  referentes  ás  idades  que  representa,  o  ináice  dos 
caracteristicos  que  são  descriptos  nos  dois  primeiros  tomos  d'esta  obra  e 

as  listas  das  terras  em  que  cada  um  foi  verificado la    32 

1 


II  —  Cavernas.  —  Outros  vocábulos  com  que  são  designadas  no  Algarve.  — 

Abysmos,  hydrophilacios,  ou  marmitas  de  gigantes.  —  Sua  formação. — 
Como  começou  modernamente  o  estudo  scientifico  das  cavernas.  — Affir- 
mações  deduzidas  d'este  estudo  com  relação  á  geologia,  á  paleontologia  e 
á  archeolôgia  prehistorica. — Comprovações  do  synehronismo  das  raças 
humanas  com  os  grandes  mammiferos  extinctos  da  fauna  antiga,  verifi- 
cadas em  varias  cavernas  de  Inglaterra,  da  França  e  da  Bélgica.  —  Ca- 
vernas da  região  sul-oriental  da  Hispanha.  — Probabilidades  de  se  acha- 
rem cavernas  ossiferas  no  Algarve,  ou  contendo  artefactos  da  industria 
humana.  —  Mostra-se  que  n'um  limitado  numero  de  cavernas  exploradas 
em  Portugal  se  têcm  encontrado  abundantes  confirmações  directas  e  in- 
directas de  haverem  sido  habitadas  em  diversos  tempos  prehistoricos.  — 
Excellentes  monographias  publicadas  acerca  d'este  assumpto. — Insufi- 
ciência d'estes  trabalhos  para  deixarem  reconhecer  as  raças  humanas  que 
viveram  rfeste  território,  a  feição  paleontologica  eas  phases  por  que  pas- 
sou a  industria  desde  as  suas  mais  remotas  manifestações.  —  Impossibi- 
lidade de  se  inquirir  por  emquanto  a  ordem  ethnographica  das  estações 
troglodytieâs  e  de  se  mostrarem  as  ligações  d'essas  estações  com  as  de 
outros  territórios.  —  Lamentável  falta  de  estudos  fundamentaes.  —  Ra- 
zões que  levaram  o  auctor  d'esta  obra  a  querer  emprebender  o  exame  das 
numerosíssimas  cavernas  do  Algarve  e  motivos  que  o  impediram. —  Sim- 
ples indicação  na  carta  prehistorica  de  alguns  pontos  em  que  ha  cavernas 
.  n'esta  zona  geographica.  —  Noticias  concernentes  a  cada  uma  das  caver- 
nas indicadas - 33  a    86 

III  —  Monumentos   megalithicos   da   architectura    paleoethnologica. — Me- 

nhirs. —  Alinhamentos.  —  Cromlecks. — Antas  ou  dolmens,  synonymos 
de  aras  ou  altares. — Discute-se  se  o  dolmen  apparente  esteve  sempre 
descoberto  ou  primitivamente  sob  tumulus. — Opiniões  e  presumpcões 
acerca  d'este  assumpto.  —  Cistos,  ou  pequenos  dolmens.  — Fundamentos 
que  permittem  suppor-se  ter  havido  no  Algarve  cinco  logares  em  que 
existiram  antas  ou  dolmens  apparentes.  —  Descrevem-se  as  condições 
geographicas  d'esses  logares  e  indicam-se  na  carta  prehistorica,  2.* 
colurnna,  sob  a  epigraphe:  «Antas  ou  dolmens  que  presumptivamente 
existiram  sobre  o  solo» 87  a  108 

IV —  Critérios  neolithicos  esparsos,  deixando  presumir  a  existência  de  monu- 
mentos do  mesmo  período. — Intuitos  suscitados  por  esta  presumpção, 
relativamente  aos  typos  ethnicos  que  deviam  achar-se  nas  estações  pa- 
leoethnologicas  até  então  não  descobertas.  — Notável  facto  contradictorio 
com  referencia  á  emigração  de  uma  raça  brachycephala,  que  se  diz  ha- 
ver invadido  a  Europa. — Mostra-se  que  a  raça  dolichocephala  mantinha 
na  zona  do  Algarve  o  seu  quasi  absoluto  predomínio.  —  Reconhece-se 
que  os  depósitos  até  ha  pouco  considerados  quaternários,  em  que  se  jul- 
2 


gou  serem  paleolitliico-s  e  dolirhocephalos  os  eraneos  que  continham,  são 
simplesmente  pertencentes  aos  tempos  geologicamence  denominados  actuaes 
e  neolithieos.  — Sob  o  predomínio  da  velha  raça  surge  ò  sentimento  reli- 
gioso.—  O  homem  julga-se  superior  á  matéria  e  reconhece  em  si  pró- 
prio um  espirito  que  o  domina;  esse  espirito" crê  ser  immortal;  concebe 
a  morte  como  temporária  ausência  do  espirito;  e  vae  mais  longe  ainda, 
instaurando  o  dogma  da  resurreição.  —  O  respeito  e  a  veneração  que  de- 
dicou aos  mortos  abonam  a  existência  d'essas  crenças.  — Indieam-se  os 
jazigos  preparados  em  honra  dos  mortos  e  bem  assim  as  habitações  dos 
vivos.  — As  ambições  promovem  ao  mesmo  tempo  o  antagpnisino.  —  Do 
antagonismo  nasce  a  guerra.  —  As  armas  de  caça  são  ao  mesmo  tempo 
a  divisa  do  guerreiro.  —  A  ponta  de  frecha,  o  machado  de  pedra  e  a  adaga 
de  silex  substituem  todos  os  argumentos.  — O  mais  forte  é  o  vencedor.  — 
Muitos  ossos  depositados  em  estações  neolithicas  attestam  terem  sido  pe- 
netrados por  esses  instrumentos  de  guerra. — Da  necessidade  de  segu- 
rança contra  os  inimigos  veiu  mui  provavelmente  a  invenção  dos  legares 
fortificados,  e  a  das  palafittas  nas  regiões  em  que  havia  lagos.  — Dá-se 
noticia  da  lagoa  do  Boinho  entre  Tavira  e  Villa  Real,  sem  se  poder  affir- 
mar  se  foi  ou  não  habitada.  — Mostra-se  que  as  palafittas  já  existiam  an- 
tes da  idade  do  bronze.  — Aptidões  manifestadas  pelo  homem  neolithico. — 
Origem  da  agricultura  na  Europa.  —  Cereaes  que  eram  cultivados. — 
Aproveitamento  dos  fruetos  espontâneos.  —  Pedras  para  a  moagem  dos 
cereaes ;  fabricação  e  cozedura  do  pão.  —  Desenvolvimento  dos  meios 
de  alimentação  protestando  contra  a  calumnia,  que  attribue  o  vicio  da 
anthropophagia  áqcelles  verdadeiros  sectários  do  trabalho  e  do  progresso. — 
Géneros  de  alimentação.  —  Bebidas  alcoólicas.  —  Industria  manufa- 
ctora.  —  A  pedra  é  a  principal  matéria  prima.  —  O  homem  faz-se  mi- 
neiro, procurando  os  jazigos  do  silex.  — Olíicinas  de  trabalho.  — Ausên- 
cia de  alguns  característicos  achados  n'outras  regiões 109  a  142 

-  Os  monumentos.  —  Antas  ou  dolmens  sub  tumuli  com  galerias  cober- 
tas.—  Sua  distribuição  geographica. — Falta  que  faz  o  museu  archeolo- 
gico  do  Algarve,  reorganisado  com  os  últimos  monumentos.  —  Estação 
mortuária  de  Aljezur.  — Planta  e  perfis.  —  Descripção.  — Habitações  sub-; 
terraneas  adjacentes. — Ossos  humanos  que  continha  o  deposito. — Es- 
caços  característicos  paleontologicos. — Rochas  utilisadas  em  toda  a  re- 
gião.—  Instrumentos  e  utensílios  de  trabalho. — Armas  de  caça  e  de 
guerra. — Placas  de  schisto  com  gravuras.  —  Amuletos,  contas  e  alfine- 
tes de  osso.  — Urnas  funerárias  e  vasos  de  suspensão.  —  Monte  Amarel- 
lo. —  Dolmen  coberto  não  explorado.  —  Artefactos  alli  achados. — Vestígios 
de  habitações  terrestres.  —  Carência  de  explorações  entre  o  Monte  Ama- 
rello  e  Aljezur  e  entre  Aljezur  e  o  rio  Odeceixe.  —  Serro  Grande. — 
Dolmen  coberto  destruído.  —  O  que  ainda  manifestou.  — Alcalá.  — Dol- 
men coberto  sob  tumuli.  — Razões  por  que  a  planta  geral  da  necrópole 

3 


de  Alcalá  passa  a  ter  cabimento  no  tomo  11. — Planta  da  primeira  ex- 
ploração.—  Instrumentos  de  formas  inéditas.  —  Estampas  figurando  os 
característicos  principaes.  —  Planta  c  prodactos  da  segunda  exploração. — 
Gracs  de  pedra  e  tintas  mineraes. — Vasos  crivados  de  orifícios. — 
Placa  de  schisto.  —  Contas  de  calaítc,  de  schisto  e  serpentina. — Varias 
louças.  —  Palmeirinha,  Cerca  Nova  e  outros  sitios  próximos  com  muitos 
instrumentos  ncolithicos.  —  Monte  Canellas,  mostrando  ser  sédc  de  vários 
monumentos.  —  Instrumentos  de  pedra  alli  achados.  — Monte  da  Rocha 
(Lameira)  com  um  dolmen  destruido.  —  Objectos  que  continha.  —  Serro 
das  Pedras. — Dolmen  destruido.  —  Desenho  das  ruinas  e  dos  objectos 
d'ellas  extrahidos.  — Monumento  da  Nora.  —  (Advertência  a  futuros  ex- 
ploradores.)—  Planta  e  perfil.  — Descreve-se  o  monumento  e  o  que  con- 
tinha.—  Monumento  da  Marcclla. — Planta.  —  Estado  dos  ossos.  —  In- 
strumentos desilexede  outras  pedras. — Tintas  mineraes.  —  Louças. — 
Cacella. — Monumento  descoberto  ao  norte  da  igreja  —  Objectos  d'elle 
extrahidos. — Planta. — Estações  da  Torre  dos  Frades. — Como  foram 
descobertas  e  o  que  continham.  —  Dois  craneos  dolichocephalos  intei- 
ros.—  Cerâmica. — Vários  caracteristicos. — Castro  Marim. — Dolmen  co- 
berto, destruido.  —  Seus  caracteristicos.  —  Serro  do  Castello. — Monu- 
mento aberto,  parcialmente  destruido.  — O  que  ainda  manifestou.  — Va- 
queiros.—  Instrumentos  de  pedra  alli  achados.  —  Considerações  ge- 
raes 143  a  -305 


índice  das  estampas 


PAG. 

Est.  Carta  paleoethnologica  do  Algarve 1 

»             A.  Aljezur — Planta  e  perfis  da  estação  neolithica  e  das  habita- 
ções subterrâneas  adjacentes 145 

»  B.  Aljezur — Facas,  serras  de  silex  e  uma  conta  de  steatite 162 

»  C.  Aljezur  —  Enxós,  machados,  escopros  e  um  amuleto 173 

»  D.  Aljezur — Pontas  de  frecha  e  de  lança  de  silex,  dentes  fosseis 

de  squaloides  extinctos,  e  cabeças  de  alfinetes  de  osso 193 

»  E.  Aljezur  —  Pontas  de  frecha,  de  lanças  e  lasca  cortante  de  silex  195 

»  F.  Aljezur  —  Vaso  de  suspensão  e  outras  loucas 203 

»  I.  Serro  Grande  (Lagos)  —  Característicos  de  silex  e  de  osso  de 

um  dolmen  coberto  destruído  na  quinta  da  Luz 211 

»             II.  Alcalá  —  Planta,  corte  e  accessorios  de  um  dolmen  coberto. . .   215 
»          IÍA.  Alcalá — Planta  e  corte  do  monumento  de  Alcalá  com  rectifi- 
cações   , 218 

Alcalá  —  Secções  transversaes  de  vários  ossos  humanos  do  mo- 
numento de  Alcalá  (no  texto) 222 

»  III.  Alcalá  —  Pontas  de  frecha,  de  lança  e  fragmentos  de  facas  de 

silex 225 

»  IV.  Alcalá  —  Pontas  de  frecha  e  facas  de  silex,  lança  de  schisto, 

contas  de  calaíte,  de  schisto  de  serpentina,  cryslal  e  rocha, 

e  fragmentos  de  alfinetes  de  osso 226 

»  V.  Alcalá  —  Machado,  enxó  e  escopro  de  pedra 226 

»  VI.  Alcalá  —  Vários  instrumentos  de  pedra 227 

»  VII.  Alcalá  —  Graes  de  pedra 229 

»  VIII.  Alcalá  —  Placa  de  schisto  com  gravuras 232 

»           IX.  Alcalá  —  Fragmentos  de  louças  com  ornatos  rudimentares. . . .  238 
»             X.  Monte  da  Rocha  (Lameira)  —  Instrumentos  de  pedra  de  um  dol- 
men destruído 243 

»  XI.  Serro  das  Pedras  —  Perspectiva  de  um  dolmen  coberto  destrui- 

dn.  (Vejam-se  na  estampa  x  os  característicos  <juc  continha)  244 

5 


PAG. 

Est.       XII.  Nora  e  Marcella  —  Plantas  e  perfis  de  dois  dolmens  cobertos  . . .  249 

»         XIII.  Nora  —  Instrumentos  lascados  de  silex 251 

h  XIV.  Nora  —  Pontas  de  frecha  de  silex,  crystal  de  rocha,  fragmen- 
tos de  placa  de  schisto  com  gravura,  artefactos  de  marfim  e 

osso 253 

»  XV.  Nora  —  Machados  e  enxós  de  pedra 255 

»         XVI.  Marcella — Facas,  serras  e  lascas  cortantes  de  silex 261 

»        XVII.  Marcella  —  Pontas  de  frecha  e  lanças  triangulares  de  silex. . .   262 

»       XVIII.  Marcella  —  Enxó  de  schisto  amphibolico 202 

»         XIX.  Marcella  —  Machado,  escopros  de  pedra  e  núcleos  de  crystal  de 

rocha 263 

»  XX.  Marcella  —  Placa  de  schisto  com  gravuras 267 

»         XXI.  Marcella  —  Placa  de  marfim  com  ornatos,  gorjal  de  suspensão, 

e  fragmentos  de  instrumentos  de  osso 268 

»        XXII.  Marcella  —  Louças  extrahidas  do  monumento 273 

»       XXIII.  Marcella  —  Mais  louças 274 

»    XXIIIA.  Cacella  —  Planta  que  marca  o  logar  de  uma  anta  coberta  ao 

norte  da  igreja  de  Cacella 276 

»  XXIV.  Cacella  —  Facas  de  silex  e  grande  machado  de  schisto  amphi- 
bolico    276 

))      •  XXV.  Cacella  —  Enxós  de  schisto  amphibolico 276 

»       XXVI.  Torre  dos  Frades  —  Planta  de  duas  estações  tumulares 281 

Torre  dos  Frades  —  Estampa,  no  texto,  de  dois  vasos  cerâmi- 
cos, sendo  um  de  suspensão,  extrahidos  dos  monumentos 

figurados  na  estampa  xxvi > 284 

»     XXVII.  Torre  dos  Frades  —  Planta  da  anta  coberta  do  Arrife 285 

»  XXVIII.  Torre  dos  Frades  —  Pontas  de  frecha  e  facas  de  silex,  machado 
de  diorite  e  pingente  de  osso  perforado,  pertencentes  ao  mo- 
numento do  Arrife 286 

Serro  do  Castello  (Azinhal)  —  Referencia  a  uma  anta  coberta  292 
w       XXIX.  Vaqueiros  —  Machados  de  pedra,  que  se  julga  pertencerem  a 

um  monumento  ainda  occulto 295 

»        XXX.  Vaqueiros  —  Enxós,  fragmento  de  machado  de  pedra  e  outro 

de  uma  placa  de  schisto  sem  gravura 295 


ERRATAS  PRINCIPAES 


PAGINA 

LINHA 

ERRO 

EMENDA 

1 

6 

arehcologia 

archeologia 

3 

13 

acrescentar 

accrescentar 

79 

27 

est.  xi 

est.  n 

120 

28 

extrahidos 

extrahidas 

133 

10 

Escapou  a  seguinte  nota :  —  É  a  doutrina 
corrente;  mas  em  seu  logar  mostrarei 
que  o  typo  Lrachycephalo  é  anterior. 

159 

26 

E 

É 

164 

est.  G 

est.  E 

165 

est.  G 

est.  B 

170 

est.  D,  n.os  18  e  19 

est.  D,  n.os  17  e  18 

188 

15 

apox 

após 

209 

14 

duvida,  alguma 

duvida  alg-uma, 

225 

3 

artefactos,  ha 

artefactos,  de  que  lia 

240 

35 

instrumentos  dcs 

instrumentos  de 

241 

35 

agricela 

agrícola 

244 

22 

o  de  n. os 

os  de  n.os 

260 

29 

possivel 

praticável 

282 

18 

depostos 

depósitos 

I 
CARTA  ARCHEOLOGICA  DO  ALGARVE 

Tempos  prehistoricos 


SUMMARIO 

As  cartas  archeologicas  e  a  sua  significação.  — Conveniência  de  serem  divididas  em  car- 
tas paleoethnologicas  ou  de  archeologia  prehistorica,  em  cartas  de  archeologia 
histórica  e  em  cartas  monographicas  especiaes,  tanto  de  areheologia  prehistorica, 
como  de  archeologia  histórica.  —  Cartas  que  podem  servir-lhes  de  base.  —  Pro- 
cesso mais  seguro  para  a  sua  elaboração.  —  Indispensável  classificação  e  ordena- 
ção dos  critérios  locaes  que  devem  representar. —Utilidade  e  deducções  que  se 
derivam  d'estas  cartas.  —  Citam-se  as  que  já  estavam  publicadas  quando  teve 
principio  a  do  Algarve,  muitas  que  em  seguida  foram  tendo  publicidade  e  algumas 
que  estão  sendo  coordenadas.  —  Legenda  internacional  que  ficou  determinada  para 
as  cartas  paleoethnologicas  ou  prehistoricas  em  substituição  dos  anteriores  sym- 
bolos  arbitrários  de  convenção.  —  É  esta  legenda  internacional  empregada  pela 
primeira  vez  em  Portugal  na  carta  prehistorica  do  Algarve.  —  Occorrencias  que 
retardaram  a  publicação  d'esta  carta.  —  Como  devem  ser  comprovadas  estas  car- 
tas e  como  o  foi  em  1880  a  do  Algarve?  —  Prevenções  respectivas  á  carta  choro- 
graphica  que  a  esta  serviu  de  base.  —  Elementos  geographicos  existentes  nos  ou- 
tros paizes  para  este  género  de  trabalhos.  —  Desenvolvimento  que  teve  esta  carta 
prehistorica  após  os  resultados  práticos  de  uma  exploração  complementar  effei- 
tuada  em  1882.  — Mostra-se  que  com  a  publicação  d'esta  carta,  dos  dois  primeiros 
livros  que  representam  e  descrevem  as  antiguidades  prehistoricas  que  symbolisa 
e  com  a  reorganisação  scientiíica  do  museu  archeologico  do  Algarve,  fica  estabe- 
lecido o  systema  a  que  deve  ser  subordinado  o  estudo  e  a  representação  das  an- 
tiguidades prehistoricas  e  históricas  do  território  nacional.  —  Iniciativa  do  auctor, 
levada  a  vários  congressos  estrangeiros  para  o  regulamento  definitivo  dos  signaes 
de  convenção  internacional,  que  deve  ser  adoptado  nas  cartas  de  archeologia  his- 
tórica. —  Instrucções  que  ácêrca  d'estas  cartas  devem  ter-se  em  vista.  —  Obser- 
vem-se  na  carta  prehistorica  os  signaes  referentes  ás  idades  que  representa,  o 
indice  dos  característicos  que  são  descriptos  nos  dois  primeiros  tomos  d'esta  obra 
e  as  listas  das  terras  em  que  cada  um  foi  verificado. 

As  cartas  archeologicas  são  a  manifestação  simplificada,  o 
resumo,  ou  indice  figurado  por  signaes  de  convenção,  das  diver- 
sas antiguidades  de  cada  região  geographica  a  que  se  referem. 

Partindo  da  idéa  iniciada  pelas  cartas  de  geographia  antiga, 

as  cartas  archeologicas   são  porém  regidas  por  intuitos  muito 

mais  vastos,  abrangendo  o  máximo  alcance  possivel  em  relação 

aos  elementos  que  podem  directa  ou  indirectamente  confirmar  as 

1 


mais  remotas  origens  ethnicas,  o  seu  desenvolvimento,  e  os  gran- 
des tractos  de  distribuição  das  espécies  ou  variedades  do  grupo 
humano,  assim  como  os  mais  apurados  primórdios  e  progressos 
concernentes  á  historia  do  trabalho. 

Suppoz-se  terem  sido  os  sábios  das  nações  scandinavas,  Di- 
namarca, Suécia  e  Noruega,  e  os  suissos,  que,  seguindo  os  me- 
thodos  empregados  na  geologia  e  na  paleontologia,  conseguiram 
verificar,  por  uma  uniforme  continuação  de  comprovações  locaes, 
a  apagada  existência  de  três  idades  distinctas,  relativamente  ás 
origens  humanas  e  a  sua  industria,  caracterisadas  por  instrumen- 
tos de  pedra,  de  bronze  e  de  ferro,  todas  anteriores  ás  datas  dos 
seus  documentos  históricos,  ficando  por  isso  denominadas  pre- 
historicas;  mas  esta  mesma  divisão,  sem  a  minima  discrepância, 
já  estava  feita,  escripta  e  proclamada  havia  quasi  dois  mil  annos; 
fizera-a  o  audacioso  poeta  latino  Tito  Lucrécio  Garo  no  seu 
poema  De  rerum  natura,  em  seis  livros,  sem  ostentar  erudições, 
nem  explicar  aonde  e  como  tinha  ido  indagar  os  factos,  que  com 
a  mais  restricta  clareza  e  laconismo  reduziu  a  poucos  versos,  já 
por  vezes  repetidos,  factos  que  estão. actualmente  confirmados  em 
todos  os  paizes  dedicados  á  cultura  da  sciencia,  e  que  a  própria 
carta  prehistorica  do  Algarve  igualmente  comprova  na  extrema 
zona  sul-occidental  da  Europa,  symbolisando  os  monumentos 
neolithicos,  os  da  transição  da  ultima  idade  da  pedra  para  a  idade 
do  bronze,  os  da  idade  do  bronze  e  os  da  primeira  idade  do  ferro, 
que  também  vou  representar  com  suas  plantas  e  perfis  e  com  os 
característicos  mais  typicos  de  cada  uma  d'essas  até  ha  pouco 
ignoradas  construcções. 

Assim,  pois,  admiravelmente  se  expressa  o  famoso  poeta  epi- 
curista : 

Arma  antiqua,  manus,  ungues,  dentesque  fuerunt, 

Et  lapides,  et  item  sylvarum  fragmina,  rami; 

Et  flammae  atque  ignes  postquam  sunt  cognita  primúm. 

Posteriús  ferris  vis  est,  aerisque  reperta. 

Et  prior  aeris  erat,  quàm  ferri  cognitus  usus: 

Quò  facilis  magis  est  natura  et  copia  major.1 

1  Titi  Lucretii  Cari— De  rerum  natura  —  libros  sex.— Lib.  V,  pag.  457— Paris,  1680. 


Estas  notabilissimas  revelações,  que  Lucrécio  tão  acertada- 
mente coordenou,  são  assim  interpretadas  pelo  erudito  doutor 
Lima  Leitão,  traductor  do  poema: * 

Antigamente 

As  mãos,  as  unhas  e  dentes  foram  armas, 
As  pedras  e  das  arvores  os  ramos, 
Flamma  e  fogo  tão  promptos  conhecidos. 
Foi  então  que  a  final  pôde  achar-se 
O  préstimo  efíicaz  do  ferro  e  bronze : 
Mas  usou-se  do  bronze  antes  do  ferro, 
Porque  mais  fácil  trabalhar  se  pôde, 
E  com  mais  farta,  copia  se  mostrava. 

E  continuando  a  traducção  do  texto,  acrescenta: 

Era  com  bronze  que  se  abria  a  terra. 
Com  bronze  era  que  a  guerra  se  fazia. 
Podia-se  espalhar  feridas  vastas, 
Fazer  mão  baixa  sobre  greis  e  campos. 
Promptamente  cedia  o  nu  e  inerme 
Aquelle  que  lhe  apparecia  armado. 
Pouco  a  pouco  depois  foi  convertido 
O  duro  ferro  em  fulminante  espada 
E  em  desprezo  caiu  de  bronze  a  foice. 
Rasgou-se  o  campo  desde  então  a  ferro ; 
Foi  a  ferro  que  a  sorte  das  batalhas, 
Que  tão  volúvel  é,  foi  decidida. 

Aos  archeologos  do  norte  não  cabe  portanto  a  prioridade 
d'esta  divisão  já  enunciada  por  Lucrécio,  mas  a  sua  mais  cabal 
confirmação  scientifica,  e  por  isso  os  nomes  de  Thomsen,  Nilsson, 
Forchhammer,  Worsaae,  Steenstrup  e  Keller,  serão  sempre  citados 
como  tendo  sido  os  principaes  entre  os  primeiros  inspirados 
obreiros,  que  arrancaram  ao  âmago  da  terra  os  Íntimos  segredos 
que  ella  havia  occultado  á  sabedoria  antiga. 

O  engenhoso  poeta  latino  guiou-se  porventura  pelas  tradições 
que  ainda  vagamente  corriam  no  seu  tempo  e  soube  ordenal-as 


A.  J.  de  Lima  Leitão  —  A  natureza  das  cousas— tom.  II,  pag.  167  —  1853. 


com  atilada  critica;  mas  as  tradições,  as  lendas  e  os  contos  mais 
ou  menos  fantasiosos,  ou  sagas,  como  se  denominam  entre  aquelles 
povos  septentrionaes,  já  não  attingiam  tão  longínquo  alcance  no 
segundo  quartel  d'este  século,  porque  não  ultrapassavam  as  raias 
dos  tempos  históricos,  nem  explicavam  o  significado  correspon- 
dente a  tantos  e  tão  diversos  monumentos  e  relíquias  das  gera- 
ções extinctas,  cujas  origens  nunca  ninguém  tinha  podido  in- 
quirir. 

Foram  aquelles  athletas  do  progresso  —  os  scandinavos  e 
suissos  —  que  outorgaram  a  archeologia  uma  feição  diversa  e  in- 
tuitos de  todo  o  ponto  audaciosos,  associando-a  á  geologia,  á  pa- 
leontologia e  á  anthropologia,  e  levando-a  como  companheira  já 
inseparável  d'essas  sciencias  até  ás  camadas  sedimentares  dos 
tempos  quaternários,  onde  jaziam  as  mais  remotas  origens  da 
arte,  até  então  achadas,  ou  os  primeiros  instrumentos  de  silex, 
como  formando  rochas  brechiformes  com  os  fosseis  de  faunas  e 
floras  pela  maior  parte  extinctas,  para  d'este  modo  poderem  re- 
ferir a  industria  humana,  senão  a  uma  data  chronologica,  a  uma 
epocha  de  contemporaneidade  geológica  com  o  que  existia naquel- 
les  planos  outr'ora  habitados  por  tantas  existências  posteriormente 
destruídas. 

Foi  então  que  nasceu,  permitta-se-me  assim  dizel-o,  a  chro- 
nologia  geológica,  a  chronologia  das  referencias,  a  única  que  po- 
derá deduzir-se  das  mysteriosas  folhas  do  immenso  archivo  da 
creação.  Foi  então  que  para  cada  facto  de  manifestação  etimoló- 
gica, directa  ou  indirecta,  se  pôde  procurar  uma  nomenclatura, 
e  que  para  todos  se  conseguiu  ordenar  um  regulamento  de  suc- 
cessão.  Foi  então,  finalmente,  que  o  grupamento  das  comprova- 
ções começou  a  ter  organisação  scientifica,  e  considerando-se  que 
tantos  descobrimentos  preciosíssimos  exigiam  ser  authenticamente 
registrados  e  terem  a  mais  ampla  propagação,  foram  logo  con- 
gregados em  famosos  museus.  Thomsen  cria  na  Dinamarca  os 
opulentos  museus  ethnographicos  e  archeologicos  de  Copenhague, 
organisam-se  na  Suécia  os  de  Stockholm  e  Upland,  na  Noruega 
os  de  Christiania,  e  na  Suissa,  logo  que  Fernando  Keller  desço- 


bre  as  habitações  lacustres  que  povoaram  os  lagos  d'aquella  re- 
gião, fundam-se  os  riquíssimos  museus  de  Zurich,  Genebra,  Lau- 
sanne,  Berne  e  Neuchatel. 

A  França,  a  Inglaterra,  a  Allemanha,  a  Bélgica,  a  Áustria,  a 
Rússia,  a  Hollanda,  a  Itália,  a  Turquia,  a  Roumania  e  a  Hispa- 
nha,  participam  activamente  do  grande  impulso  scientifico  que 
partia  do  norte.  A  Hungria,  já  em  1875  tinha  dezoito  museus! 
Chegou  aquelle  impulso  animador  até  ao  Egypto,  e  fundou-se 
no  Cairo  um  museu  de  antiguidades ;  chegou  á  Austrália,  e  insti- 
luiii-sc  outro  em  Canterbury;  chegou  aos  Estados  Unidos,  onde 
em  Worcester,  Philadelphia  e  New-York  também  famosos  museus 
foram  organisados;  chegou  á  America  austral,  onde  o  governo 
da  republica  argentina  encarregou  o  sr.  Moreno  de  fundar  o  rico 
museu  anthropologico  e  prehistorico  de  Buenos  Ayres. 

Em  Portugal  creou-se  uma  cadeira  de  geologia;  foi  regel-a  o 
sábio  doutor  Pereira  da  Costa,  antigo  lente  de  mineralogia  na 
escola  polytechnica  de  Lisboa.  Desde  então  até  hoje  tem  elle  sido 
o  mestre  abalisado  dos  geólogos  portuguezes,  entre  os  quaes  co- 
meçaram logo  a  apparecer  aptidões  distinctissimas.  Creou-se  tam- 
bém uma  secção  geológica,  e  sob  a  direcção  de  tão  digno  mestre, 
emprehenderam-se  trabalhos  de  subida  importância.  Foi  elle  o 
iniciador  proficiente  da  nova  sciencia  nesta  plaga,  e  fez  a  sua 
estreia  perante  o  mundo  scientifico,  inquirindo  e  descrevendo 
magistralmente,  como  geólogo  e  archeologo,  os  kjoekkenmoeddings 
do  Cabeço  da  Arruda,  onde  jaziam  mais  de  quarenta  indivíduos. 
Appareceu  depois  Carlos  Ribeiro  proclamando  a  existência  do 
homem  terciário  com  o  testemunho  dos  sílices  que  descobriu  no 
valle  do  Tejo,  e  o  sr.  Nery  Delgado  descrevendo  as  grutas  da 
Cesareda,  não  sendo  eu  o  ultimo  a  tomar  parte  n'esse  movimento 
quasi  geral,  porque  de  outubro  del865  a  abril  do  anno  seguinte, 
fiz  o  primeiro  reconhecimento  archeologico  no  Algarve,  e  na  carta 
chorographica  a  marcação  das  numerosas  antiguidades  prehistori- 
cas  e  históricas,  que  tinha  descoberto  desde  os  campos  balsenses 
a  leste  de  Tavira  até  á  Foya  de  Monchique. 

Faltava,  porém,  em  cada  região  explorada,  um  registro  que 


pozesse  em  mutua  communicação  tantos  descobrimentos  effeitua- 
dos,  tantos  elementos  novos  e  os  que  a  todo  o  passo  estavam 
tendo  ingresso  nos  arraiaes  da  sciencia. 

Surgiu  então  o  famoso  pensamento  de  serem  symbolisados 
em  cartas  geographicas  ou  chorographicas  os  diversíssimos  desco- 
brimentos effeituados  em  todos  os  paizes,  passando  essas  cartas 
a  denominarem-se  cartas  archeologicas;  mas  logo  se-  reconheceu 
a  necessidade  de  serem  divididas  em  cartas  paleoethnologicas,1  ou 
de  archeologia  prehistorica,  em  cartas  de  archeologia  histórica,  e 
em  cartas  monographicas,  de  géneros  especiaes  de  antiguidades, 
tanto  prehistoricas  como  históricas. 

A  multiplicidade  de  característicos,  que  em  varias  regiões  se 
accumulam  n'uns  certos  grupos  de  logares  extremamente  próxi- 
mos, mostrando  a  successiva  occupação  que  tiveram  desde  tem- 
pos remotíssimos  até  áquelles  em  que  foram  utilisados  por  na- 
cionalidades mais  ou  menos  modernas,  a  muito  custo  permitte, 
quando  não  poucas  vezes  impede,  a  sua  indicação  symbolica  em 
cartas  de  minguada  escala.  Esta  circumstancia,  que  não  poucas 
vezes  suscita  embaraços  quasi  invencíveis  e  promove  uma  inextri- 
cável confusão,  seria  por  si  só  suficiente  para,  com  reconhecida 
vantagem,  se  deverem  fazer  as  referidas  divisões.  Alem  d'isto, 
havendo  numerosos  archeologos,  que  somente  se  dedicam  aos  es- 
tudos paleoethnologicos,  auxiliados  pela  geologia  e  pela  paleon- 
tologia zoológica  e  botânica,  assim  como  outros  muitos,  que  ape- 
nas se  occupam  de  archeologia  histórica,  a  necessidade  de  serem 
separadas  as  respectivas  cartas  era  incontestável.  Finalmente, 
havendo  especialistas  em  diversos  ramos  da  sciencia,  exclusiva- 
mente applicados  a  estudos  monographicos,  como  succede  nos 
paizes  cuja  feição  archeologica  predominante  é  caracterisada  pela 
caverna  ossifera,  pela  construcção  megalithica,  pela  palaíitta,  pelo 


1  Paleoeílinologia  é  termo  novo,  adoptado  em  1865  no  congresso  de  anthropologia 
e  de  archeologia  prehistorica,  em  Spezzia,  como  significando  etimologia  dos  tempos 
antigos,  para  substituir  a  designação,  até  então  usada,  de  archeologia  prehistorica;  e 
pôde  definir-se  como  sendo  « a  sciencia  que  estuda  as  origens  e  desenvolvimentos  da 
humanidade  até  o  começo  dos  tempos  históricos  ». 


tumulas,  ou  por  qualquer  outra  manifestação  das  sociedades 
extinctas,  a  carta  correspondente  restringir-se-ha  a  indicar  a  dis- 
tribuição geographica  do  característico  estudado. 

A  base,  pois,  de  qualquer  d'estas  cartas,  tem  de  ser  uma 
carta  geographica,  chorographica,  ou  geológica,  se  não  se  poder 
levantar  especialmente  uma,  que  satisfaça  ás  exigências  do  tra- 
balho, cuja  escala  permitia  as  mais  minuciosas  indicações.  Ad- 
optada uma  qualquer,  em  que  possam  ser  inscriptos  os  signaes 
de  convenção  respectivos  á  especialidade  que  deve  representar,  o 
processo  mais  seguro  será  sempre  o  da  investigação  directa, 
explorando-se  todos  os  vestígios  apparentes  de  oceupação  antiga, 
e  feita  a  classificação  dos  característicos  encontrados,  cada  logar 
deve  ser  indicado  na  carta  com  o  nome  que  tiver  e  o  seu  signal 
symbolico.  Succedendo  porém  que  o  descobrimento  seja  feito 
num  ponto  não  marcado,  determinar-se-ha  a  sua  situação  pelas 
orientações  e  distancias  referidas  aos  dois  mais  próximos  pontos 
conhecidos,  quando  não  se  possa  empregar  o  systema  da  trian- 
gulação. 

Designadas  d'este  modo  as  estações  locaes  de  cada  idade,  de 
cada  período,  e  de  cada  epocha,  só  faltará  achar  a  ligação  d'essas 
estações  nos  territórios  confinantes,  se  já  estiverem  representadas 
pelas  suas  competentes  cartas.  Chegará  pois  a  haver  um  atlas 
universal,  porque  para  elle  existem  já  muitos  e  preciosos  ele- 
mentos. 

Quando  cada  nação  tiver  publicado  a  carta  de  archeologia 
prehistorica  do  seu  território,  reunidas  e  ordenadas  geographica- 
mente  todas  essas  cartas,  ter-se-ha  um  atlas  para  cada  uma  das 
grandes  divisões  da  terra,  que  mui  distinctamente  mostrará  qual 
foi  a  distribuição  de  todos  os  grupos  humanos  que  a  povoaram 
após  as  ultimas  convulsões  cósmicas  que  levantaram  os  actuaes 
continentes  submergindo  outros  que  anteriormente  formavam  o 
relevo  orographico  da  crusta  do  globo,  ou  desde  que  as  enormes 
geleiras  dos  tempos  geológicos  foram  abandonando  ás  faunas  e 
floras  os  amplíssimos  espaços  que  chegaram  a  cobrir. 

Serão  essas  grandes  cartas  que  deixarão  observar  em  toda  a 


parte  a  feição  geral  das  povoações  isochronas  ou  synchronicas 
em  cada  idade  ou  período  da  vida  humana;  as  condições  da  si- 
tuação geographica  em  que  cada  uma  surgiu  dos  regaços  da  na- 
tureza, animada  pelo  supremo  espirito  creador,  ou  da  selecção 
a  que  foi  levada  por  suas  necessidades  ou  tendências ;  os  crité- 
rios geológicos,  ethnologicos,  industriaes  ou  ethnographicos  que 
distinguem  as  estações;  a  definida  idade  geológica  ou  epocha  ar- 
cheologica  que  representam  perante  os  princípios  e  regras  que  a 
sciencia  tem  preceituado;  as  relações  de  identidade  ou  de  simi- 
lhança  nos  diversos  territórios  com  referencia  ao  elemento  ethnico 
e  á  industria  correlativa;  se  houve  transmigrações  derivadas  dos 
mais  antigos  centros  de  habitação  ou  de  outras  origens  menos 
remotas  e  por  onde  abriram  e  seguiram  passagem,  que  orienta- 
ções procuraram  e  que  trajecto  descreveram  na  sua  marcha,  onde 
estacionaram  e  se  desenvolveram,  e  onde,  emfim,  se  extinguiram; 
ao  passo  que  outros  assaz  valiosos  corollarios  podem  juntamente 
deduzir-se  do  exame  de  taes  circumstancias,  relativos  a  pátria, 
raça,  usos  e  costumes  d'essas  civilisações,  autocthones  ou  emi- 
gradas, que  tantas  relíquias  deixaram  da  sua  aniquilada  exis- 
tência. 

As  cartas  archeologicas  parciaes  são  portanto  os  elementos 
d'esses  grandes  atlas,  que  a  sabedoria  moderna  está  preparando 
em  todas  as  nações,  em  que  a  sciencia  não  se  julga  ser  necessi- 
dade secundaria,  ou  apparente  compostura  fictícia,  mas  uma  ra- 
dical affirmação  de  progresso. 

Em  Portugal,  forçoso  é  dizer-se,  nunca  se  tinham  inquirido 
e  representado  as  suas  antiguidades  com  taes  intuitos,  nem  por 
meio  d'este  processo  fundamental,  único  á  simples  vista  compre- 
hensivel,  facilmente  transmissivo,  e  de  immediata  ligação  com  as 
dos  territórios  limitrophes. 

Este  systema,  porém,  de  representar  os  critérios  archeologi- 
cos  de  cada  região,  laborava,  a  meu  ver,  numa  deficiência,  que 
era  mister  supprir-se  para  que  podesse  merecer  inteiro  conceito. 

Quem  olha  para  uma  carta  archeologica,  não  sabe  até  que 
ponto  pode  ter  sido  exacta  a  classificação  dos  característicos  que 


symbolisa  por  signaes  de  convenção,  quer  esses  signaes  tenham 
partido  de  uma  compilação  de  noticias  transmittidas,  quer  elles 
representem  o  resultado  de  um  estudo  directo.  No  primeiro  caso 
é  mister  auctorisal-os  com  a  citação  dos  textos  descriptivos,  e  no 
segundo  compro val-os  com  os  próprios  característicos,  coordena- 
dos em  museu  rigorosamente  archeologico. 

Foi  o  que  se  começou  logo  a  fazer,  como  já  disse,  e  foi  o 
systema  que  formei  e  segui,  applicando-o  ao  território,  cujas  an- 
tiguidades tinham  sido  officialmente  incumbidas  ao  meu  desco- 
brimento e  exame,  antes  mesmo  de  conhecer  as  poucas  cartas 
archeologicas  já  anteriormente  impressas. 

O  meu  pensamento  encontrou-se  em  plena  congruência  com 
o  que  havia  surgido  ao  norte  e  no  centro  da  Europa. 

Começou  o  trabalho  das  cartas  archeologicas :  foi  a  da  Nor- 
mandia a  primeira  de  que  tenho  noticia;  levantou-a  o  sr.  Leroy  de 
Gany,  sendo  por  este  importante  serviço  premiado  em  1859  com 
uma  medalha  de  oiro  pela  sociedade  dos  antiquários  d'aquella 
nação.  Em  França  seguiu-se  logo  o  exemplo,  porque  em  1860 
publicava  o  sr.  Ollier  de  Marichard  a  do  Bas-Vivarais,  e  o  ab- 
bade  Cochet  a  do  Sena-Inferior  em  1864.  Como  já  fica  dito,  a 
do  Algarve,  embora  ainda  sem  titulo,  foi  começada  em  1865,  e 
lentamente  proseguida  até  1877,  em  que  o  governo  me  incumbiu 
da  sua  revisão,  ficando  concluída  no  anno  seguinte  e  apresentada 
em  janeiro  de  1879,  sob  o  titulo  de  Caria  archeologica  do  Al- 
garve. 

Desde  1865  até  1879  muitas  outras  cartas  foram  organisa- 
das  em  diversas  nações:  duas  appareceram  em  França  no  anno 
de  1867,  a  do  departamento  de  Tarn,  pelo  sr.  Caraven,  e  a  da 
Gallia,  desde  os  tempos  mais  remotos  até  á  conquista  de  César, 
levantada  pela  commissão  da  topographia  das  Gallias.  Em  1869 
publicou  o  sr.  Edmond  Bassac,  na  escala  de  1 :  50:000,  a  sua 
muito  útil  Carta  hydrographica,  topographica  e  archeologica  do 
golfo  do  Morbihan  e  do  seu  litoral.  Em  1872  publicou  o  sr.  barão 
de  Bonstetten  a  carta  archeologica  do  departamento  do  Var. 
A  esta  seguiu-se  a  dos  dolmens  do  Lozère,  publicada  pelo  dou- 


10 

tor  Prunières  em  1873,  assim  como  em  1874  foi  também  le- 
vada á  publicidade,  pelo  sr.  Boisse,  a  de  Aveyron.  Em  1874  e 
1876  foram  apresentadas  aos  congressos  de  anthropologia  e  de 
archeologia  prehistorica,  reunidos  em  Stockholmo  e  Buda-Pesth, 
as  cartas  da  Suécia  e  da  Hungria,  apparecendo  em  1875,  na  ex- 
posição de  geographia  de  Paris,  as  da  Suécia,  Bélgica  e  Suissa. 
Em  1876  foi  impressa  em  Lyon,  sob  os  auspícios  do  ministério 
de  instrucção  publica,  a  carta  da  distribuição  geographica  dos 
productos  da  industria  metallurgica  em  França  e  na  Suissa,  com 
o  titulo  de  Études  paléoethnologiques  dam  le  bassin  du  Rhône 
—  âge  du  bronze  — ,  pelo  sr.  Ernesto  Chantre,  auctor  de  muitas 
outras  cartas  e  de  grandes  obras  importantíssimas,  referentes  ás 
idades  do  bronze  e  do  ferro. 

Na  exposição  universal  de  Paris  em  1878,  encorporadas  na 
galeria  da  arte  antiga,  foram  expostas  numerosas  cartas  archeo- 
logicas,  assim  como  nas  salas  do  ministério  de  instrucção  pu- 
blica, figurando  entre  ellas  as  da  Finlândia,  Bulgária  e  ilha  de 
Minorca.  Só  a  França  apresentou  dezenove,  abrangendo  as  par- 
ciaes  de  muitos  departamentos  e  as  geraes  do  seu  território.  So- 
bresaía,  porém,  entre  todas,  a  da  commissão  da  topographia  das 
Galhas,  com  a  indicação  local  dos  dolniens  e  dos  tumidi,  das  ca- 
vernas, dos  artefactos  do  bronze,  dos  cemitérios  merovingianos, 
etc,  etc. 

No  congresso  de  Strasburgo  em  1879,  o  sr.  Troeltsch  apre- 
sentou a  carta  prehistorica  do  SO.  da  Allemanha  e  da  Suissa. 
0  mesmo  auctor  declarou  em  1880,  no  congresso  de  Berlin,  ter 
para  apresentar  a  carta  prehistorica  do  Mecklembourg,  do  Lauen- 
bourg  e  Lubeck,  baseadas  nos  descobrimentos  dos  srs.  Lisch, 
Gross  e  Handelmann,  segundo  refere  o  sr.  E.  Cartailhac  no  tomo 
xii  (1881)  do  seu  periódico  Matériaux  poar  Vhistoire  primitive 
et  naturelle  de  1'homme. 

Uma  commissão  de  sábios  occupa-se  da  carta  prehistorica 
de  Allemanha.  Em  1880,  no  congresso  dos  anthropologistas  al- 
lemães,  reunido  em  Berlim,  expoz  o  sr.  Fraas  o  estado  dos  tra- 
balhos d'aquella  commissão. 


11 

São,  emfim,  numerosas  as  cartas  archcologicas  já  impressas 
e  em  via  de  publicação,  ficando  muitas  por  nomear. 

Já  se  vê,  pois,  mesmo  por  esta  incompleta  resenha,  a  impor- 
tância que  nestes  últimos  vinte  e  cinco  annos  se  tem  dado  a  este 
género  de  trabalhos,  sobremaneira  áridos,  penosos  e  difíiceis, 
principalmente  quando  as  cartas  são  organisadas,  como  foi  a  do 
Algarve,  por  investigação  directa,  no  próprio  território,  de  logar 
em  logar,  e  mediante  o  descobrimento  e  estudo  especial  de  cada 
um  dos  seus  mui  variados  critérios  monumentaes  e  artísticos, 
sendo  ao  mesmo  tempo  levantadas  as  plantas  das  construcções, 
os  seus  perfis,  feito  o  desenho  dos  artefactos  industriaes,  colligi- 
dos  e  organisados  todos  esses  numerosíssimos  característicos 
documentaes  para  a  sua  authentica  comprovação,  como  fiz  com 
o  maior  cuidado  e  mostrei  com  a  fundação  do  museu  archeolo- 
gieo  do  Algarve,  apresentado  em  1880  ao  congresso  de  anthro- 
pologia  e  de  archeologia  prehistorica,  e  ao  publico  de  Lisboa  du- 
rante oito  mezes,  sendo  porém  depois  mandado  arrecadar  numas 
casas  inferiores  da  academia  de  bellas  artes  e  num  pateo  infe- 
cto e  sombrio,  que  foi  cemitério  do  ex-convento  de  S.  Francisco, 
onde  também  ficou  sepultado ;  o  que  por  emquanto  relato  sem 
os  devidos  commentarios,  porque  o  facto  basta  para  mostrar  o 
lamentoso  atrazamento  em  que  este  género  de  estudos  se  acha 
ainda  neste  paiz! 

Estando  já  publicadas  muitas  cartas  archeologicas,  mas  cada 
uma  indicando  as  antiguidades  do  seu  respectivo  território  por 
signaes  arbitrários,  que  difficultavam  a  leitura  e  muito  mais  ainda 
a  sua  confrontação,  a  secção  archeologica  da  sociedade  scienti- 
fica  de  Cracóvia,  propoz-se  regularisar  a  coordenação  das  futuras 
cartas,  de  modo  que  todas  fossem  subordinadas  a  uma  legenda 
internacional,  sendo  separadas  as  prehistoricas  das  históricas. 
Com  este  fim  nomeou  uma  commissão  especial  para  tratar  sim- 
plesmente das  cartas  prehistoricas,  sendo  seu  presidente  o  sábio 
conde  A.  Przezdziecki,  o  qual  deu  conta  dos  trabalhos  da  com- 
missão em  1871  ao  congresso  de  Bolonha.  Nomeou  a  assembléa 
uma  commissão  para  examinar  e  pôr  em  pratica  o  projecto  dos 


12 

archeologos  de  Cracóvia;  morrendo,  porém,  pouco  depois,  o  seu 
presidente,  a  commissão  não  chegou  a  funccionar. 

Renovou  este  assumpto  o  sr.  E.  Chantre,  a  quem  a  sciencia 
moderna  deve  numerosos  serviços  do  mais  alto  apreço.  O  sr. 
Chantre,  reconhecendo  os  inconvenientes  resultantes  da  falta  de 
um  regulamento  uniforme  e  geral  para  este  género  de  trabalhos, 
apresentou  ao  congresso  de  Stockholmo  em  1874  um  projecto  de 
legenda  internacional  para  as  cartas  archeologicas  prehistoricas, 
e  o  congresso  nomeou  uma  commissão  para  discutir  este  projecto 
e  adoptar  uma  legenda  definitiva,  composta  dos  srs.  Capellini, 
representando  a  Itália;  Desor,  a  Suissa;  Dupont,  a  Bélgica;  En- 
gelhardt,  a  Dinamarca;  Evans,  a  Gran-Bretanha ;  Hildebrand,  a 
Suécia;  Léemans,  a  Hollanda;  Lerch,  a  Rússia;  G.  de  Mortillet, 
a  França;  Romer,  a  Áustria;  e  Virchow,  a  Allemanha. 

Portugal,  já  se  vê,  não  tinha  quem  o  representasse! 

Esta  notabilissima  commissão,  associando  logo  o  auctor  do 
projecto  e  discutindo  o  assumpto,  delegou  os  seus  poderes  numa 
sub-commissão,  unicamente  composta  dos  srs.  E.  Chantre  e  G. 
de  Mortillet.  Estes  dois  sábios,  tendo  em  consideração  as  discus- 
sões precedentes  e  as  communicações  por  escripto,  que  lhes  fo- 
ram dirigidas  pelos  representantes  da  Dinamarca,  da  Gran-Bre- 
tanha, da  Hollanda,  da  Rússia,  da  Áustria  e  da  Bélgica,  com 
umas  notas  do  sr.  Van  der  Maelen,  auctor  da  carta  archeologica 
d'aquella  nação,  redigiram  o  seu  trabalho,  estabelecendo  as  con- 
venções internacionaes  que  cada  auctor  deve  adoptar,  para 
assim  ficar  uniformisada  a  leitura,  ou  interpretação  das  anti- 
guidades de  cada  paiz,  e  deram-lhe  publicidade  em  1875  no 
tomo  vi  da  segunda  serie  da  revista  mensal,  dirigida  pelo  sr. 
Cartailhac  com  o  titulo  de  Matériaux  pour  Vhistoire  primitive  et 
naturelle  de  1'homme,  e  em  caderno  supplementar  impresso  em 
Toulouse. 

Quando  em  1878  conclui  a  carta  archeologica  do  Algarve, 
ignorava  a  existência  dos  signaes  de  convenção  determinados 
pelo  congresso  de  Stockholmo  e  por  isso  foi  apresentada  em  1880 
ao  congresso  de  Lisboa  com  os  signaes  arbitrários,  feitos  a  cores, 


13 

que  tinha  adoptado,  assim  como  a  carta  prehistorica,  deduzida 
da  carta  geral,  que  submetti  ao  exame  do  congresso. 

Notou-me  então  o  sr.  Cartailhac  a  conveniência  de  serem 
substituídos  os  signaes  de  minha  invenção  pelos  que  estavam 
sendo  usados  sob  a  legenda  internacional,  e  regressando  ao  seu 
paiz,  teve  o  obsequioso  cuidado  de  me  enviar  a  respectiva  ta- 
beliã. 

Já  em  agosto  de  1881,  tendo  o  governo  mandado  contratar 
com  uma  empreza  particular  as  estampas  correspondentes  ás 
antiguidades  prehistoricas  do  Algarve,  o  original  da  carta  foi  en- 
tregue com  a  legenda  internacional  correspondente,  e,  com  effeito, 
assim  chegou  a  ser  desenhado  e  a  serem-me  remettidas  as  pro- 
vas antes  de  findo  aquelle  anno.  Vieram,  porém,  poucos  dias 
antes  de  ser  auctorisado  pelo  governo  para  proceder  a  uma  explo- 
ração complementar  em  vários  pontos  da  província,  onde  se 
tinham  casualmente  manifestado  importantes  antiguidades  pre- 
historicas, e  noutros  onde  apenas  tinha  conseguido  fazer  um 
simples  reconhecimento  em  1878;  e  devendo  a  carta  indicar  to- 
das as  antiguidades  descobertas  até  á  data  da  sua  publicação, 
tive  de  reter  as  provas  já  impressas  e  esperar  pelos  resultados 
práticos  da  exploração  complementar,  pensando  que  muitas  alte- 
rações haveria  a  fazer,  por  isso  que  os  indícios,  que  precederam 
aquella  nova  exploração,  promettiam  fartas  acquisições.  E  com 
effeito  não  me  enganei,  porque  terminado  aquelle  trabalho  em 
novembro  de  1882,  consegui  descobrir  tudo  quanto  julguei  dever 
existir,  e  alem  d'isto  muitas  outras  antiguidades  não  esperadas, 
taes  como  uma  serie  de  monumentos  de  construcções  typicas, 
acompanhados  de  armas  de  guerra  e  de  instrumentos  de  traba- 
lho, de  pedra  e  de  bronze,  de  louças  e  de  outros  artefactos,  que 
permittiam  estremar  o  typo  tumular  de  construcção  megalithica 
da  ultima  idade  da  pedra,  d'aquelles  que  visivelmente  formavam 
grupo  separado,  uns  pelo  seu  género  de  construcção  e  outros 
por  seu  revestimento  interno,  onde  notáveis  instrumentos  de  pe- 
dra achei  associados  a  outros  metallicos  de  elevada  significação 
e  importância.  Só  as  plantas  e  perfis  dos  famosos  monumentos 


14 

descobertos  e  o  desenho  dos  artefactos  mais  característicos,  que 
cada  um  continha,  produziram  vinte  e  nove  estampas. 

Nos  logares  competentes,  em  que  hão  de  figurar  essas  es- 
tampas, relatarei  o  valioso  auxilio,  que  recebi,  na  exploração  de 
Al  cala  e  Aljezur,  do  meu  prestantissimo  amigo  e  conterrâneo,  o 
rev.d0  presbytero  António  José  Nunes  da  Gloria,  então  prior 
da  Mexilhoeira  Grande  e  actualmente  de  Bensafrim,  porque  foi 
elle  quem,  á  minha  vista,  levantou  as  plantas  e  fez  os  desenhos 
dos  descobrimentos  effeituados  nos  dois  referidos  pontos,  com 
uma  exactidão  e  nitidez  inexcediveis,  sendo  sempre  óptimo  e 
constante  companheiro  meu  durante  aquelles  trabalhos. 

Houve,  pois,  imperiosa  necessidade  de  ampliar  mui  sensivel- 
mente a  carta  e  de  reformar  muitos  dos  seus  signaes  de  conven- 
ção, em  vista  dos  critérios  com  que  a  necropole  de  Alcalá  veiu 
mostrar  as  typicas  construcções  monumentaes  e  os  artefactos 
que  podem  caracterisar  a  transição  da  ultima  idade  da  pedra 
para  a  primeira  dos  metaes;  o  que  em  parte  alguma  do  reino  se 
tinha  ainda  achado. 

A  carta  prehistorica  teve  portanto  de  passar  por  uma  quasi 
radical  transformação ;  mas  tudo  estava  concluído  e  entregue  em 
março  de  1883  á  empreza  que  o  governo  incumbira  do  trabalho 
artístico,  e  se  não  teve  immediata  publicidade,  foi  porque  só  em 
30  de  março  de  1886,  essa  empreza  acabou  de  entregar  quinze 
estampas  pertencentes  a  este  volume!  E  como  ellas  saíram,  pela 
maior  parte ! 

Tudo  quanto  pertence  ao  período  neolithico  será  descripto 
n'este  volume  e  o  segundo  completará  a  descripção  de  todos  os 
característicos  até  agora  descobertos  no  Algarve,  respectivos  á 
transição  da  ultima  idade  da  pedra  para  a  primeira  dos  metaes, 
á  idade  do  bronze  e  a  primeira  idade  do  ferro. 

Se  d'este  modo  fica  comprehendida  a  mutua  dependência 
existente  entre  a  carta  prehistorica  e  a  obra  que  deve  descrever 
as  suas  symbologias,  consequentemente  deverá  também  enten- 
der-se  que  a  authenticidade,  tanto  da  carta  como  da  obra,  só 
pôde  ser  comprovada  pelo  museu  que  colligi,  e  fundei  em  1880, 


15 

addicionando-se-lhe,  nos  logares  competentes,  os  característicos 
posteriormente  descobertos  e  os  existentes  em  varias  collecções 
particulares. 

A  carta,  a  obra  e  o  museu  constituem  portanto  o  quadro  ge- 
ral (Testes  trabalhos,  isto  é,  um  todo  homogéneo  e  inseparável, 
e  completam  o  systema,  inteiramente  novo  neste  paiz,  que  deve 
racionalmente  reger  os  futuros  trabalhos  archeologicos  do  reino, 
em  vez  de  se  consentir  que  á  concorrência  publica  se  apresen- 
tem quaesquer  museus  ou  exposições  de  antiguidades,  cujo  pro- 
gramma  de  organisação  não  seja  scientificamente  proposto  e 
competentemente  approvado,  a  fim  de  que  taes  instituições,  per- 
manentes ou  temporárias,  não  sirvam  para  ministrarem  á  sabe- 
doria estrangeira,  sobretudo,  um  grosseiro  testemunho  do  atra- 
zamento  em  que  jaz  aqui  uma  sciencia,  que  em  todas  as  nações 
civilisadas  está  continuamente  progredindo. 

Por  isso,  pois,  ouso  invocar  a  attenção  dos  poderes  públicos 
para  o  museu  archeologico  do  Algarve,  que  o  governo  me  in- 
cumbiu de  fundar,  principalmente  para  a  comprovação  directa  da 
carta  archeologica,  assim  como  para  terem  publica  exhibição  as 
antiguidades  d'esta  zona  geographica. 

E  preciso  reviver  e  manter  esse  museu,  inutilmente  escon- 
dido, desde  agosto  de  1881,  nas  arrecadações  da  academia  de 
bellas  artes;  é  mister  não  confundil-o  com  qualquer  outra  insti- 
tuição, nem  alterar  a  ordem  systematica  do  seu  organismo.  Deve, 
emfim,  o  governo  ceder  todas  as  antiguidades  provenientes  d'esta 
província  ao  instituto  archeologico  do  Algarve,  que  fundei  em 
1882  na  cidade  de  Faro,  porque  somente  alli  poderá  o  museu  ser 
conservado  intacto;  só  alli  poderá  manter-se  congruente  aos  fins 
da  sua  especial  instituição;  só  alli  poderá  progredir,  porque  as 
principaes  collecções  particulares,  que  já  são  muitas  e  valiosas 
em  toda  a  província,  contribuirão  para  o  seu  enriquecimento ;  só 
alli  se  poderão  addicionar-lhe  os  monumentos  que  com  frequência 
estão  apparecendo  em  quasi  todas  as  circumscripções  municipaes, 
e  porque  só  alli  reassumirá  a  feição  geographica  que  lhe  compete, 
será  mais  sensível  a  sua  significação  e  abrirá  um  novo  horisonte 


16 

ao  progresso  da  instrucção  superior,  de  que  tanto  carece  este 
território,  onde  não  faltam  talentos  e  illustrações  para  honrarem 
o  paiz,  tomando  o  logar  que  lhes  compete  nos  grandes  certames 
scientificos  próprios  d'este  século. 

A  publicação  da  carta  paleoethnologica  do  Algarve  será  suf- 
ficiente  para  mostrar  esta  necessidade  a  todos  os  entendimentos 
despreoccupados,  que  souberem  julgar  com  justo  acerto  a  utili- 
dade de  uma  tão  conscienciosa  reclamação;  pois  os  signaes  de 
convenção  internacional  que  indicam  as  antiguidades  prehistori- 
cas  até  hoje  alli  descobertas,  exigem  uma  comprovação  authen- 
tica,  e  esta  comprovação  só  a  pode  ministrar  o  museu  com  os 
seus  documentos  monumentaes  devidamente  ordenados. 

A  conveniência  que  houve  em  1880  para  se  ordenar  a  fun- 
dação do  museu  do  Algarve  augmentou  na  razão  directa  do 
grande  accrescimo  de  descobrimentos,  que  a  exploração  comple- 
mentar poz  á  vista.  O  que  a  boa  razão  aconselha,  o  que  a  con- 
veniência scientifica  reclama,  é  que  esse  museu,  essencialmente 
provincial,  seja  reorganisado,  agora  que  está  muito  mais  enri- 
quecido, para  ficar,  onde  deve  estar,  permanentemente  aberto,  e 
apto  para  a  comprovação  das  cartas  prehistorica  e  histórica 
d?esta  província. 

Nos  outros  paizes  não  se  manda  fechar  os  museus,  manda-se 
que  estejam  abertos  e  promove-se  o  seu  progresso.  Quem  os 
manda  fechar,  caminha  certamente  na  vereda  do  retrocesso. 

Terminando  as  considerações  que  ficam  expendidas,  relatarei 
algumas  circumstancias  respectivas  á  coordenação  da  carta  e  aos 
grandes  embaraços  que  me  suscitou. 

Quando  acceitei  a  incumbência  de  um  serviço  tão  complexo  e 
dfficil,  fui  immediatamente  indagar  na  direcção  geral  dos  traba- 
lhos geodésicos,  se  este  território  já  estava  representado  na  carta 
chorographica,  por  ser  esta  a  base  que  a  todos  os  respeitos  me 
convinha  preferir,  tanto  porque  a  sua  exactidão  devera  inspirar 
a  maior  confiança,  como  porque  a  escala  de  1 :  100:000  era  muito 
sufficiente  para  abranger  com  clareza  e  precisão  local  todos  os 
signaes  de  convenção;  mas  no  anno  seguinte  deveria  começar  a 


17 

triangulação  de  segunda  ordem  e  só  um  anno  depois  poderia 
dar-se  principio  ao  trabalho  chorographico,  o  qual  ainda  não  fica- 
ria terminado  d'ahi  a  dois  annos. 

A  maior  carta  do  Algarve  era  a  que  tinha  sido  publicada  em 
1842  pelo  conhecido  escriptor  João  Baptista  da  Silva  Lopes,  e 
que,  segundo  se  diz,  foi  levantada  em  1826  por  um  engenheiro 
residente  em  Lagos,  n  uma  escala  dividida  em  léguas  de  20  ao 
grau,  correspondente  a  1  :  200:000  approximadamente,  de  modo 
que  ficou  assim  decomposta: 

lm  :  200:000m  —  0,n,l  :  20:000m  —  0ra,01  :  2:000m  — 
0m.001  :  200m—  0m,0005  :  100m  —  O  millimetro  representa 
portanto  200  metros. 

Esta  escala,  parecendo  á  primeira  vista  assaz  favorável  para 
a  marcação  dos  signaes  de  convenção,  não  só  nos  trabalhos  de 
campo  como  nos  do  seu  definitivo  regulamento,  por  vezes  me 
deixou  reconhecer  a  sua  insuficiência,  obrigando-me  a  um  amon- 
toamento  diíficil  de  signaes  nos  pontos  em  que  os  vestígios  ar- 
cheologicos  estavam  em  grande  numero  situados  a  curtas  distan- 
cias entre  si,  como  principalmente  os  achei  na  freguezia  da  Me- 
xilhoeira  Grande. 

A  própria  carta  não  é  rigorosamente  exacta  quanto  á  distri- 
buição das  aguas  e  do  relevo  orographico,  como  praticamente  al- 
gumas vezes  observei.  Tencionando  porém  transferir  para  a  carta 
chorographica  official  a  carta  geral  de  archeologia  prehistorica  e 
histórica,  reservo  para  então  as  rectificações  que  julgue  preciso 
fazer. 

Ninguém  poderia  recorrer  á  carta  geographica  do  reino, 
tendo  de  serem  marcadas  na  zona  do  Algarve  umas  trezentas 
estações  archeologicas,  tanto  mais  havendo  muitas  com  caracte- 
rísticos de  diversas  epochas,  que  de  modo  algum  seria  possível 
indicarem-se  na  diminuta  escala  de  1  :  500:000. 

Nos  outros  estados  da  Europa,  em  que  aos  estudos  geogra- 
phicos  e  archeologicos  se  tem  dado  a  maior  acceitação  e  activi- 
dade, não  se  lueta  com  estas  difficuldades  fundamentaes,  nem 
com  a  falta  de  outros  elementos  indispensáveis.  Com  a  nota  junta 

2 


18 

dou  a  este  respeito  um  curioso  exemplo,  transcrevendo  a  lista, 
colligida  pelo  sr.  E.  Chantre,  das  cartas  de  maior  escala  publi- 
cadas até  1875 '. 

Com  relação  a  livros  de  sciencia,  dá-se  quasi  o  mesmo  caso. 
Procuram-se  nas  bibliotbecas  publicas  e  apenas  em  pequeno  nu- 
mero se  acham. 

Por  isso,  pois,  quando  ousei  acceitar  o  encargo  de  levantar  a 
carta  archeologica  do  Algarve,  não  desconheci  as  difficuldades 
que  me  estavam  reservadas;  confiei  porém  no  conhecimento  par- 
cial que  antecedentemente  havia  adquirido  do  solo  d'esta  pro- 


1  Inglaterra  —  carta  na  escala  de 1  :  063,360  em  1 10  folhas 

Áustria 1 :  144,000  »  31 

Mera 1:288,000  »  2 

Idem 1:432,000  »  2 

Baviera 1:050,000  »  112 

Idem 1:500,000  »  3 

Bélgica 1:020,000  »  450 

Idem 1 :  040,000  »  72 

Idem 1:160,000  »  4 

Bohcmia 1:144,000  »  38 

Idem , 1 :  288,000  »  4 

Idem 1:432,000  »  1 

Dinamarca ...  1:080,000  »  81 

França 1:080,000  »  274 

Idem 1 :  320,000  »  33 

Idem 1 :  864,000  »  4 

Hanover 1 :  100,000  »  67 

Idem 1 :  250,000  »  4 

Hungria 1:144,000  »  198 

Idem 1:288,000  »  17 

Idem 1:432,000  »  9 

Itália  central 1 :  086,400  »  52 

Antigos  estados  Sardos 1:050,000  »  91 

Idem 1:250,000  »  6 

Paizes  Baixos 1 :  050,000  »  62 

Polónia 1:126,000  »  60 

Prússia 1:100,000  »  319 

Rússia 1:126,000  »  792 

Saxe 1:100,000  »  28 

Suécia 1:100,000  »  233 

Idem 1 :  200,000  »  28 

Suissa 1:100,000  »  26 

Idem 1:250,000  »  4 

Wurtemberg 1 :  050,000  »  55 

Idem 1 :  200,000  »  4 

Idem 1 :  400,000  »  1 


19 

vincia  e  nos  estudos  que  já  tinha  feito,  para  as  aiírontar  e  ven- 
cer até  onde  podessem  chegar  os  meus  esforços. 

Com  effeito,  a  carta  de  archeologia  histórica,  ainda  inédita, 
e  a  prehistorica,  embora  no  futuro  possam  ser  mui  ampliadas 
em  razão  de  novos  descobrimentos,  já  mostram  a  grande  riqueza 
archeologica  d'este  território,  alcançando  até  o  período  neolithico, 
sem  comtudo  terem  sido  exploradas  as  suas  numerosas  cavernas 
por  onde  devera  ter-se  começado  a  exploração  geral. 

Devo  entretanto  confessar,  que  muito  sinto  não  ter  podido 
dispor  de  uma  carta,  que  representasse  com  verdade  a  orogra- 
phia  d'esta  accidentada  região,  a  qual  muito  convinha  indicar-se 
para  melhor  deixar  sobresaír  umas  certas  leis  de  selecção  na 
distribuição  das  populações  mais  remotas  e  sobretudo  as  exce- 
pções que  encontrei,  principalmente  em  referencia  á  idade  do 
bronze;  pois  que  é  caso  observado  noutros  paizes,  que  a  civili- 
sação  neolithica  geralmente  distribuiu  o  seu  trajecto  de  occupa- 
ção,  preferindo  os  plan'altos  e  vertentes  das  serras,  ao  passo  que 
os  vestígios  da  idade  do  bronze  são  mais  frequentes  junto  das 
antigas  vias  de  communicação,  na  proximidade  das  collinas,  nas 
montanhas  e  nos  flancos  marginaes  dos  rios  e  ribeiras.  Não  con- 
fiando, porém,  na  exacção  do  esboço  que  figura  o  relevo  monta- 
nhoso e  as  suas  complicadas  ramificações,  resolvi  omittil-o,  não 
só  por  este  motivo,  como  porque  na  escala  de  1  :  200:000,  nos 
tractos  mais  abundantes  de  vestígios  archeologicos,  as  curvas  de 
nível  poderiam  confundir-se  com  os  traços  dos  signaes  de  con- 
venção, dificultando  assim  a  leitura. 

Teria  também  sido  mui  conveniente,  que  a  carta  prehistorica 
se  tivesse  podido  estampar  sobre  o  plano  da  carta  geológica. 
Mais  facilmente  assim  se  reconheceria,  que  as  cavernas  e  grutas 
naturaes  occupam  sempre  as  rochas  sedimentares,  em  maior  es- 
cala na  serie  mesozóica,  principalmente  na  formação  dos  calcareos 
jurássicos  e  em  mais  crescido  numero  no  jurássico  superior.  No- 
tar-se-ía  que  não  só  nas  regiões  jurássicas  ha  cavernas  e  ves- 
tígios de  occupação,  mas  também  nos  terrenos  cretáceos,  assim 
como  na  serie  cainozoica,  tanto  no  terciário  lacustre  superior  e 


20 

inferior,  como  no  marino.  Observar-se-ía  igualmente,  que  al- 
guns pontos  prehistoricos,  que  occupam  a  zona  do  irias,  estão 
quasi  sempre  no  contacto  do  jurássico  superior,  na  proximidade 
de  grandes  cavernas  ou  de  correntes  de  agua.  Do  mesmo  modo 
se  reconheceria,  que  na  serie  paleozóica,  onde  impera  a  maior  ari- 
dez e  onde  as  aptidões  do  solo  são  espontaneamente  menos  pro- 
ductoras,  apenas  no  carbonífero  inferior,  mas  somente  nas  mar- 
gens das  ribeiras,  ou  junto  dos  seus  afíluentes,  se  acham  critérios 
prehistoricos.  Por  excepção,  houve  mui  singularmente  um  dila- 
tado tracto  de  rocha  eruptiva,  que,  na  serie  paleozóica,  rompendo 
os  schistos,  attingiu  nos  seus  pontos  mais  elevados  as  altitudes 
de  903  e  755  metros  sobre  o  nivel  do  mar,  como  foram  as  ser- 
ras da  Foya  e  da  Picota  de  Monchique,  cujo  vall'alto,  formado 
pelas  duas  serras,  apenas  raros  vestígios  de  occupação  prehisto- 
rica  manifestou  em  cotas  sempre  superiores  a  400  metros,  pro- 
ximamente ás  nascentes  das  ribeiras  de  Arão  e  do  Boina.  Aos 
selvagens  d'esses  tempos  remotíssimos  não  escaparam  pois  aquel- 
las  encantadoras  paragens,  cuja  orographia  actual  deve  ser  a 
que  já  tinha  na  terceira  idade  da  pedra,  geologicamente  ligada 
á  ultima  epocha  dos  tempos  quaternários.  No  capitulo  respectivo 
ás  antas  ou  dolmens,  que  presumptivamente  existiram  sobre  o 
solo,  expenderei  algumas  considerações  que  este  caso  excepcio- 
nal parece  suggerir. 

São  muitas  e  elucidativas  as  concepções  e  assaz  significativos 
os  corollarios  que  a  critica  pode  derivar  das  cartas  archeologi- 
cas.  Foi  o  que  me  succedeu,  observando  a  carta  como  ella  era 
após  o  reconhecimento  geral  concluído  no  fim  do  anno  de  1878. 
N'aquelle  reconhecimento,  feito  a  prasos  contados,  não  me  foi 
possível  emprehender  minuciosas  pesquizas  em  todos  os  pontos  as- 
signalados  com  apparentes  indícios  de  occupação  antiga,  e  muito 
menos  empregar  continuamente  o  systema  de  procurar  por  tenta- 
tiva o  que  a  terra  occultava  aos  olhos  do  observador  insciente. 

Para  levar  ao  estado  de  máxima  perfeição  um  tal  trabalho, 
seria  indispensável  empregar  muitos  annos  de  assíduas  fadigas, 
e  mesmo  despezas  avultadas. 


21 

Naquella  primeira  exploração  notei  com  estranheza,  que  as 
extremas  estações  neolithicas  occupassem  ao  poente  o  Serro 
Grande,  perto  de  Lagos,  e  ao  nascente  o  sitio  da  Marcella,  pouco 
dislante  de  Cacella,  havendo  portanto  uma  grande  distancia 
d'esle  ponto  até  á  margem  direita  do  Guadiana,  e  muito  maior 
ainda  do  Serro  Grande  até  á  extremidade  norte  Occidental  da 
provinda.  Esta  circumstancia  me  deixou  presumir  que  outras 
estações  deviam  ter  existido  além  e  áquem  dos  referidos  pontos; 
porquanto,  no  seguimento  das  orientações  indicadas,  era  fre- 
quente o  apparecimento  de  instrumentos  de  feição  neolithica,  ge- 
ralmente de  rochas  schistosas  (predominando  o  schisto  amphi- 
bolico),  mui  similhantes  aos  d'aquellas  ultimas  estações  e  aos 
das  intermédias. 

Todas  estas  reflexões  fazia  eu  em  presença  da  carta,  quando 
em  novembro  de  1881  o  sr.  José  da  Costa  Serrão  me  partici- 
pava de  Aljezur  ter  alli  descoberto  a  curta  distancia  da  igreja 
matriz  umas  covas,  d'onde  estava  mandando  extrahir  pedra  para 
obras,  em  que  havia  muitos  ossos  humanos,  numerosos  instru- 
mentos de  pedra  lascada,  polida  e  gravada,  louças  e  outros  arte- 
factos, com  que  em  seguida  engrandeceu  mui  bizarramente  as 
minhas  novas  collecções. 

Com  estes  objectos  á  vista,  notei  predominar  n'aquelle  depo- 
sito mortuário  o  característico  de  numerosas  placas  de  schisto 
negro,  ou  ardosiano,  com  gravuras  geométricas,  encontrado  em 
quasi  todas  as  estações  neolithicas  do  Algarve;  que  muitos  in- 
strumentos de  pedra  eram  similhantes  aos  que  tinha  achado  nos 
monumentos  da  Nora  e  da  Marcella,  situados  quasi  na  extremi- 
dade sul  oriental  da  província,  que  havia  uma  conta  de  steatite 
polida,  um  tanto  parecida  com  outra  de  serpentina  pertencente 
ao  dolmen  coberto  de  Alcalá,  e  um  vaso  de  barro  de  suspensão 
inteiramente  idêntico  na  forma  a  outro,  de  maiores  dimensões, 
encontrado  avulso  entre  Cacella  e  Villa  Real,  no  sitio  da  Torre 
dos  Frades,  o  qual  tinha  sido  achado  em  1876  e  me  fora  offere- 
cido  por  António  Marcellino  Madeira,  juntamente  com  três  in- 
strumentos pontagudos  de  pedra  polida,  de  configuração  approxi- 


22 

maciamente  cónica.  Analysando  detidamente  todas  estas  particu- 
laridades locaes,  e  combinando  as  informações  já  obtidas  com  o 
resultado  da  minha  própria  inspecção  em  vários  pontos,  formulei 
logo,  sem  a  minima  hesitação,  as  seguintes  peremptórias  propo- 
sições : 

Que  a  linha  central,  que  ligava  as  estações  neolithicas,  des- 
cobertas até  1878,  podia  prolongar-se  em  sentidos  oppostos  e 
representar  todo  o  território  da  província  com  estações  comple- 
mentares, que  mui  presumptivamente  deviam  existir. 

Que,  sendo  similhantes  aos  de  Aljezur  alguns  característicos 
ethnographicos  encontrados  na  estação  da  Marcella  e  avulso  no 
sitio  da  Torre  dos  Frades,  alguns  kilometros  mais  próximo  da 
margem  direita  do  Guadiana,  nesse  sitio  devera  achar-se  uma 
estação. 

Que,  existindo  uma  estação  no  sitio  da  Torre  dos  Frades,  o 
seu  seguimento  deveria  prolongar-se  pela  orientação  do  norte, 
acompanhando  a  margem  do  rio,  ou  haver  passado  á  margem 
opposta,  occupando  o  litoral  andaluz. 

Que,  sendo  privativo  do  território  de  Portugal  o  mui  singular 
característico  das  placas  de  schisto  gravadas,  já  manifestado  em 
quasi  todas  as  estações  neolithicas  do  Algarve,  e  mais  copiosa- 
mente na  de  Aljezur,  o  proseguimento  d'este  característico  iso- 
ladamente achado  em  vários  pontos  do  reino  já  podia  ser  mar- 
cado no  Alemtejo,  na  Extremadura  e  na  Beira,  até  á  villa  de 
Ancião. 

Gomo  todas  estas  proposições  só  podiam  ser  demonstradas 
com  o  descobrimento  das  presuppostas  estações,  com  effeito  as- 
sim succedeu,  mandando  o  governo  fazer,  neste  sentido,  uma 
exploração  complementar. 

Tudo  quanto  havia  aventurosamente  dito  dever  existir,  foi 
achado,  assim  como  outras  muitas  antiguidades,  de  que  não 
havia  indicio  já  observado,  appareceram  em  numerosos  logares. 

Os  dois  primeiros  volumes  d'esta  obra,  como  já  disse,  des- 
creverão na  sua  competente  ordem  todos  os  descobrimentos  res- 
pectivos á  prehistoria  do  Algarve,  apresentando  as  plantas  e 


23 

perfis  dos  monumentos  e  figurados  em  estampas  os  característi- 
cos principaes  de  cada  um,  assim  como  outros  muitos  que  obtive, 
achados  avulso  por  trabalhadores  do  campo,  nos  logares  que  vão 
indicados  na  carta  para  poderem  ser  pesquizados  por  futuros 
exploradores,  que  certamente,  guiados  por  este  característico, 
devem  ainda  encontrar  numerosos  monumentos.  As  grandes  dif- 
iculdades estão  vencidas. 

A  carta  ganhou  com  a  demora  na  publicidade,  porque  se 
engrandeceu  com  mais  cincoenta  e  sete  pontos  archeologicos, 
que  a  exploração  complementar  lhe  ministrou. 

A  carta  prehistorica  de  Allemanha,  encarregada  ha  muitos 
annos  a  uma  commissâo  de  sábios,  e  mais  outras  que  estão  sendo 
desejadas  com  geral  interesse,  ainda  se  estão  organisando,  e  por 
isso,  sabendo-se  que  n'este  paiz  é  quasi  completa  a  ausência  de 
elementos  para  se  poder  levar  de  vencida  um  trabalho  d'este  gé- 
nero, inteiramente  novo  pelo  systema  e  pelos  fins  a  que  fora 
destinado,  não  poderá  estranhar-se  o  retardamento  com  que  hoje 
apparece,  tanto  mais  que  a  principal  demora  provém  de  não  es- 
tarem logo  promptas  em  1883  as  estampas  pertencentes  a  este 
livro,  como  deviam  estar,  mas  só  agora,  que  accrescento  este 
paragrapho,  para  poder  declarar  que  as  recebi  no  dia  30  de 
março  de  1886! 

Com  a  publicação  da  carta  prehistorica  do  Algarve  ficaram 
portanto  estabelecidos,  como  já  disse,  os  fundamentos  e  o  sys- 
tema, que  deverão  adoptar-se  para  o  proseguimento  do  estudo  e 
comprovação  das  antiguidades  existentes  nas  outras  zonas  geo- 
graphicas  do  reino. 

Os  que  por  obstinado  capricho  ou  ignorância  quizerem  afas- 
tar-se  d'este  caminho,  inutilisarão  o  effeito  dos  seus  trabalhos, 
ficando  a  meio  aeculo  de  distancia  das  exigências  da  sciencia. 
Os  esforços  que  houverem  de  empregar  para  organisarem  por 
outra  forma  os  estudos  archeologicos  do  reino,  sejam  quaes  forem 
as  suas  supremacias  académicas,  scientificas,  ou  litterarias,  fica- 
rão transviados  do  único  rumo  que  se  deve  seguir;  e  escusado  é 
tentarem  engendrar  inventários  de  monumentos  nacionaes,  que 


24 

nunca  hão  de  conseguir  o  seu  alistamento ;  pois  não  é  cousa  que 
se  organise  com  circulares  aos  municípios,  geralmente  compostos 
de  individuos  pouco  versados  em  archeologia  e  architectura  mo- 
numental; não  se  elabora  com  informações  inscientes  e  desorde- 
nadas, e  muito  menos  se  pode  fazer  parodiando-se  as  grandes 
commissões  scientificas,  que  na  França,  na  Allemanha  e  noutras 
nações  se  occupam  do  apuramento  dos  seus  padrões  monumentaes. 

Não  foram  as  municipalidades,  nem  os  informadores  sem 
critério,  que  apuraram  para  a  grande  carta  archeologica  da 
França  mil  seiscentos  trinta  e  oito  menhirs  isolados,  distribuídos 
por  oitenta  departamentos,  e  três  mil  quatrocentos  e  dez  dolmens. 
Estes  trabalhos  só  se  podem  fazer  quando  haja  quem  os  saiba 
dirigir,  tendo-se  o  bom  senso  de  não  se  perguntar  cousa  alguma 
a  quem  não  possa  responder. 

O  cadastro  dos  monumentos  de  uma  nação  é  a  carta  archeo- 
logica do  seu  território,  levantada  em  devida  regra  e  authentica- 
mente  comprovada! 

Para  a  conclusão  do  meu  programma  falta-me  a  publicação 
da  carta  de  archeologia  histórica  do  Algarve  com  as  respectivas 
antiguidades  divididas  em  epochas  distinctas. 

A  carta  geral,  de  que  deduzi  a  prehistorica,  conserva  ainda 
os  signaes  arbitrários  de  minha  invenção,  esperando  por  uma 
legenda  internacional,  que  venha  substituil-os.  Essa  legenda  está 
por  mim  proposta  á  sociedade  franceza  de  archeologia. 

Já  em  diversos  congressos  se  tem  alludido  a  este  assumpto, 
sem  que  se  haja  tratado  do  seu  regulamento,  como  especialmente 
se  fez  com  relação  ás  cartas  paleoethnologicas. 

Cada  auctor  tem  pois  tido  necessidade  de  inventar  signaes 
symbolicos  para  representar  as  antiguidades  históricas  que  na 
successão  dos  tempos  ficaram  vinculadas  nos  territórios  submet- 
tidos  ao  seu  exame;  o  que  certamente  causa  grande  confusão  e 
impede  a  facilidade,  que  convém  preparar  para  a  prompta  inter- 
pretação dos  característicos  archeologicos  de  cada  paiz. 

O  sr.  Cazalis  de  Fondouce,  publicando  em  1879  a  sua  excel- 
lente  carta  archeologica  do  departamento  do  Herault,  indicou  as 


25 

antiguidades  prehistoricas  até  á  idade  do  bronze  com  os  signaes 
da  legenda  internacional,  e  considerando  como  histórica,  para  o 
seu  paiz,  a  idade  do  ferro,  que  dividiu  em  três  epochas,  para 
cada  uma  d'estas  designou  um  signal,  abrangendo  na  ultima  a 
dominação  wisigothica.  Em  relação  á  historia  de  França,  apenas 
teve  necessidade  de  accrescentar  mais  um  symbolo  para  com  elle 
marcar  as  localidades  habitadas  no  fim  da  epocha  carlovingiana. 

A  falta  de  uma  legenda  universal  para  as  cartas  de  archeo- 
logia  histórica  ha  muitos  annos  é  sentida.  Já  em  tempo  do  cele- 
bre De  Caumont  este  assumpto  foi  algumas  vezes  lembrado, 
assim  como  posteriormente  o  tem  sido  por  vários  interessados. 
Occorrendo-me,  porém,  que  não  podia  haver  melhor  occasião 
para  renoval-o  do  que  perante  o  congresso  annual  da  sociedade 
franceza  de  archeologia,  a  que  tenho  a  honra  de  pertencer,  ao 
que  em  1883  se  reuniu  em  Gaen,  enviei  a  minha  proposta,  diri- 
gindo-a  ao  sábio  secretario  geral,  o  sr.  Júlio  de  Laurière,  que 
tive  a  fortuna  de  conhecer  em  Lisboa,  como  fazendo  parte  do 
congresso  de  anthropologia  e  de  archeologia  prehistorica. 

O  sr.  Júlio  de  Laurière,  distinctissimo  archeologo,  que  tantas 
vezes  visitou  o  museu  do  Algarve,  e  tanto  exaltou,  por  sua  ex- 
trema benevolência,  os  meus  limitados  serviços  no  seu  famoso 
relatório,  publicado  em  1881  pela  referida  sociedade,  ficou  en- 
carregado por  aquelle  congresso,  juntamente  com  o  sr.  conde  de 
Marsy,  de  incluir  este  assumpto  no  programma  do  congresso  que 
em  1884  se  reuniu  em  Pamiers,  no  departamento  do  Ariège. 

Os  dois  sábios  acima  referidos  vão  pois  formular  e  propor 
ao  congresso,  que  ha  de  reunir-se  em  Nantes,  no  mez  de  julho 
de  1886,  o  regulamento  dos  signaes  de  convenção  para  as  cartas 
parciaes  e  geraes  de  archeologia  histórica.  Relativamente  a  Por- 
tugal, dignou-se  o  sr.  de  Laurière  encarregar-me  de  propor  as 
epochas  e  os  géneros  de  monumentos  históricos,  até  o  século  xvi, 
que  se  devem  indicar  por  signaes  de  convenção. 

Entendi,  porém,  não  dever  arrogar-me  este  encargo  senão 
com  referencia  aos  descobrimentos  e  estudos  de  que  fui  ofíicial- 
mente  incumbido  no  Algarve.  Para  representar  as  antiguidades 


^0 

históricas  (Testa  província,  formulei  dois  quadros  com  os  signaes 
symbolicos  correspondentes  aos  géneros  e  epochas  a  que  perten- 
cem e  dei  publicidade  a  este  assumpto  no  n.°  41.°  (dezembro  de 
1885)  do  Jornal  de  sciencias  mathematicas,  physicas  e  naturaes, 
pertencente  á  academia  real  das  sciencias  de  Lisboa,  sob  o  titulo 
de  projecto  de  legenda  symbolica  para  a  elaboração  e  interpretação 
da  carta  de  archeologia  histórica  do  Algarve.  Mandei  em  seguida 
reproduzir  esta  publicação  num  opúsculo,  que  enviei  a  todos  os 
institutos  scientificos  e  litterarios,  que  em  Portugal  se  occupam 
de  estudos  históricos,  geographicos  e  archeologicos,  a  todos  os 
periódicos  de  Lisboa,  Porto,  Coimbra  e  de  outras  terras  do  reino 
que  me  foram  indicados,  assim  como  particularmente  a  alguns 
archeologos,  a  fim  de  que  podessem  indicar  outras  antiguidades 
históricas  já  reconhecidas  no  reino,  que  não  achassem  nomeadas 
e  symbolisadas  nos  ditos  dois  quadros,  para  assim  os  poder  com- 
pletar e  remetter  á  mencionada  commissão  franceza;  mas  ne- 
nhuma communicação  me  foi  dirigida,  e  por  isso,  quando  nas 
outras  províncias  houver  quem  se  proponha  levantar  cartas  de 
archeologia  histórica,  ninguém  poderá  increpar-me  por  alguma 
omissão,  principalmente  de  signaes  radicaes,  que  haja  nos  qua- 
dros exclusivamente  respectivos  ao  Algarve. 

Ainda  assim  presumo  não  haver  muitos  mais  géneros  de  an- 
tiguidades históricas  no  reino,  e  por  isso  poderão  servir  os  qua- 
dros formulados  para  as  do  Algarve,  addicionando-se-lhes  arbi- 
trariamente as  designações  e  signaes  com  que  seja  mister  indicar 
os  que  forem  privativos  de  algumas  localidades. 

Logo,  pois,  que  tenha  publicidade  a  lei  das  convenções  inhe- 
rentes  á  elaboração  das  cartas  de  archeologia  histórica,  terão  os 
archeologos,  meus  conterrâneos,  os  elementos  mais  precisos  para 
emprehenderem  o  levantamento  de  cartas  parciaes  das  circum- 
scripções  que  queiram  estudar,  tomando  por  base  a  carta  choro- 
graphica  official,  como  sendo  a  única  que  por  emquanto  merece 
preferencia  em  razão  da  confiança  que  deve  inspirar  e  da  sua 
mui  apropriada  escala. 

As  cartas  de  archeologia  histórica  devem  começar  pela  re- 


n 

presentação  de  todos  os  critérios  referentes  á  epocha  preromana, 
a  fim  de  poderem  consignar  as  cidades  que  receberam  o  foro  de 
município,  de  colónia,  ou  algum  outro  privilegio,  no  primeiro  sé- 
culo do  império,  e  bem  assim  os  característicos  archeologicos, 
averiguadamente  synchronicos,  ou  das  populações  que  occupa- 
vam  esta  zona  occidental  da  península  hispânica  anteriormente 
ao  definitivo  domínio  romano. 

Feito  o  reconhecimento  geral  da  circumscripção  territorial, 
que  se  pretende  representar  na  carta  archeologica.  convém  ali- 
star chronologicamente  as  nacionalidades  que  ahi  ficaram  caracte- 
risadas,  e  indical-as  na  carta  pelas  suas  designações,  juntando-se 
ao  signal  radical  de  cada  característico  o  da  epocha  respectiva, 
ou  tantos  signaes  radicaes  e  de  epocha  em  cada  logar,  quantas 
foram  as  nacionalidades  que  nelle  deixaram  vestígios  da  sua 
existência.  Os  monumentos  totalmente  destruídos,  havendo  noti- 
cia escripta  que  os  descreva,  ou  mesmo  tradição  local  que  os 
designe,  devem  ser  marcados  na  carta,  comtanto  que  não  haja 
duvida  relativamente  á  epocha  da  sua  construcção.  Os  próprios 
monumentos  modernos  de  architectura  religiosa,  civil,  ou  militar 
podem  igualmente  ser  indicados. 

Para  que  estas  cartas  não  soffram  objecções  o  possam  ser 
nuthenticamente  comprovadas,  porque  só  assim  affirmarão  a  sua 
verdade  scientifica,  devem  ser  colligidos  todos  os  possíveis  cara- 
cterísticos, sendo  levantadas  as  plantas  e  perfis  das  construcções 
e  figurados  por  qualquer  forma  os  objectos  não  susceptíveis  de 
acquisição,  e  com  tudo  isso  organisar-se  um  museu  de  compro- 
vação. 

Quando  sueceda  acharem -se  algumas  provas  archeologicas 
em  logar  não  designado  na  carta  chorographica  ou  geographica, 
que  se  tenha  adoptado,  esse  logar  deve  ser  determinado  por 
triangulação  sempre  que  seja  possível,  ou  por  approximação,  to- 
mando-se  as  orientações  e  distancias  referidas  aos  dois  pontos 
mais  próximos,  que  na  carta  estejam  indicados. 

Se  num  ponto  qualquer  da  exploração  apparecer  algum  ca- 
racterístico isolado,  cuja  epocha  não  se  possa  precisamente  cias- 


28 

sificar,  mas  simplesmente  presumir,  a  sua  marcação  deve  ser 
acompanhada  do  signal  de  interrogação. 

Tendo-se  em  vista  todas  estas  prevenções,  a  carta  ficará 
sendo  o  cadastro  das  antiguidades  históricas  do  território  que 
representa,  e  uma  parcella  já  preparada  para  occupar  o  logar 
que  lhe  competir  na  carta  archeologica  geral  do  reino. 

Estes  trabalhos  parciaes  serão  portanto  elementos  de  muita 
utilidade,  que  os  archeologos  nacionaes  podem  ir  coordenando 
como  collaboradores  da  grande  obra,  que  deve  um  dia  represen- 
tar as  antiguidades  monumentaes  d'este  paiz,  se  ficarem  compe- 
tentemente comprovados  e  descriptos. 

No  terceiro  tomo  d'esta  obra,  a  que  pertence  a  carta  de  ar- 
cheologia  histórica  do  Algarve,  tratarei  este  assumpto  com  o  des- 
envolvimento que  reclama.  Entretanto  mais  algumas  noções  se 
podem  desde  já  achar  no  trabalho  preparatório,  que  publiquei 
no  mencionado  Jornal  das  meneias  mathematicas,  physicas  e  na- 
tnraes  da  academia  real  das  sciencias. 

Aos  sábios  archeologos  portuguezes,  aos  meus  illustrados 
collegas  nas  sociedades  scientificas,  a  que  tenho  a  honra  de  per- 
tencer, e  a  todas  as  mais  pessoas  competentes  submetto  o  exame 
consciencioso  da  carta  paleoethnologica  do  Algarve,  solicitando 
os  salutares  reparos  e  amigáveis  advertências,  que  julguem  con- 
veniente dirigir-me,  para  assim  corrigir  os  erros  ou  supprir 
as  omissões  que  hajam  de  notar,  a  fim  de  poder  aproveitar  as 
suas  judiciosas  indicações  quando  houver  de  passar  a  maior  es- 
cala, e  sobre  uma  carta  mais  correcta,  a  representação  geral  das 
antiguidades  prehistoricas  e  históricas  d'esta  zona  meridional  do 
nosso  paiz. 

Aos  sábios,  que  forem  sinceramente  bem  intencionados,  bas- 
tará olharem  com  alguma  attenção  para  o  primeiro  trabalho  que 
neste  género  se  publica  em  Portugal,  representando  as  antigui- 
dades prehistoricas  até  hoje  verificadas  numa  província  inteira, 
para  comprehenderem  quantos  descobrimentos  significa,  quão 
aturadas  fadigas  e  grandes  difficuldades  me  foi  mister  empregar 
e  vencer jjara  poder  agora  abandonal-o  á  luz  da  publicidade. 


Este  trabalho  seria  certamente  muito  mais  perfeito,  se  hou- 
vera sido  encarregado  a  uma  corporação  scientifica,  que  entre  os 
seus  mais  abalisados  especialistas  repartisse  a  complexidade  dos 
assumptos,  que  abrange  no  seu  conjuncto;  muito  mais  substan- 
cioso seria,  muito  maior  auctoridade  ficaria  tendo.  Fiz.  porém,  o 
que  me  pareceu  ser  mais  acertado,  e  para  que  não  peccasse  por 
falia  de  authenticidade,  recorri  á  comprovação  directa,  colligindo 
e  coordenando  os  critérios  archeologicos  locaes  no  museu  que 
fundei  em  1880,  para  com  elles  comprovar  os  signaes  da  legenda 
internacional. 

Nada  mais  estava  ao  alcance  dos  meus  limitados  esforços. 

Com  a  carta  á  vista,  se  observará  que  o  período  neolithico, 
a  idade  do  bronze  e  a  primeira  idade  do  ferro  constituem  os  ca- 
racterísticos paleoethnologicos  d'esta  região.  A  epocha  de  transi- 
ção da  ultima  idade  da  pedra  para  a  idade  do  bronze,  admira- 
velmente bem  caracterisada  em  Alcalá,  não  vae  indicada  com 
signal  próprio,  por  não  o  haver  no  quadro  geral  da  legenda  in- 
ternacional; o  que  deixa  presumir  que  este  característico  ainda 
não  estava  determinado  na  Europa  quando  em  1875  se  for- 
mulou a  lei  das  convenções,  auctorisada  pelo  congresso  de  Sto- 
ckholmo. 

Se  alguns  instrumentos  de  feição  paleolithica  existem  no 
museu  do  Algarve,  devo  declarar  não  haverem  sido  achados  em 
condições  geológicas,  e  por  isso  não  ousei  indicar  estações  pre- 
neolithicas.  Poderão  porventura  mostrar  que  essas  relíquias  ainda 
eram  conservadas  na  idade  da  pedra  polida,  como  recordação 
veneranda  da  velha  raça  que  foi  testemunha  paciente  das  enor- 
mes convulsões  que  parcialmente  modificaram  o  relevo  da  crusta 
terrestre,  que  vira  separar  do  continente  europeu,  a  retalhos  in- 
sulados, o  actual  archipelago  britannico,  que  assistira  á  porten- 
tosa alliança  do  Atlântico  com  o  Mediterrâneo  pela  submersão 
da  montanhosa  ponte  que  ligava  as  columnas  de  Hercules  e  com- 
municava  a  Africa  com  a  Europa,  e  que  ainda  em  meio  d'essas 
oscillações  immensas  pôde  sobreviver  e  transmittir-se  até  os  nos- 
sos dias,  sem  que  a  nova  raça  brachycephala,  que  lhe  succedeu, 


30 

como  se  pretende,  e  com  ella  se  mesclou,  podesse  todavia  ani- 
quilal-a. 

Ninguém  sabia,  e  talvez  ninguém  suppunha,  que  a  região 
algarviense  occultava  preciosos  thesouros  de  tempos  tão  remotos, 
que  nenhuma  chronologia  pode  alcançal-os;  mas  julguei-o  eu,  e 
julgo  que  outros  ainda  anteriores  devem  ser  achados  alli  mesmo, 
quando  neste  paiz  houver  mais  dedicação  pela  sciencia,  ou 
quando  o  paiz  tiver  percebido  que  não  hão  de  ser  as  sommas 
despendidas  no  perenne  combate  das  facções  partidárias,  que 
chegarão  a  levantar  o  seu  nivel  intellectual  ao  ponto  de  poder 
equiparar-se  ao  dos  povos  mais  cultos,  mas  aquellas  que  forem 
applicadas  ao  desenvolvimento  da  sciencia,  porque  só  á  sciencia 
cabe  essa  transformadora  missão,  esse  portentoso  privilegio. 

Pois  com  que  racional  fundamento  poderia  presumir-se  que 
esta  derradeira  região  Occidental  da  terra,  tendo  sido  inteira- 
mente habitada  na  ultima  idade  da  pedra,  por  um  povo  que  foi 
constructor  dos  dolmens  monticulados  de  Aljezur,  do  Monte 
Amarello,  do  Serro  Grande,  de  Alcalá,  do  Monte  Canellas,  do 
Monte  da  Rocha,  do  Serro  da  Pedra,  da  Nora,  da  Marcella,  de 
Cacella,  da  Torre  dos  Frades  e  do  Serro  do  Gastello,  não  tivesse 
tido  um  mais  antigo  habitador,  um  predecessor  que  surgisse  do 
mesmo  supremo  influxo,  que  outorgou  á  natureza  a  geradora  fa- 
culdade da  creação  de  quantas  faunas  e  floras  já  cobriram  a  su- 
perfície do  globo? 

N'este  tracto  de  terra,  que  as  aguas  banham  por  três  lados, 
não  se  acharam  ainda,  certamente,  inconcussos  vestigios  das  pri- 
meiras gerações  humanas  em  depósitos  propriamente  geológicos, 
talvez  porque  ninguém  se  propoz  procural-os  aonde  somente  po- 
dem ser  achados! 

O  philologo,  que  emprehende  reunir  e  ordenar  as  provas  do- 
cumentaes  das  sociedades  modernas  para  escrever  a  sua  histo- 
ria, corre  aos  archivos,  interpreta  os  códices,  extracta  e  trans- 
creve os  padrões  paleographicos. 

Para  porém  se  escrever  a  historia  das  sociedades  extinctas, 
não  ha  senão  um  só  archivo,  archivo  immenso,  que  abrange 


31 

toclas  as  regiões  da  terra;  archivo,  cujos  códices  são  as  rochas 
sedimentares  accessiveis  á  observação,  e  as  folhas  d'esses  códi- 
ces, as  camadas  que  constituem  a  sua  formação.  E,  pois,  n'essas 
mysteriosas  folhas,  se  escaparam  ao  metamorphismo  produzido 
pela  acção  plutonica  ou  a  outros  agentes  de  destruição,  que  fica- 
ram registrados  em  rigorosa  ordem  os  factos  mais  essenciaes  para 
o  estudo  critico  da  etimologia  geológica.  Não  ha  nessas  folhas 
nomes  escriptos  por  signaes  calligraphicos  para  exprimirem  a 
existência  de  todos  os  mimos  da  creação,  mas  os  próprios  seres 
que  foram  creados,  fazendo  parle  integrante  da  contextura  des- 
sas folhas,  cá  feição  de  hieroglyphicos  que  nellas  ficaram  estam- 
pados, cuja  interpretação  cabe  somente  ao  intimo  concurso  da 
geologia,  da  paleontologia  e  da  archeologia,  desde  que  surgem 
as  primeiras  manifestações  da  industria  humana. 

Mas  não  me  foi  licito  inquirir  testemunhos  geológicos  nesta 
legião.  Os  próprios  mais  importantes  critérios  neolithicos  julgo 
não  estarem  ainda  descobertos.  Uns  e  outros  achar-se-hão,  mui 
presumptivamente,  na  serie  assaz  extensa  das  cavernas  jurássi- 
cas. Procure-os  quem  os  souber  descobrir  e  conhecer,  porque 
deve  achal-os,  como  se  poderá  deduzir  do  que  vou  relatar  no 
capitulo  seguinte. 

Ainda  assim,  são  já  numerosíssimos  os  pontos  indicados  na 
carta  paleoethnologica  com  vários  característicos  neolithicos.  Es- 
cusado é  repetil-os  aqui,  estando  todos  figurados  na  carta  e  geo- 
graphicamente  ordenados  nas  columnas  respectivas  a  cada  epi- 
graphe.  E  exclusivamente  d'esse  período  que  tem  de  occupar-se 
este  primeiro  livro;  o  segundo,  como  já  se  pode  julgar  pelas  epi- 
graphes  restantes,  abrangendo  mais  variedade  de  assumptos, 
suscitará  porventura  maior  interesse. 


II 

CAVERNAS 


SUMMARIO 

Cavernas.— Outros  vocábulos  com  que  são  designadas  no  Algarve.—  Abysmos,  hydrophi- 
lacios,  ou  marmitas  de  gigantes.— Sua  formação.  — Como  começou  modernamente 
o  estudo  scientifico  das  cavernas.—  Affirmações  deduzidas  d'este  estudo  com  rela- 
ção á  geologia,  á  paleontologia  e  á  archeologia  prehistorica.— Comprovações  do 
synclironismo  das  raças  humanas  com  os  grandes  mammiferos  extinctos  da  fauna 
antiga,  verificadas  em  varias  cavernas  de  Inglaterra,  da  França  e  da  Bélgica.—  Ca- 
vernas da  região  sul  oriental  da  Hispanha.—  Probabilidades  de  se  acharem  caver- 
nas ossiferas  no  Algarve,  ou  contendo  artefactos  da  industria  humana.—  Mostra-se 
que  n'um  limitado  numero  de  cavernas  exploradas  em  Portugal  se  toem  encontrado 
abundantes  confirmações  directas  e  indirectas  de  haverem  sido  habitadas  em  di- 
versos tempos  prehistoricos.  —  Excellentes  monographias  publicadas  ácêrca  d'este 
assumpto.  — Insufficiencia  d'estes  trabalhos  para  deixarem  reconhecer  as  raças 
humanas  que  viveram  n'este  território,  a  feição  paleontologica  e  as  phases  por  que 
passou  a  industria  desde  as  suas  mais  remotas  manifestações.  — Impossibilidade 
de  se  inquirir  por  emquanto  a  ordem  ethnographica  das  estações  troglodyticas  e 
de  se  mostrarem  as  ligações  d'essas  estações  com  as  de  outros  territórios.  —  La- 
mentável falta  de  estudos  fundamentaes.— Razões  que  levaram  o  auctor  d'esta  obra 
a  querer  emprehender  o  exame  das  numerosíssimas  cavernas  do  Algarve  e  motivos 
que  o  impediram.  —  Simples  indicação  na  carta  prehistorica  de  alguns  pontos  em 
que  ha  cavernas  n'esta  zona  geographica.  —  Noticias  concernentes  a  cada  uma  das 
cavernas  indicadas. 

Sob  a  denominação  de  caverna  correm  confundidos  vários 
termos  de  equivalente  significação,  laes  como  furna,  algar,  gruta 
e  lapa,  que  todavia  poderiam  ser  estremados  com  restricção  es- 
pecial, tendo-se  em  apurada  conta  o  sentido,  mais  popular  que 
li  l  (erário,  com  que  a  gente  campesina  emprega  cada  um  d'esses 
vocábulos. 

Pela  designação  de  furnas  são  assas  conhecidas  no  Algarve 
as  cavernas  da  costa  maritima,  ao  passo  que  na  região  sertaneja 
ou  serrana  se  denominam  algares,  sobretudo  se  as  suas  entradas 
são  abertas  na  rocha  a  feição  de  poço,  se  dão  entrada  ás  torren- 
tes pluviaes  e  medem  grande  profundidade. 

3 


34 

Não  é  tão  nomeada  a  gruta  como  o  são  a  furna  e  o  algar,  e 
comtudo  os  habitantes  do  campo  sabem  distinguil-a,  applicando 
o  termo  a  certas  cavidades  de  limitadas  dimensões,  que  podem 
ser  utilisadas  para  abrigo  de  gados  e  pastores. 

De  todas  as  mencionadas  palavras  a  menos  vulgar  é  a  lapa, 
que  mais  geralmente  se  refere,  não  tanto  a  covas  e  nichos  que 
se  acham  em  rampas  de  montes  e  n'outros  logares,  como  a  gran- 
des chapas  de  rochas  estratificadas,  que  se  destacam  das  pedrei- 
ras ou  se  encontram  isoladas  e  dispersas. 

Cabe  neste  logar,  embora  como  simples  curiosidade,  que  o 
viajante  pode  admirar  no  tracto  da  raia  marítima,  comprehen- 
dido  entre  a  ponta  de  Sagres  e  a  occidental  de  Albufeira,  a  no- 
ticia de  umas  formações,  de  todo  o  ponto  singulares,  devidas  á 
acção  erosiva  das  aguas  e  a  outras  causas  ou  agentes  naturaes, 
a  que  promiscuamente  se  dão  os  nomes  de  fojos,  pegos  e  abysmos, 
sendo  este  talvez  o  mais  apropriado,  se  ao  mesmo  tempo  se  lhe 
juntar  o  de  precipícios,  como  de  feito  o  são  para  os  incautos  e 
desprevenidos,  que  percorrem  os  logares  em  que  existem  uns  tão 
pavorosos  phenomenos  da  natureza. 

No  curso  de  geologia,  regido  na  escola  polytechnica  de  Lis- 
boa pelo  sábio  decano  d'aquelle  illustradissimo  professorado,  o 
sr.  conselheiro  dr.  F.  A.  Pereira  da  Costa,  abalisado  mestre  dos 
geólogos  portuguezes,  a  quem  as  sciencias  physicas  e  naturaes, 
e  a  archeologia  prehistoríca  devem  serviços  do  mais  elevado  al- 
cance, que  em  tempo  algum,  sejam  quaes  houverem  de  ser  os 
progressos  d'essas  sciencias  neste  paiz,  poderão  ficar  em  des- 
lembrança,  consta-me  haver  o  mencionado  sábio  lente  de  mine- 
ralogia e  geologia,  antigo  director  daquella  escola  e  meu  também 
antigo  e  sempre  respeitável  mestre,  feito  referencia  a  essas  con- 
strucções  naturaes  da  costa  marítima  do  Algarve,  dando-lhes 
porém  a  denominação  especial  de  marmitas  de  gigantes.  Nunca 
assisti  ás  prelecções  em  que  o  sapiente  professor  se  tem  occu- 
pado  d'este  assumpto  e  por  isso  não  estranharão  os  seus  moder- 
nos discípulos,  se  alguma  vez  honrarem  os  meus  escriptos  com 
a  sua  leitura,  de  não  o  acharem  aqui  tratado  com  tanta  profi- 


35 

ciência  e  lucidez  como  lhes  foi  ensinado,  ficando  advertidos  de 
que  o  meu  principal  intuito  se  limita  simplesmente  a  registrar, 
no  género  caverna,  a  marmita  de  gigantes,  a  que  mais  vulgar- 
mente, como  disse,  ouvi  dar  a  denominação  de  fojo,  pego,  ou 
abysmo,  mas  que  n'um  documento  official  tem  ainda  outro  nome. 

As  denominações  de  marmita  de  gigantes,  de  caldeira,  ou 
pot-holes  dos  inglezes,  applica  Beudant  \  no  seu  curso  elementar 
de  geologia,  sob  a  epigraphe,  Effets  des  chutes  d'eau,  não  tanto 
ás  cavidades  que  no  leito  das  ribeiras,  e  mui  provavelmente  no 
de  mares  pouco  fundos,  são  produzidas  pelo  redemoinho  das 
aguas  que  dão  movimento  giratório  ás  areias  e  calhaus  que  as 
torrentes  arrastam,  e  a  que  se  dá  geralmente  o  nome  de  turbi- 
lhões ou  de  sorvedouros,  porém  mais  especialmente  áquellas  cavi- 
dades que  se  acham  em  terrenos  elevados,  e  já  fora  da  acção  de 
qualquer  queda  de  agua;  e  com  este  fundamento,  talvez,  appli- 
cou  o  sr.  dr.  Pereira  da  Costa  a  denominação  de  marmitas  de 
gigantes  ás  enormes  caldeiras  da  praia  elevada  do  Algarve  já 
constituídas,  e  para  dar  melhor  idéa  da  causa  que  as  produziu, 
incluiria  no  grupo  geral  as  que  ainda  estão  em  via  de  formação. 

Uma  diversa  nomenclatura,  hoje  esquecida,  ou  antes  desco- 
nhecida, foi  imposta  a  essas  caprichosas  construcções  naturaes 
no  fim  do  século  passado,  quando  o  benemérito  conde  de  Valle  de 
Reis,  Nuno  José  Fulgencio  de  Mendoça  e  Moura,  sendo  gover- 
nador e  capitão  general  do  Algarve,  mandou  levantar  a  planta 
das  fortificações  de  todo  o  litoral  marítimo  pelo  tenente  coronel 
José  de  Sande  e  Vasconcellos.  Este  engenheiro,  no  seu  trabalho 
inédito,  intitulado  Mappa  da  configuração  de  todas  as  praças, 
fortalezas  e  baterias  do  reino  do  Algarve2  representa  a  rocha  de 
Sagres  para  poder  figurar  a  fortaleza,  a  praça,  e  a  bateria,  que 
existe  na  extremidade  propinqua  ao  oceano,  e  nesta  planta  marca 
os  logares  em  que  ha  dois  d'esses  famosos  abysmos,  dizendo 
numa  nota:  «Bocas  de  dois  hydrophilacios,  que  são  uns  vácuos  sub- 
terrâneos cheios  de  agua  que  respiram  para  a  superfície  da  terra». 


1  Beudant—  Géologie—Cours  Élèmentaire  —  ^ng.  G9  e  70  —  18G5  —  1  le  édition. 
■  Existe,  e  por  mim  tem  sido  visto,  no  archivo  do  ministério  da  marinha. 


36 

A  planta  de  Sagres  não  tem  escala  e  por  isso  não  posso  de- 
signar as  distancias  em  que  estão  os  hydrophilacios  relativamente 
á  bateria  da  ponta  de  Sagres,  de  que  mais  se  approximam  do 
que  das  muralhas  da  praça. 

Na  celebre  obra  do  sr.  Major,  Vida  do  infante  D.  Henrique, 
traduzida  do  inglez  pelo  sr.  José  António  Ferreira  Brandão,  e 
mandada  publicar  em  1876  pelo  sr.  duque  de  Palmella1,  meu 
antigo  condiscípulo  no  primeiro  e  segundo  anno  de  mathematica 
na  escola  polytechnica,  vem  uma  planta  da  península  de  Sagres 
(pag.  107),  em  que  é  figurado  a  um  quarto  de  milha  ingleza 
para  o  sul  um  d'esses  pavorosos  abysmos.  Devo,  porém,  advertir 
o  viajante  que  visitar  aquelles  logares,  que  o  primeiro  hydrophi- 
lacio  ou  abysmo,  seguindo-se  da  praça  para  a  bateria,  acha-se  á 
esquerda,  um  tanto  ao  nascente,  e  o  segundo  muito  mais  perto 
da  bateria  no  lado  opposto,  e  por  isso  pode  passar  entre  elles  e 
observal-os  com  prudente  cautela,  quando  não  prefira  levar  um 
guia,  que  o  encaminhe  por  aquelle  admirável  isthmo2,  que  as 
embravecidas  ondas  do  oceano,  em  dias  procellosos,  parece 
quererem  subverter,  não  obstante  estar  sobre  o  nivel  das  aguas 
em  altura  de  39  metros,  como  indicando  o  único  ponto  do 
mundo  que  o  brio  nacional  deve  preferir  a  quantos  hão  sido 
indicados  para  ser  honrado  e  honrar-se  com  uma  estatua  de 
bronze  levantada  em  memoria  do  preclarissimo  infante  de  Por- 
tugal. 

Os  hydrophilacios  ou  marmitas  de  gigantes  occupam  na  sec- 
ção marginal  e  propinqua  ao  oceano,  entre  Sagres  e  Albufeira, 
vários  pontos  da  praia  elevada,  em  que  imperam  as  formações 
do  jurássico  superior,  do  terciário  marino  e  lacustre  e  do  cretá- 
ceo inferior.  A  sua  configuração  geral  é  approximadamente  a  de 
um  poço  de  larguíssimo  diâmetro  com  abertura  irregular  na  base, 


1  0  sr.  duque  de  Palmella  fez-me  a  honra  de  obsequiar-me  com  um  exemplar,  que 
aqui  agradeço  a  s.  ex.a 

-  A  península  de  Sagres,  do  norte  ao  sul,  partindo  do  antigo  pedestal  da  cruz,  mede 
de  extensão  mais  de  5  milhas  inglezas  e  na  maior  largura,  de  oeste  para  Teste  2  y3 .  Ve- 
ja-se  a  planta  publicada  pelo  sr.  Major. 


37 

mais  ou  menos  ampla,  em  communicação  com  o  mar,  variando  a 
sua  profundidade,  ou  altura  do  eixo  vertical,  na  razão  directa  da 
cota  de  nivel  do  solo  superficial  com  referencia  á  das  aguas  sal- 
gadas. 

Quando  nas  rochas,  de  que  se  compõem  as  praias  altas,  ha 
fracturas  naturaes  ou  accidentaes,  provenientes  de  retracções,  de 
violentos  abalos  da  terra  ou  de  outras  causas,  em  contacto  com 
o  mar,  bastam  estas  duas  simultâneas  circumstancias  para  se 
operar  a  formação  dos  abysmos  ou  marmitas  de  gigantes.  As  on- 
das, arremessando-se  com  impetuosa  violência,  invadem  o  âm- 
bito d'essas  anfractas  fendas,  produzindo  na  sua  ascensão  um 
violento  attrito,  que  necessariamente  promove  o  alargamento  gra- 
dual do  espaço  em  que  é  exercido.  Não  é  porém  a  força  impul- 
siva que  recebem  as  aguas  invasoras  o  poderoso  agente  do  alar- 
gamento e  muito  menos  ainda  da  configuração  proximamente 
circular,  que  manifestam  esses  amplos  precipícios  em  cujo  fundo 
o  incessante  embate  das  ondas  produz  pavorosos  estrondos,  si- 
milhantes  a  fortes  detonações.  Dada  pois  a  simultaneidade  das 
preditas  circumstancias  num  determinado  logar,  se  a  ascensão 
da  massa  liquida,  que  invade  as  fendas  das  rochas  até  acima  da 
superfície  do  solo  fracturado,  é  a  causa  que  origina  essas  tão 
singulares  formações,  a  sua  queda,  obedecendo  ás  immutaveis 
leis  da  attracção  universal,  descobertas  por  Newton  e  sancciona- 
das  por  Cavendish,  as  desenvolve  e  acaba,  porque  essa  queda  é 
determinada  pela  gravidade  inherente  a  todos  os  corpos  terre- 
stres, ou  força  que  incessantemente  os  attrahe  para  o  centro  da 
terra,  sendo  n  este  caso  os  seus  principaes  elementos  —  a  den- 
sidade do  corpo  liquido  que  se  elevou  e  a  reacção  da  sua  veloci- 
dade adquirida  —  regidos  pela  força  centrifuga  no  seu  descente 
movimento  accelerado,  da  qual  resulta  uma  poderosa  acção  ero- 
siva de  rotação  contra  as  paredes  das  fendas  e  consequentemente 
a  configuração  de  taes  formações. 

Em  resumo,  póde-se  portanto  dizer,  que  o  continuo  trabalho 
das  ondas,  determinado  por  leis  e  forças  naturaes  em  todos  os 
seus  movimentos,  invadindo  as  fendas  das  rochas  fracturadas, 


38 

propinquas  ao  oceano,  é  a  causa  que  produz  os  abysmos  deno- 
minados hydrophilacios  ou  marmitas  de  gigantes. 

No  caminho  que  vae  do  apparatoso  cabo  Carvoeiro,  massa 
compacta  de  cretáceo  inferior,  para  a  ermida  e  bateria  da  Se- 
nhora da  Rocha,  construída  sobre  uma  extensa  formação  de  ter- 
ciário lacustre  superior,  existe  um  d'esses  abysmos,  assaz  pro- 
fundo, cujo  diâmetro  não  medirá  menos  de  30  metros,  e  como 
este  se  encontram  outros  muitos  no  rumo  de  poente  até  á  ponta 
de  Sagres,  como  ficou  dito.  Convém  pois  não  transitar  por  esses 
togares,  em  que  de  repente  o  incauto  viajante  pode  achar-se  á 
beira  de  um  precipicio,  sem  levar  um  guia  que  o  saiba  encaminhar 
com  a  precisa  segurança.  Alguns  d'esses  abysmos  podem  ser  vi- 
sitados pela  praia  sem  grande  difficuldade  na  hora  de  baixamar, 
e  não  soprando  ventos  rijos  dos  quadrantes  do  sul;  mas  escusado 
seria  quererem-se  procurar  vestígios  de  aproveitamento  humano 
n'esse  género  de  cavernas,  que  a  natureza  parece  ter  formado 
para  caprichoso  respiradouro  das  tempestades  do  mar. 

O  estudo  scientifico  das  cavernas  occupa  ha  muitos  annos  a 
actividade  intellectual  dos  sábios  mais  dedicados  ás  sciencias  na- 
turaes,  á  historia  da  humanidade  é  da  industria  prehistorica,  po- 
dendo dizer-se  que  os  resultados  d'este  estudo,  tão  complexo  e 
variado  pelas  suas  intimas  e  mutuas  dependências,  vieram  vin- 
cular em  nossos  dias  uma  serie  de  affirmações  importantíssimas, 
que  as  gerações  precedentes  não  poderam  congregar. 

Desde  antigos  tempos  correm  vagas  noticias  e  tradições  rela- 
tivamente ás  cavernas  e  não  poucas  se  encontram  dispersas  em 
obras  de  escriptores  clássicos,  gregos  e  latinos.  Vários  geogra- 
phos,  historiadores  e  poetas  da  antiguidade  fallaram  por  vezes 
d'esses  mysteriosos  edifícios,  que  a  natureza  construiu  e  escondeu 
no  âmago  da  terra;  ficou  porém  como  reservado  para  o  presente 
século  o  reconhecimento  geológico,  paleontologico  e  archeologico, 
destinado  á  comprovação  das  epochas  e  das  condições  de  jazida 
em  que  n'esses  recônditos  depósitos  se  hão  manifestado  ossos 
humanos,  ou  productos  da  industria  do  homem,  associados  aos 
despojos  dos  grandes  mammiferos  extinctos,  ás  ossadas  de  ai- 


39 

guris  ainda  viventes,  mas  emigrados  em  regiões  glaciaes  desde 
as  modificantes  evoluções  por  que  passou  a  crusta  do  globo  após 
o  período  post-plioceno,  e  finalmente  ás  espécies  da  fauna  actual; 
o  que  veiu  logo  mostrar  que  as  raças  humanas,  desde  as  suas 
mais  remotas  manifestações,  utilisaram  as  cavernas. 

Pode,  pois,  affirmar-se,  que  ás  cavernas  devem  poderosos 
subsídios  de  elucidação  a  geologia,  a  paleontologia  e  a  archeolo- 
gia  prehistorica.  Se  não  fossem  as  suas  tão  significativas  revela- 
ções, a  sciencia  não  teria  attingido  os  complexos  desenvolvimen- 
tos que  actualmente  a  constituem,  ou  antes  a  estão  preparando 
para  ainda  emprehender  novas  soluções  sobre  muitos  assumptos 
em  discussão. 

Em  todas  as  regiões  da  terra  ha  cavernas  naturaes,  devidas 
a  diversas  causas,  que  promoveram  e  promovem  a  sua  formação 
e  desenvolvimento,  bem  como  uma  multiplicidade  de  modifica- 
ções em  harmonia  com  as  oscillações  e  movimentos  que  os  agen- 
tes dynamicos  ou  forças  motrizes  e  as  acções  chimicas  continua- 
mente exercem  no  interior  da  crusta,  composta  de  muitos  e  di- 
versos elementos. 

Até  ha  poucos  annos  julgou-se  que  as  cavernas  somente  se 
podiam  formar  nas  montanhas  jurássicas,  porque  nessas  rochas 
são  mais  frequentes,  com  effeito,  as  grandes  cavidades,  desloca- 
ções, abatimentos  locaes  e  fracturas  mais  ou  menos  consideráveis, 
como  resultado  da  natureza  especial  d'essa  formação,  das  acções 
plutonicas,  da  retracção  e  exsicação  dos  stractos  e  da  erosão; 
mas  a  observação  tem  verificado  a  sua  existência  nas  series  sedi- 
mentares, principalmente  na  mesozóica  e  cainozoica,  comquanto 
nas  regiões  propriamente  calcareas  sejam  mais  vastas  e  muito 
mais  abundantes. 

E  o  facto  que  também  se  verifica  no  Algarve  e  se  mostra, 
posto  que  em  minguada  escala,  com  a  indicação,  feita  na  carta 
prehistorica,  de  algumas  cavernas  mais  conhecidas  n'esta  zona 
geographica. 

Não  será  mui  difficil  ao  leitor  instruído  reconhecer  a  natureza 
dos  terrenos  em  que  vão  marcadas  as  cavernas  a  que  me  refiro, 


40 


lendo  á  vista  a  carta  geológica  do  reino  e  reduzindo  á  sua  escala 
de  1  :  500:000  a  do  Algarve,  que  está  approximadamente  na 
proporção  de  1  :  200:000. l 

D'este  modo  se  observará,  pois,  que  algumas  cavernas  do 
litoral  marítimo  estão  abertas  em  rochas  diversas  daquellas  em 
que  se  acham  as  da  região  central,  e  que,  exceptuando  as  rochas 
eruptivas,  e  a  maioria  (talvez  a  totalidade)  das  da  serie  paleo- 
zóica, nas  outras  duas  series  sedimentares  ha  mais  ou  menos 
cavernas  e  grutas.  Faça-se  um  estudo  especial  neste  sentido, 
que  as  confirmações  não  tardarão. 

Foi  no  primeiro  quartel  d'este  século,  que  em  Inglaterra  ap- 
pareceu  uma  obra  intitulada  Reliquice  diluviaria?.  N'esta  obra, 
publicada  em  1823,  reuniu  o  dr.  W.  Buckland  os  elementos  até 
então  mais  averiguados,  e  negou  absolutamente  o  synchronismo 
da  vida  humana  com  a  dos  grandes  carnívoros  e  pachy dermes 
da  fauna  antiga.  Produziram  geral  sensação  na  Europa  as  afir- 
mações do  rev.d0  Buckland,  e  em  Inglaterra,  arraigando  convic- 
ções profundas,  dispozeram  de  tal  arte  os  espíritos,  que  qualquer 
facto  com  que  alguém  pretendesse  provar  o  contrario  do  que 
ficara  escripto,  com  todos  os  foros  apparentes  de  uma  auctori- 
dade  ecuménica,  era  immediatamente  repellido  com  a  mais  formal 
impugnação. 

A  França  meridional  reagiu,  porém,  pouco  depois  contra  o 
positivismo  biicldandiano,  iniciando-se  no  estudo  directo  de  algu- 


1  Quando  a  carta  archeologica  já  estava  concluída,  occorreu-me  a  idéa  de  ampliar 
até  á  sua  escala  a  carta  geológica  do  reino  e  fazer-lhe  a  applicação  das  cores  e  signaes 
de  convenção  correspondentes,  a  fim  de  se  poder  promptamente  reconhecer  a  natureza 
dos  terrenos  em  que  se  acham  as  cavernas  e  d'aquelles  que  haviam  sido  aproveitados 
pelas  diversas  civilisações  que  precederam,  desde  os  tempos  mais  remotos,  as  naciona- 
lidades históricas  na  occupação  d'este  solo.  Este  melhoramento  teria  certamente  sido 
muito  útil;  mas  o  trabalho  artistico  da  carta  prehistorica,  como  primeira  parte  da  carta 
archeologica  geral  do  Algarve,  já  estava  contractado  pelo  governo  com  uma  empreza 
particular  e  esta  innovação  viria  originar  embaraços,  talvez  insuperáveis,  como  logo 
suppuz,  e  por  isso  não  ousei  endereçar  ao  governo  proposta  alguma  n*este  sentido;  e 
pensando  d'este  modo  não  me  enganei,  porque  bastaram  as  ampliações  que  tive  de  ad- 
didonar  ao  original  da  carta  prehistorica  em  consequência  dos  descobrimentos  que 
havia  feito  n'uma  exploração  complementar  em  1882,  para  a  sua  publicação  soffrer  re- 
tardamento, não  obstante  haverem  ficado  na  posse  da  referida  empreza,  desde  o  mez  de 
março  de  1883,  todas  as  alterações  que  se  deviam  fazer. 


41 

mas  cavernas  do  seu  território  dois  sábios  geólogos,  cujos  nomes 
e  profícuos  emprehendimentos  serão  sempre  invocados  com  grata 
recordação. 

Tournal  e  Ghristol  foram  pois  os  dois  athletas,  que  rompe- 
ram as  trevas  em  que  jaziam  as  cavernas,  alumiando-as  com  os 
fachos  da  sciencia  e  trazendo  para  o  fórum  da  publicidade  a  de- 
nunciação  dos  seus  recônditos  segredos. 

As  lendas  e  tradições  suggeridas  pela  fértil  imaginação  po- 
pular e  os  mysterios,  maravilhas  e  preconceitos  que  assignalavam 
esses  sombrios,  tenebrosos,  mas  esplendidos  e  imponentes  monu- 
mentos architectados  pela  própria  natureza,  vieram  soffrer  sobre 
as  aras  da  sciencia  o  sacrifício  do  menosprezo,  para  cederem  á 
verdade,  á  critica  e  á  soberania  dos  factos  a  palavra  imperiosa 
da  sabedoria  acerca  da  sua  origem  e  dos  seus  destinos. 

Corria  o  anno  de  1828,  quando  o  geólogo  narbonnez  M. 
Tournal,  tendo  explorado  no  departamento  de  Aude  a  caverna 
de  Bize,  annunciou  ao  instituto  de  França  e  aos  sábios  do  seu 
paiz  haver  descoberto  ossos  e  dentes  humanos  no  mais  baixo 
deposito  do  lodo  e  da  brecha  cimentada  por  stalagmites,  mistu- 
rados com  restos  de  cerâmica  rudimentar1,  conchas  de  molluscos 
terrestres  de  espécies  existentes  e  ossos  de  mammiferos  parcial- 
mente extinctos 2,  pertencentes  aos  primeiros  tempos  do  período 
quaternário,  verificados  por  Gervais,  e  de  outras  espécies  ainda 
viventes,  ossos  que  Mareei  de  Serres  verificou  em  identidade  de 
estado  chimico  e  que  Cuvier  reconheceu  como  rigorosamente  fos- 
seis. Este  descobrimento,  embora  acolhido  com  reservada  circum- 
specção  pelo  instituto  de  França  e  por  diversos  sábios,  tanto 
mais  desde  que  Eduardo  Larlet  alli  descobriu  o  Bison  curopceus, 
e  o  Cervus  tarandus  (renna),  que  não  viveu  em  tempos  históricos 
no  sul  da  França,  mas  que  n'aquella  região  se  tem  achado  asso- 
biado ao  mamouth,  tanto  no  diluvium  como  nos  lodos  das  caver- 


0  apparecimento  de  louças  era  quanto  bastava  para  não  se  poder  afíirmar  que  a 
brecha  fosse  paleolithica. 

'  Entre  outros,  o  Ursas  spelceus  e  a  Hyena  spelcea. 


42 

nas,  parecia  vir  mostrar  á  luz  da  critica  mais  concludente,  que  a 
espécie  humana  tinha  sida  coeva  dos  grandes  mammiferos  da 
fauna  anterior,  extinctos  nos  primeiros  tempos  do  período  post- 
plioceno,  quando  até  então  ninguém  havia  referido  a  existência 
do  hommo  sapiens  de  Linneu  a  uma  tão  remota  origem! 

Não  eram  porém  isolados  estes  factos,  porque  ao  mesmo 
tempo  que  Tournal  e  Mareei  de  Serres  os  reconheciam  na  ca- 
verna de  Bize,  outro  sábio,  M.  de  Christol,  então  secretario  da 
sociedade  de  historia  natural  de  Montpellier,  apresentava  em  ju- 
nho de  1829  ao  instituto  de  França,  uma  memoria  sob  o  titulo 
de  Notice  sur  les  ossements  humains  des  cavernes  du  Gard.  M.  de 
Christol  apparecêra  por  seu  lado  confirmando  as  conclusões  de 
M.  Tournal,  referindo  ter  encontrado  na  caverna  de  Pondres, 
perto  de  Nimes,  ossos  humanos,  os  de  uma  hyena  e  de  um  rhi- 
noceros  de  espécies  extinctas,  nas  mesmas  condições  geológicas, 
porque  a  caverna  esta™  totalmente  oceupada  pelos  depósitos  do 
diluviam  até  o  tecto,  havendo  também  fragmentos  de  louça  numa 
camada  inferior  á  dos  ossos  dos  mammiferos.  No  mesmo  departa- 
mento, explorando  M.  de  Christol  a  caverna  de  Souvignargues, 
achou  na  mais  profunda  camada  do  diluvium  ossos  humanos 
compridos  de  um  individuo  adulto,  associados  a  um  sacrum  e  a 
duas  vértebras. 

Na  Bélgica,  já  em  1831,  era  explorada  pelo  celebre  dr. 
Schmerling  a  caverna  d'Engihoul  na  margem  direita  do  Meuse, 
fronteira  á  d'Engis  l,  na  margem  opposta,  descobrindo  o  famoso 
explorador  numa  e  n'outra,  sob  as  mesmas  condições  geológicas 
e  chimicas,  craneos  e  outros  ossos  humanos,  associados  aos  de 
grandes  mammiferos  extinctos,  pertencentes  á  fauna  antedilu- 


1  Quem  sabe  o  que  representou  perante  o  mundo  scientifíco  a  celebre  caverna  d'En- 
gis,  situada  no  calcareo  carbonífero  da  margem  esquerda  do  Meuse  e  distante  uns  3 
kilometros  a  sudoeste  de  Liège,  não  pôde  deixar  de  lamentar  a  sua  destruição.  Quando  o 
illustre  Lyell  a  procurou  em  1860.  já  o  calcareo  da  sua  formação  tinha  sido  arrancado 
a  pedaços  para  material  de  construcções  e  fornos  de  cal!  Foi  o  que  suecedeu  ás  pyra- 
mides  prehistoricas  que  descobri  nó  Serro  da  Pedra  Branca  e  no  Monte  de  Roma,  perto 
de  Silves,  aos  menhirs  da  cumeada  de  S.  Bartholomeu  de  Messines,  o  que  está  suece- 
dendo  ás  ruínas  de  Ossonoba  e  a  todos  os  mais  descobrimentos  que  tenho  feito  n'esta 
província. 


43 

viana,  como  o  demonstra  o  auctorisado  paleontologista  e  anato- 
mista na  sua  memorável  obra  cm  dois  volumes  e  um  atlas,  pu- 
blicada em  1846,  sob  o  titulo  de  Recherches  sur  ks  ossements 
fossiks  découverts  dam  ks  cavernes  de  la  province  de  Liège,  onde 
são  descriptas  mais  de  quarenta  cavernas,  pela  maior  parte  si- 
tuadas nos  valles  do  Meuse  e  dos  seus  afíluentes. 

Não  obstante  os  reparos  e  opposições  que  logo  se  manifesta- 
ram, poucos  annos  depois  os  próprios  arguentes,  em  obediência 
á  lealdade  do  seu  elevado  caracter,  como  aconteceu  aos  sábios 
Denoyeres  e  Lyell,  vieram  confirmar  a  contemporaneidade  da 
vida  humana  com  vários  mammiferos  do  mundo  antigo,  uns  ex- 
tinctos,  como  eram  o  urso  e  a  hyena  das  cavernas,  e  um,  o  ran- 
gifer,  emigrado  e  vivente  nas  regiões  hyperboreas. 

A  todos,  porém,  foi  escapando  a  significação  das  louças  as- 
sociadas áquelle  conjuncto  de  critérios  verdadeiramente  geológi- 
cos, porque  ainda  então  não  se  sabia  que  a  cerâmica  era  uma 
das  mais  typicas  manifestações  dos  tempos  neolithicos,  e  que, 
por  isso,  encontrada  num  tal  deposito,  somente  serviria  de  prova 
contraproducente,  quando  não  se  podesse  demonstrar  que  a  ca- 
verna havia  sido  oceupada  em  epochas  diversas,  estando  as  lou- 
ças numa  camada  superior  inteiramente  separada  do  deposito 
inferior  e  sem  indícios  de  ter  sido  revolvido  e  misturado ;  por- 
quanto, tendo-se  já  formado  uma  brecha  que  envolveu  fragmentos 
de  louças,  devera  com  preferencia  julgar-se  que  os  ossos  huma- 
nos não  tinham  alli  a  minima  authenticidade  de  epocha. 

Em  Inglaterra,  perante  a  tão  cautelosa  reserva  com  que  se 
presenciavam  os  descobrimentos  feitos  na  França  e  na  Bélgica, 
reserva  originada  na  auetoridade  que  nos  espíritos  ficaram  exer- 
cendo as  affirmações  cio  rev.d0  dr.  W.  Buckland,  embora  pouco 
posteriormente  apparecessem  no  Devonshire  provas  ainda  mais 
concludentes,  não  permittia  a  incredulidade  ingleza  uma  inter- 
pretação que  alterasse  as  prescripções  estabelecidas  na  obra  de 
Buckland.  O  próprio  rev.(1°  J.  Mac.  Enery,  padre  catholico,  que 
pouco  depois  dos  descobrimentos  de  Schmerling  explorara  no  sul 
de  Inglaterra  a  caverna  de  Kent's  Hole,  uns  2  kilometros  dis- 


44 

tante  de  Torquay,  não  se  atreveu  a  preparar  a  celebre  memoria, 
que  deixou  inédita,  sob  o  titulo  de  Cavem  Researches,  by  the 
rev.  J.  Mac.  Enery,  senão  associando-se  a  Buckland,  certamente 
já  convencido  este  geólogo  das  erradas  proposições  que  havia 
firmado  nas  suas  relíquias  diluvianas,  e  por  isso  ficou  o  manu- 
scripto  fora  da  acção  da  critica,  retardando  o  progressos  da  scien- 
cia  até  1859  (!),  em  que  M.  Vivian  o  lançou  á  luz  da  publicidade. 
Foi  então  que  o  mundo  scientifico  veiu  a  saber  que  a  caverna  de 
Kent's  Hole  encerrava  os  instrumentos  de  silex  mais  typicos  da 
primeira  idade  das  cavernas,  similhantes  aos  de  Moustier  em 
França,  associados  ao  Felis  spelcea,  Hyena  spelcea,  Ros  primige- 
nius,  Rhinoceros  tichorinus,  Hippopotamus  major,  Lagomys  spelcea, 
todos  da  fauna  quaternária,  apparecendo  também  no  mesmo  de- 
posito vermelho,  inferior  ao  solo  stalagmitico,  com  todo  este  cor- 
tejo insuspeito  mais  três  dentes  caninos  de  uma  espécie  pliocena, 
o  Felis  machairodus,  o  maior  d'este  género,  os  quaes  todavia  po- 
diam alli  ter  sido  introduzidos  pelos  troglodytas  do  período  pa- 
leolithico,  como  occorreu  a  Lyell. 

Esta  publicação,  que  bem  podéra  ter-se  feito  muito  antes  da 
obra  de  Schmerling,  não  chegou  porém  a  correr  mundo  senão 
dezesete  annos  depois  de  M.  Godwin-Austen,  subsequente  explo- 
rador da  celebre  caverna  de  Kent's  Hole,  publicar  em  1842  nas 
Transactions  of  the  Geological  Societtj1,  a  sua  importante  Memoir 
of  the  Geology  of  South  Devon,  mostrando  ter  descoberto  nos  se- 
dimentos de  lodo  argilloso  ainda  intactos,  inferiores  á  cota  do 
solo  stalagmitico,  instrumentos  lascados  de  silex  misturados  com 
restos  de  mammiferos  da  fauna  extincta;  o  que  provava  serem 
synchronicos  estes  critérios  e  coexistentes  n'aquelle  deposito  in- 
ferior da  caverna  antes  da  formação  do  manto  concrecionado. 

Foi  por  assim  dizer  esta  obra  do  insigne  geólogo  inglez  M. 
Godwin-Austen  que  começou  a  dispor  os  espíritos,  ainda  du- 
vidosos, para  a  reacção  que  se  foi  lentamente  preparando  até 
que,  descobrindo-se  em  1858  uma  caverna  ossifera  intacta  em 


Vol.  vi,  p.  444,  2.a  serie. 


45 

Brixham,  6  kilometros  ao  sul  de  Torquay,  se  desenvolveu  o  em- 
penho de  que  fosse  explorada  em  devida  regra. 

Tantas  provas  já  manifestas  deviam  certamente  vencer  as 
hesitações,  as  duvidas  e  incredulidades  que  a  circumspecção 
aconselhava  aos  homens  mais  escrupulosos  e  prudentes  em  as- 
sumptos de  tanta  gravidade,  e  d'este  modo  a  real  sociedade  de 
Londres,  despertando  aos  clamores  do  dr.  Falconer,  nomeou  uma 
commissão  composta  dos  mais  eminentes  geólogos  inglezes,  a 
quem  incumbiu  os  trabalhos  da  exploração,  e  auctorisou  as  re- 
spectivas despezas,  para  as  quaes  appareceu  uma  dama,  miss 
Burdett  Coutts,  contribuindo  generosamente,  como  refere  sir  Char- 
les Lyell. 

As  operações  da  exploração  foram  dirigidas  porM.  Pengelly, 
a  planta  levantada  pelo  professor  Ramsay,  os  critérios  fosseis, 
subordinados  ás  condições  geológicas  do  seu  jazimento,  classifi- 
cados e  catalogados  por  MM.  Falconer  e  Prestwich,  e  a  classifi- 
cação da  fauna  incumbida  a  M.  G.  Busk.  O  próprio  Lyell,  visi- 
tando os  trabalhos  e  examinando  as  collecções,  tudo  descreve 
com  a  lucidez  própria  da  sua  superior  sabedoria.  A  consubstan- 
ciação  dos  resultados  obtidos  reduz-se  a  estes  termos: 

Na  camada  superior,  formada  de  uma  crusta  stalagmitica, 
da  espessura  de  2  a  35  centímetros,  achou-se  incrustada  uma 
armação  de  renna  e  um  humerus  de  urso  das  cavernas.  Ora,  a 
renna,  Cervus  tarandus,  como  é  sabido,  caracterisa  uma  espécie 
vivente,  mas  emigrada  em  tempos  prehistoricos  para  as  regiões 
do  norte. 

Na  camada  ossifera  de  lodo  e  calhaus,  abaixo  do  solo  con- 
crecionado, da  espessura  de  60  centímetros  a  4  metros,  as  es- 
pécies extinctas  mais  typicas,  classificadas  por  Busk,  foram  o 
Elephas  primigenias  (mamouth),  o  Rhinoceros  tichorinus,  o  Ursus 
spelceus,  a  Hyena  spelwa,  o  Felis  spelcea,  (chamado  leão  das  ca- 
vernas) e  o  Cervus  tarandus  (renna).  Disseminados  n'esta  camada, 
mas  em  maior  copia  no  seu  plano  mais  baixo,  comquanto  em 
parte  alguma  se  manifestassem  ossos  humanos,  appareceram  nu- 
merosos instrumentos  cortantes  de  silex,  representando  a  indus- 


46 

tria  dos  homens  que  frequentaram  aquellas  cavernas  em  tempos 
quaternários,  correspondentes  geologicamente  ao  período  paleoli- 
thico,  muito  antes  da  formação  do  solo  stalagmitico  e  da  própria 
brecha  ossifera  composta  pelo  deposito  sedimentar  inferior. 

Por  esta  forma,  as  theorias  e  proposições  de  Buckland,  pro- 
clamadas em  1823,  sobre  os  factos  até  então  conhecidos  em  rela- 
ção ás  origens  da  humanidade,  ficaram  prescriptas  perante  a  scien- 
cia  e  desmentidas  pelas  cavernas  de  Kent's  Hole  e  de  Brixham, 
que  evidentemente  vieram  demonstrar  a  existência  humana  em 
tempos  prehistoricos  geológicos,  correspondentes  a  uma  fauna 
pela  maior  parte  extincta,  ou  emigrada  para  uma  região  glacial, 
mostrando  este  facto  que  o  homem  foi  testemunha  presencial  das 
grandes  convulsões  que  parcialmente  transformaram  a  crusta  e  o 
relevo  orographico  do  planeta  em  que  habitamos,  da  deslocação 
que  soffreu  o  antigo  continente  europeu  de  todo  o  território  que 
ficou  formando  o  archipelago  britannico,  bem  como  da  mudança 
das  condições  climatéricas,  que  extinguiram  n'esse  retalho  de 
terra  insulada  as  espécies  que  ficaram  sem  passagem  para  a  emi- 
gração que  conseguiram  fazer  as  do  continente,  abandonando  as 
zonas  geographicas  em  que  tinham  vivido,  para  poderem  viver, 
ainda  actualmente,  n'outras  mais  septentrionaes,  cujo  clima  pa- 
rece dever  denunciar  qual  seria  o  da  Europa  central  ou  da  França 
meridional  antes  da  retirada  do  Cervus  tarandus  e  de  outras  es- 
pécies de  herbívoros  de  géneros  diversos. 

E  como  se  poderia  explicar  a  apparição  do  homem,  ou  dos 
productos  da  sua  industria,  em  condições  de  synchronismo  de 
período  geológico  com  os  grandes  mammiferos  extinctos  perten- 
centes á  fauna  post-pliocena,  em  Inglaterra,  sem  primeiramente 
se  admittir  uma  passagem,  que  levasse  esses  mammiferos  do 
actual  continente  para  o  actual  archipelago  britannico? 

Apesar  de  todas  estas  comprovações,  pode  affirmar-se,  porém, 
que  quando  o  estudo  synthetico  das  cavernas  assumiu  um  des- 
envolvimento quasi  geral  na  Europa,  foi  desde  que  o  insigne 
Lartet  começou  a  publicar  as  suas  famosas  monographias  con- 
cernentes ás  cavernas  do  Périgord  e  d'Aurignac,  e  quando  os 


47 

trabalhos  de  Schmerling  foram  proseguidos  na  Bélgica  por  M. 
Dupont. 

Muitos  e  grandes  trabalhos  relativamente  ás  cavernas  de  va- 
rias regiões  da  Europa  já  correm  impressos.  Não  seria  difficil 
traçar  o  quadro  chronologico  d'esses  famosos  estudos  e  referir  a 
successão  dos  descobrimentos  effeituados  até  esta  data.  Não  é 
esse,  porém,  o  meu  propósito,  mas  simplesmente,  com  as  noticias 
que  ficam  expendidas,  mostrar  a  conveniência,  que  sempre  julguei 
haver,  em  que  o  exame  das  antiguidades  do  Algarve,  como  pro- 
puz,  começasse  pelas  cavernas. 

E  seria  porventura  destituído  de  fundadas  esperanças  num 
êxito  sobremaneira  mui  provável,  o  estudo  scientifico  das  caver- 
nas do  Algarve  em  presença  das  noticias  que  já  tinham  dado 
alguns  sábios  hispanhoes  relativamente  a  varias  cavernas  do  seu 
litoral  marítimo  do  sul? 

Quando  se  olha  para  uma  carta  geographica  da  península 
hispânica  e  ao  mesmo  tempo  se  tem  tomado  nota  das  cavernas 
ossiferas,  citadas  pelo  sábio  D.  Manuel  de  Góngora  no  seu  inte- 
ressante livro  das  Àntiguedades  históricas  de  Andalacia,  occorre 
logo  a  qualquer  espirito  observador  e  critico  a  circumstancia  de 
se  terem  achado  nas  províncias  de  Granada  e  Algeciras,  a  curta 
distancia  da  orla  marítima  do  Mediterrâneo,  muitas  cavernas  com 
abundantes  ossos  humanos  e  múmias  admiravelmente  bem  con- 
servadas, revestidas  dos  mais  typicos  característicos  industriaes 
da  epocha  que  representam;  occorrem  ao  mesmo  tempo  as  cele- 
bres cavernas  do  Monte  Calpe  (Gibraltar),  e  que  todos  esses  de- 
pósitos mortuários  de  diversos  períodos  prehistoricos  defrontam 
com  a  região  septentrional  da  Africa,  banhada  pelas  aguas 
daquelle  mesmo  mar  que  banha  as  praias  granadinas  até  ás  Co- 
lumnas  de  Hercules. 

Faltam,  porém,  estudos  fundamentaes  no  reino  vizinho  sobre 
certas  especialidades,  ou,  se  taes  estudos  existem,  são  por  mim 
totalmente  desconhecidos,  e  por  isso,  sobre  todos,  dois  assumptos 
principaes,  a  ethnologia  e  a  ethnographia  do  sul  da  península, 
não  podem  por  emquanto  permittir  as  deducções  de  que  carece 


48 

a  prehistoria  (Festa  extrema  região.  Não  se  examinou  anthropo- 
logicamente  que  raça  representavam  os  craneos  da  caverna  dos 
morcegos  e  da  de  Albunol,  tendo-se  descoberto  na  primeira  mais 
de  sessenta  múmias  admiravelmente  bem  conservadas,  vestidas 
e  adornadas  como  haviam  entrado  naquella  mysteriosa  mansão 
consagrada  ao  abrigo  dos  mortos. 

Além  de  um  diadema  de  ouro.  que  cingia  a  fronte  de  uma 
daquellas  múmias,  nenhum  outro  metal  se  achou;  appareceram, 
porém,  facas  de  silex,  instrumentos  de  pedra  polida  e  ossos  tra- 
balhados, dando  áquelle  conjuncto  uma  como  feição  neolithica. 
As  louças,  porém,  embora  alguns  exemplares  fossem  de  forma  e 
fabricação  rudimentar,  apresentando  na  sua  maioria  uns  certos 
ornamentos  e  appendices,  não  tão  antigas,  poderiam  considerar-se 
talvez  sendo  tanto  mais  consócias  de  finos  e  mui  engenhosos  te- 
cidos de  esparto,  os  quaes  vieram  sobretudo  denunciar  os  troglo- 
dytas  d'aquellas  cavernas,  já  mui  peritos  na  industria  da  tece- 
lagem. 

Não  se  compararam,  emfim,  os  ossos  das  Cuevas  de  los  Mur- 
cièlagos  e  de  Albufwl  com  os  das  cavernas  do  Galpe,  e  ficaram 
por  examinar  as  cavernas  da  região  comprehendida  entre  o  monte 
Galpe  e  o  cabo  de  S.  Vicente,  isto  é,  de  todo  o  litoral  do  sul  da 
península,  banhado  pelo  Atlântico;  o  que  não  teria  succedido  se 
o  estudo  das  cavernas  do  Algarve  se  tivesse  effeituado ;  porque, 
embora  não  podesse  absolutamente  afiançar  a  existência  de  ca- 
vernas ossiferas  n'esta  região  geographica,  não  poucas  probabi- 
lidades havia  neste  sentido,  por  isso  que  acerca  de  algumas  cor- 
ria noticia  de  conterem  thesouros  e  pedras  preciosas,  de  se  terem 
achado  n'outras  muitos  pedaços  de  louças  grosseiras,  de  serem 
apontadas  muitas  como  utilisadas  pelos  mouros  para  sua  habita- 
ção e  refugio  em  tempos  de  guerra,  e  finalmente  por  se  dar  o 
facto,  assas  singular  e  talvez  altamente  significativo,  de  serem 
mui  frequentes  nas  proximidades  das  cavernas  indicadas  na  carta 
prehistorica  vários  instrumentos  de  pedra  e  também  alguns  de 
bronze. 

Não  era  de  esperar  que  todas  as  cavernas  marcadas  na  carta 


49 

e  muitas  outras  (talvez  dez  vezes  mais),  que  ficaram  sem  indica- 
ção, contivessem  ossos  humanos,  ou  productos  industriaes  asso- 
ciados a  critérios  paleontologicos  e  cm  condições  geológicas,  que 
permittissem  o  reconhecimento  e  a  classificação  do  período  ou 
epocha  do  seu  deposito. 

Exploradas  todas,  julgar-me-ía  mui  bem  galardoado,  achando 
simplesmente  em  taes  circumstancias  umas  duas  ou  três.  Foi  o 
que  succedeu  ao  celebre  Lund,  que,  tendo  explorado  no  Brazil 
mais  de  oitocentas,  apenas  em  seis  achou  ossos  humanos,  do 
mesmo  modo  que  só  três  ou  quatro  cavernas  ossiferas  descobriu 
na  Bélgica  o  dr.  Schmerling,  tendo  explorado  quarenta  e  oito  *. 

Fica  pois  em  aberto  na  prehistoria  do  Algarve  esta  lamen- 
tosa lacuna,  que  impede  talvez  desde  já  uma  serie  de  importan- 
tes conclusões;  mas  não  poderá  agora,  nem  em  tempo  algum 
ser  lançada  á  conta  da  minha  ignorância,  porque  empenhei  todo 
o  meu  esforço  para  que  o  estudo  das  antiguidades  d'esta  provín- 
cia começasse  pela  exploração  das  cavernas. 

Em  Portugal  pouco  relativamente  se  tem  feito,  comquanto 
sejam  dignos  de  grandíssimo  louvor  os  trabalhos  do  sr.  Joaquim 
Filippe  Nery  Delgado  nas  grutas  de  Cesareda  e  os  que  foram 
mandados  fazer  em  varias  cavernas  por  Carlos  Ribeiro,  a  quem 
este  paiz  e  a  sciencia  ficaram  devendo  serviços  do  mais  transcen- 
dente valor,  para  que  o  seu  nome  em  todos  os  tempos  futuros 
mereça  gratíssima  recordação,  e  a  sua  perda,  n'uma  conjunctura 
em  que  muito  se  devera  esperar  de  seu  génio  tão  laborioso,  seja 
justamente  sentida  e  por  emquanto  irreparável. 

São  excellentes,  abundantes  de  revelações  importantíssimas, 
e  altamente  valiosos  os  trabalhos,  concernentes  a  grutas  e  caver- 
nas, do  sr.  Nery  Delgado  e  de  Carlos  Ribeiro;  mas  esses  traba- 
lhos são  essencialmente  monographicos,  e  comquanto  forneçam 
elementos  de  grande  alcance,  consignem  asserções  e  conceitos 
de  utilíssimo  aproveitamento,  não  podem  pela  sua  índole,  espe- 
cialmente local,  manifestar  a  feição  geológica,  paleontologica  e 


Dr.  Joly,  pag.  50. 
4 


50 

archeologica  que  a  sciencia  reclama  e  exige  ao  território  (Testa 
nação. 

Marcadas  na  carta  geographica  do  reino  as  grutas  e  cavernas 
exploradas  e  estudadas  pelos  mencionados  geólogos,  perceber- 
se-ha  immediatamente  que  esse  limitado  numero  de  pontos  iso- 
lados representa  apenas  a  gloriosa  inauguração  de  um  novo  es- 
tudo em  Portugal,  coroada  do  mais  feliz  êxito  e  merecidamente 
estimada,  sem  que  comtudo  permitia  ainda  as  conclusões,  que 
somente  poderiam  deduzir-se  de  um  estudo  geral,  rigorosamente 
geographico  e  systematico  em  todo  o  território  nacional. 

Falta  o  nexo  ethnographico  para  ligar  esses  pontos  estudados 
com  as  numerosissimas  cavernas  não  estudadas  que  occupam 
uma  grandiosa  parcella  do  nosso  chão  continental ;  falta  o  conhe- 
cimento geral  das  faunas  que  se  deixaram  representadas  nesses 
obscuros  receptáculos ;  falta  o  conhecimento  das  raças  humanas 
que  povoaram  ou  frequentaram  esses  recônditos  abrigos;  faltam 
as  manifestações  directas  dos  typicos  productos  da  industria  de 
cada  uma  d'essas  raças;  falta  o  conhecimento  dos  pontos  que 
ligaram  as  estações  troglodyticas  d'este  solo  com  os  dos  territó- 
rios adjacentes,  ignorando-se  portanto  o  trajecto  da  marcha,  se 
a  houve,  que  seguiram  em  cada  periodo  os  povos  que  habitaram 
as  cavernas;  e  admittindo-se  que  a  península  não  tivesse  tido 
aptidões  de  geração  biológica  propriamente  suas,  e  só  se  po- 
voasse com  gente  de  estranhas  plagas,  falta  o  reconhecimento  do 
hypothetico  ponto  de  partida  d'essa  gente  ao  entrar  n'este  terri- 
tório e  o  da  sua  ultima  estação,  assim  como  de  não  estar  ainda 
feito  este  apuramento,  a  que  se  devera  chegar,  falta  também  uma 
serie  de  outras  importantes  noticias  para,  á  luz  da  critica  dos 
factos,  se  poder  interpretar  e  reconstruir  cada  uma  d 'essas  re- 
motíssimas civilisações  e  escrever-se  a  sua  historia,  começando-se 
pelos  primeiros  assomos  da  existência  humana  n'esta  derradeira 
faxa  occidental  da  terra. 

Assim  como  a  geologia,  no  estado  de  progresso  a  que  já  hoje 
tem  chegado,  pode  afoutamente  determinar  as  evoluções  cósmicas 
e  os  cataclysmos  por  que  passou  esta  parte  do  continente  euro- 


51 

peu,  enumerando  as  phases  de  sublevação  e  de  abaixamento  até 
á  fixação  do  aclual  relevo  orographico  pelo  simples  exame  das 
suas  rochas  sedimentares,  plutonicas  e  metamorphicas,  pela  com- 
posição mineralógica  e  direcção  que  ficaram  tendo  as  montanhas 
e  os  valles,  incluindo  o  curso  dos  rios  e  ribeiras,  do  mesmo  modo 
a  paleontologia  poderia  já  determinar  as  faunas  que  povoaram 
este  solo,  pela  maior  parte  primitivamente  inundado;  a  anthro- 
pologia  ou  paleontologia  humana  poderia  já  apontar  as  raças  que 
viveram  nesta  região,  e  foram  ainda  testemunhas  impassíveis  das 
grandes  perturbações  que  parcialmente  modificaram  o  relevo  e 
configuração  da  crusta  terrestre  após  o  período  post-plioceno, 
por  isso  que,  a  admittirem-se  como  comprovações  indirectas  da 
existência  humana  os  productos  da  sua  industria,  encontrados 
por  Carlos  Ribeiro  nos  valles  do  Tejo  e  do  Sado,  já  neste  terri- 
tório havia  homens l  na  epocha  terciária,  como  também  os  havia 
n'outras  regiões  do  globo;  e  finalmente  a  archeologia  prehistorica 
chegaria  a  inventariar  chronologicamente,  permitta-se-me  a  im- 
propriedade do  termo,  as  provas  da  industria  dos  homens,  as 
phases  de  desenvolvimento  e  perfeição  relativa  por  que  foram  pas- 
sando de  umas  para  outras  civilisações,  incluindo  o  modo  de 
viver  e  de  sentir  de  cada  uma,  deduzindo-se  d'essas  mesmas 
provas  e  das  condições  dos  seus  jazigos. 

Está  tudo  isto  por  fazer  e  por  saber,  porque  faltam  estudos 
fundamentaes,  que  só  podem  ser  emprehendidos,  mediante  um 
plano  rigorosamente  systematico,  por  uma  sociedade  scientifica 
expressamente  organisada  para  este  fim  especial,  já  que  as  exi- 
stentes no  nosso  paiz  parecem  ter-se  totalmente  esquecido  da  sua 
própria  indole  e  da  obrigação  social,  que  se  arrogaram,  de  levarem 
a  cultura  e  o  progresso  das  sciencias  até  o  seu  máximo  desen- 
volvimento! 

Era  ás  academias  e  sociedades  altamente  scientificas  do  reino 


'  O  sr.  de  Martillet  diz  que  o  que  havia  então,  não  era  ainda  o  homem,  propriamente 
dito,  mas  o  seu  precursor,  e  para  não  o  deixar  sem  nome,  chama-lhe  anthropopilhecus, 
entidade  que  o  meu  curto  entendimento  não  precisa  conceber  para  admittir  a  existência 
do  homem  desde  as  suas  mais  remotadas  origens. 


52 

que  competia  à  iniciativa,  o  primeiro  brado,  o  primeiro  esforço 
neste  sentido,  para  assim  se  desempenharem  da  responsabilidade 
que  contrahiram  com  o  paiz,  com  a  sua  própria  dignidade  e  com 
o  futuro,  cumprindo  aos  governos  sábios,  illustrados  e  patrióticos, 
o  concurso  dos  seus  mais  efficazes  e  poderosos  auxílios,  como  se 
tem  feito  na  França,  na  Bélgica,  na  Allemanha,  na  Inglaterra,  e 
mesmo  noutras  nações  de  menor  vulto,  mas  que  prezam  a  scien- 
cia  e  o  pundonor  nacional. 

Nada  d'isto  se  tinha  emprehendido  até  1877,  quando  a  voz 
publica  convidou  o  governo  a  mandar  estudar  umas  antiguidades 
que  fortuitamente  haviam  ficado  á  vista  na  margem  direita  do  rio 
Guadiana  e  em  vários  pontos  do  Algarve. 

Fui  eu  incumbido  d'este  estudo,  sem  que  para  isso  me  fizesse 
lembrado,  e  pedi  logo  três  mezes  de  espera  para  organisar  o 
plano  geral  dos  trabalhos  que  havia  elaborado. 

Entendi  então,  como  entendo  hoje,  que  em  Portugal,  embora 
houvesse  vários  especialistas  em  diversos  ramos  da  archeologia 
monumental,  nenhum  tinha  ainda  manifestado  o  minimo  plano 
para  levar  o  paiz  a  confraternisar  com  as  nações  que  maiores 
provas  estavam  dando  do  seu  progresso  n'esta  sciencia. 

Apenas  tinha  apparecido  um  geólogo  audacioso,  mas  convi- 
cto da  significação  dos  seus  descobrimentos,  que,  atravessando  a 
Europa,  fora  proclamar  num  congresso  de  sábios  a  comprovação 
do  homem  terciário  no  território  portuguez,  e  era  Carlos  Ribeiro 
o  athleta  que  se  atrevera  a  affrontar  essa  lucta,  ainda  hoje  não 
vencida,  mas  altamente  gloriosa,  como  a  seu  tempo  se  reconhe- 
cerá. 

Em  archeologia  histórica  tinha  apparecido  Emilio  Húbner, 
um  dos  mais  abalisados  epigraphistas  da  Allemanha  e  professor 
da  universidade  de  Berlim,  colligindo  e  publicando  a  riqueza  epi- 
graphica  que  ainda  existia  em  Portugal,  depurando-a  das  incor 
recções  com  que  o  visconde  de  Paiva  Manso  havia  compilado  e 
publicado  as  nossas  inscripções  romanas. 

O  sábio  dr.  Pereira  da  Costa  publicava  pouco  depois  as  suas 
preciosas  memorias  acerca  dos  Icjoekkenmoeddings  de  Cabeço  de 


53 

Arruda  c  das  antas  de  Portugal.  Nery  Delgado  abria  o  caminho 
para  o  estudo  das  cavernas,  publicando  a  sua  famosa  memoria 
acerca  das  grutas  de  Cesareda,  seguindo  logo  Carlos  Ribeiro  com 
o  estudo  de  outras  cavernas. 

Começava  pois  a  haver  um  certo  movimento,  uma  certa  exci- 
tação no  animo  d'esses  beneméritos  da  sciencia,  a  quem  este 
paiz  sem  duvida  alguma  deve  relevantíssimos  serviços ;  mas  plano 
geral  para  o  estudo  das  antiguidades  do  reino,  tanto  prehistori- 
cas  como  históricas,  não  tinha  apparecido,  como  disse,  até  1877. 

Estando  pois  encarregado  officialmente  do  estudo  geral  das 
antiguidades  do  Algarve  para  poder  represental-as  na  carta  ar- 
cheologica,  que  tinha  começado  a  esboçar  em  outubro  de  1865, 
entendi  ser  aquella  a  occasião  de  poder  lançar  as  bases  definiti- 
vas para  o  reconhecimento  methodico  das  antiguidades  do  reino. 

A  carta  archeologica  do  Algarve  devia  portanto  symbolisar 
todas  as  antiguidades  que  se  podessem  verificar  n'esta  província, 
sendo  a  sua  representação  subordinada  a  uma  ordem  regular  e 
methodica,  por  isso  que  tinham  de  ser  descriptas,  segundo  essa 
ordem  indispensável. 

Procurar  onde  deveriam  achar -se  as  mais  antigas  manifesta- 
ções de  occupação  territorial  e  seguir  pelas  subsequentes  até, 
pelo  menos,  á  data  da  conquista  portugueza,  seria  o  plano  mais 
completo  de  averiguação,  e  conseguidos  estes  resultados,  ficaria 
estabelecido  o  systema  para  o  estudo  e  representação  das  anti- 
guidades geraes. 

Foi  o  que  pretendi  levar  a  eífeito. 

Comecei  por  indagar  se  nos  estudos  geológicos  feitos  no  Al- 
garve se  tinham  encontrado  provas  directas  ou  indirectas  das  ci- 
vilisações  que  em  tempos  remotos  senhorearam  este  território,  e 
não  tendo  ficado  noticia  alguma  a  este  respeito,  concebi  logo  o 
pensamento  de  procurar  essas  provas  geológica  e  archeologica- 
mente  no  âmago  das  cavernas  naturaes  d'esta  região.  Formulei 
n'este  sentido  a  minha  proposta;  propuz  que  fossem  primeiro  que 
tudo  exploradas  as  cavernas;  mas  o  governo,  temendo  a  demora 
e  os  dispêndios  que  poderiam  custar  aqui  trabalhos  idênticos  aos 


54^ 

que  liuham  sido  feitos  na  Bélgica  por  Schmerling  e  Dupont,  re- 
jeitou-a,  limitando  o  seu  encargo  ao  exame  das  antiguidades  in- 
dicadas no  solo  por  vestígios  apparentes. 

O  exame  das  antiguidades  do  Algarve  soffreu  assim  um  pro- 
fundo corte  fundamental. 

Cumpri  portanto  as  ordens  do  governo,  não  explorando  as 
cavernas,  mas  tomei  nota  dos  pontos  em  que  existiam  as  princi- 
paes  para  simplesmente  as  indicar  a  futuros  exploradores.  E  uma 
lacuna  que  fica  em  aberto,  sem  que  nunca  possa  ser-me  apon- 
tada como  censura. 

Ha  muitas  mais  cavernas,  muitíssimas,  que  não  me  seria 
difficil  descobrir  e  indicar,  se  podesse  fazer  d'este  assumpto  um 
exame  especial  sem  a  intervenção  do  governo,  a  quem  nunca 
mais  acceitarei  commissão  alguma  de  serviço  publico  subordinada 
aos  prasos,  de  todo  o  ponto  viciosos  e  absurdos,  com  que  um 
chefe  de  repartição  calcula  o  tempo  material  que  deve  levar  uma 
qualquer  exploração  scientifica,  parecendo  não  formar  a  minima 
idéa  d'este  género  de  trabalhos! 

Advertirei  finalmente,  que  estes  estudos  não  soffrem  as  re- 
stricções  ineptas  dos  prasos,  que  podem  todavia  ser  muito  úteis 
para  certas  empreitadas  de  trabalhos  de  artes  e  officios,  mas  que 
são  incompatíveis  com  aquelles  que  nenhum  fundamento  mini- 
stram ao  calculo  da  zelosa  burocracia.  Melhor  será,  pois,  quando 
o  governo  queira  mostrar-se  altamente  interessado  pelo  estudo 
dos  monumentos  nacionaes,  determinar  uma  verba  annual  para 
se  dispender  com  esse  estudo,  e  mandal-a  competentemente  fisca- 
lisar,  porque  d'este  modo  se  conseguirá  o  resultado,  fazendo-se 
os  trabalhos  em  devida  regra.  Extincta  a  verba,  o  explorador 
deixa  o  campo  preparado  para  continuar  no  anno  seguinte,  se 
tanto  for  preciso,  e  recolhe-se  para  estudar  e  descrever  o  fructo 
dos  seus  descobrimentos.  Pode  ser  que  este  alvitre  manifeste  al- 
guns inconvenientes ;  mas,  pelo  menos,  é  racional  e  tolerável. 

Eis-aqui  a  distribuição  geographica  das  poucas  cavernas  de 
que  tomei  nota  e  indiquei  na  carta  prehislorica. 


55 


Ooncelho  <ie  .AJjezixr 

Caverna  da  Sinceira,  ao  norte  do  castello  e  a  nor-noroeste 
da  igreja.  4\  500 

Foi  descoberta  em  março  de  1883,  por  um  caçador,  sendo- 
me  communicado  o  seu  descobrimento  pelo  sr.  José  da  Gosta 
Serrão  em  carta  de  5  de  abril,  o  qual,  com  muita  gente  do  povo 
a  foi  logo  visitar.  Diz  o  sr.  Serrão  que  esta  caverna  é  immensa, 
dividida  em  corredores  e  casas  de  20  e  mais  metros  quadrados 
sobre  2  a  3  metros  de  altura;  que  na  occasião  do  descobrimento 
muita  gente  se  preparara  com  luzes  e  alli  entrou  em  grupos,  to- 
mando diversas  direcções,  e  que  cinco  minutos  depois  já  ninguém 
se  via,  mas  simplesmente  o  clarão  da  luz,  que  diminuía  ao  passo 
que  os  caminhantes  se  desviavam  da  entrada  aberta  pelo  caçador 
em  occasião  de  se  lhe  ter  escondido  numa  fenda  da  rocha  um 
coelho  que  perseguira. 

O  sr.  Serrão  refere  ter  com  dois  companheiros  avançado  na 
direcção  proximamente  do  norte  uns  200  metros,  ora  sobre  um  ca- 
minho liso  e  bom,  ora  entre  grandes  penedos,  até  chegar  a  um 
grande  salão  de  lindíssimo  aspecto,  de  cujo  tecto  pendiam  nume- 
rosas e  robustas  stalactites,  em  que  a  luz  das  lanternas  se  refle- 
ctia com  phantastico  brilho,  e  que  junto  d'este  logar  havia  muitos 
mosquitos,  ouvira  correr  agua  com  grande  estrondo,  e  que  re- 
ceiando  lhe  faltasse  a  luz,  foi  pelos  seus  companheiros  obrigado 
a  deixar  de  proseguir.  Refere  finalmente  ter  encontrado  um  grande 
dente  de  forma  triangular,  com  fina  serrilha  nos  bordos  lateraes, 
idêntico  aos  que  foram  achados  no  deposito  neolithico  junto  á 
igreja  da  Senhora  da  Alva,  em  Aljezur,  os  quaes  pertencem  a  um 
squaloide  do  género  Carcharodon,  não  constando  que  taes  dentes 
se  tenham  achado  n'outro  sitio  d'aquella  região. 

A  menos  de  1  légua  de  distancia  fica  pois  a  mansão  mor- 
tuária em  que  foram  achados  com  os  instrumentos  de  pedra  os 
referidos  dentes  de  Carcharodon,  dentes  que  por  alli  nunca  foram 
vistos  senão  na  caverna  da  Sinceira.  Esta  circumstancia  deixaria 
com  algum  fundamento  presumir,  que  os  constructores  do  depo- 


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sito  mortuário,  descoberto  a  14  metros  ao  norte  da  porta  lateral 
da  matriz  de  Aljezur,  mui  provavelmente  frequentariam  aquella 
ou  alguma  das  outras  cavernas  existentes  entre  Aljezur  e  Ode- 
seixe,  e  que  d'esses  sombrios  edifícios  da  natureza  trouxessem 
aquelles  dentes,  a  que  ligassem  qualquer  significação  mysteriosa 
ou  a  que  dessem  applicação  nalgum  trabalho  a  que  se  prestasse 
a  rijeza  da  substancia,  a  sua  configuração  cuneiforme  e  as  suas 
arestas  acuminadas  e  denteadas  ao  mesmo  tempo,  podendo  ainda 
presumir-se  que  a  denticulação  ou  serrilha  dos  referidos  dentes 
inspirasse  aos  troglodytas  d'aquella  paragem  a  útil  idéa  de  trans- 
mitirem ás  suas  facas  de  silex  a  mesma  feição,  por  isso  que 
muitas  das  que  foram  achadas  no  deposito  mortuário  manifesta- 
ram  este  característico,  havendo  uma  entre  todas  em  que  o  re- 
corte denteado,  fino  e  regular  nos  dois  gumes  oppostos,  é  tão 
perfeito  como  o  dos  dentes  d'aquelle  extincto  vivente  da  fauna 
antiga.  E  não  se  pode  duvidar  de  que  os  referidos  dentes  fosseis 
fossem  utilisados,  porque  num  monumento  de  Nora  também  já 
tinham  apparecido  dois  entre  os  instrumentos  de  pedra  com  des- 
gastamentos  nas  arestas  denteadas. 

Sabendo-se  pois,  que  a  região  de  Aljezur  abunda  em  cavernas, 
e  provada  alli  a  existência  de  uma  estação  mortuária,  capitula- 
damente  pertencente  á  ultima  idade  da  pedra,  mas  em  que  os 
seus  critérios  são  largamente  representados  por  farpas  de  frecha, 
facas  e  serras  de  silex,  que  melhor  presumpção  poderia  conce- 
ber-se  de  que  outra  vivenda  ou  abrigo  não  teriam  os  homens 
que  estanciaram  n'aquelle  ponto,  para  assim  se  poderem  julgar 
essencialmente  troglodytas?  Em  que  paiz  civilisado,  ou  pelo  me- 
nos com  assomos  de  se  julgar  na  senda  do  progresso  scientifico, 
deixariam  os  governos  e  as  academias  de  mandar  proceder  á 
exploração  e  estudo  de  taes  cavernas? 

Ainda  que  não  fosse  pela  dedicação  devida  á  sciencia,  mas 
simplesmente  para  se  lisongear  o  espirito  publico,  e  mostrar  ás 
nações  estrangeiras,  que  a  palavra  progresso,  a  todo  o  passo  in- 
vocada em  Portugal,  não  significa  uma  burla,  valia  bem  a  pena 
sangrar  ainda  um  daquelles  prasos  fataes,  que  ao  explorador  de 


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tantos  descobrimentos  já  effeituados  foram  impostos  com  dias 
contados,  mas  sem  aquella  clausula  pouco  racional  e  nada  humana 
de  perder  o  que  tivesse  adquirido,  se  ultrapassasse  as  raias  des- 
ses prasos,  calculados  sem  fundamento  possivel  pelos  dictames 
de  uma  secretaria  de  estado !  Mas  não  serei  eu  quem  de  novo 
proponha  a  exploração  das  cavernas  do  Algarve.  Para  minha  dc- 
feza  perante  os  homens  competentes,  bastar-me-ha  registrar  aqui 
a  recusa  que  já  obtive. 

Gralheiras  —  As  grutas  naturaes  das  Gralheiras  estão  si- 
tuadas a  oeste  do  castello  mourisco  de  Aljezur  em  distancia  de 
lk,500,  no  plan'alto  dos  terciários  marino  e  lacustre  cm  con- 
tacto com  o  carbonífero  inferior,  comprehendido  entre  a  raia  ma- 
rítima e  o  flanco  esquerdo  do  rio,  mui  conhecidas  pelo  nome  do 
sitio  em  que  se  acham. 

Apresenta  alli  a  rocha  algumas  cavidades,  que  a  própria  na- 
tureza produziu  com  caprichoso  recorte,  sendo  possivel  que  em 
tempos  remotos  tivessem  sido  habitadas  pelos  homens,  que  a  um 
quarto  de  légua  métrica  deixaram  esparsos  alguns  instrumentos 
de  pedra  polida,  entre  os  quaes  cito  um  machado  mui  perfeito,  que 
me  foi  offerecido  em  Lagos  pelo  illustrado  dr.  Augusto  Feio  Soares 
de  Azevedo,  e  que  represento  sob  o  n.°  2  na  estampa  n  da  collecção 
dos  instrumentos  de  pedra  avulsos,  existentes  no  museu  archeolo- 
gico  do  Algarve.  Poderiam  pois  aquellas  grutas  ter  sido  utilisadas 
em  tempos  remotos,  quando  as  suas  condições  offerecessem  asylo 
seguro  e  defeso  contra  o  assalto  de  feras  e  de  homens  não  menos 
perigosos,  por  isso  que  ainda  fui  encontral-as  mais  aprofundadas 
por  dois  irmãos  chamados  Manuel  e  Ignacio  da  Rosa,  os  quaes 
alli  vivem  e  dormem  durante  o  tempo  em  que  cultivam  os  terre- 
nos adjacentes,  merecendo  por  esta  circumstancia  o  titulo  de  mo- 
dernos troglodytas. 

Ha  outras  muitas  cavernas  na  faxa  litoral,  tanto  junto  á  praia 
como  no  plan'alto  sobranceiro  ao  mar  e  ao  rio,  entre  Odeseixe  e 
a  ponta  da  Arrifana,  que  não  consta  terem  sido  visitadas,  e  que 
eu  mesmo  não  ousei  procurar,  porque  os  prasos  fataes  não  me 


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permittiam  delongas  para  estudos  não  auctorisados  e  de  incerto 
resultado,  mas  que  muito  recommendo  aos  futuros  exploradores, 
quando  um  dia  se  começar  a  comprehender  nas  altas  regiões  do 
poder  e  da  sabedoria  nacional  a  importância  de  taes  estudos,  já 
tão  conhecida  e  aproveitada  noutras  nações,  em  que  a  confrater- 
nidade  scientifica  não  se  deixa  dominar  por  antagonismos  pes- 
soaes  e  políticos. 

Ooncelho  de  Villa  cio  Bispo 

Caverna  da  Barriga.  —  Está  esta  caverna,  a  que  dão  o  nome 
de  furna,  situada  a  nordeste  e  distante  da  ponta  do  Cabo  de 
S.  Vicente  uns  5  kilometros.  E  accessivel  a  sua  entrada  tanto 
pela  praia  da  costa  occidental,  como  pelo  lado  da  terra,  e  não 
pouco  é  frequentada  por  caçadores  dos  pombos  bravos  que  n'ella 
se  abrigam.  Servindo-me  dos  apontamentos  que  devo  ao  meu 
obsequioso  patrício  e  amigo  o  sr.  coronel  Francisco  Corrêa  Leotte, 
a  caverna  da  Barriga  passa  por  ser  uma  das  mais  vastas  de  todo 
o  litoral  marítimo.  Referem  homens  antigos  da  Villa  do  Bispo, 
que  um  estrangeiro,  visitando-a,  e  querendo  medil-a,  deixara 
amarrada  á  entrada  a  ponta  de  uma  corda  muito  comprida  e 
que  segurando-se  á  outra  ponta  a  desenrolou  inteiramente  sem 
conseguir  chegar  ao  fim;  o  que  não  parece  inverosímil,  se  com 
effeito  é  certo  haver  um  manuscripto  inédito  do  bispo  Jeronymo 
Osório,  como  se  diz,  affirmando  ter  esta  immensa  caverna  1  lé- 
gua de  extensão.  O  sr.  Corrêa  Leotte  affirma  não  ter  podido  visi- 
tar toda  a  caverna,  porque  a  curta  distancia  da  entrada  achou  a 
passagem  obstruída  por  um  dilatado  pego,  produzido  pela  cor- 
rente das  aguas. 

Deve  nolar-se  a  circumstancia  de  estar  apenas  2  kilometros 
distante  para  nordeste  o  sitio  do  Catalão,  onde  se  tem  achado 
muitos  machados  de  pedra  polida  em  trabalhos  ruraes.  Um  d'el- 
les  foi  alli  mesmo  por  mim  comprado  a  um  camponez  e  é  o  que 
represento  sob  n.°  2,  na  estampa  n.  Fica  também  esta  caverna 
distante  pouco  mais  de  6  kilometros  para  oes-sudoeste  da  Villa 
do  Bispo,  onde  se  tem  achado  muitos  machados  de  pedra,  além 


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dos  que  alli  comprei  a  gente  do  povo  para  a  minha  collecção,  um 
dos  quaes  vae  figurado  com  o  n.°  i,  na  mesma  estampa  n.  Logo 
a  1  kilometro  para  es-sueste  da  villa,  está  o  sitio  dos  Sellanitos 
próximo  á  corrente  da  ribeira  de  Benaçoitão,  em  que  igualmente 
comprei  o  machado  de  pedra  n.°  4,  da  estampa  n,  e  me  informa- 
ram terem  sido  encontrados  outros  muitos.  Dos  Sellanitos  pas- 
sando ao  norte  do  Barranco  das  Hortas  e  atravessando  a  ribeira 
da  Zorreta,  outros  machados  de  pedra  me  foram  offerecidos  por 
Joaquim  Leal,  achados  em  Budens,  Areias  e  Curraes,  que  nesta 
ordem  represento  com  os  n.os  1,  2  e  3,  na  estampa  m,  assim 
como  na  estampa  iv,  sob  n.°  1,  mostro  um  instrumento  de  pedra 
polida,  pontagudo  numa  extremidade,  que  comprei  no  Serro  do 
Haver,  quasi  marginal  ao  rio  de  Almádena,  mui  similhante  a  ou- 
tros três  da  Torre  dos  Frades,  que  me  offereceu  António  Marcel- 
lino  Madeira. 

Ora,  quem  tiver  á  vista  a  carta  prehistorica,  e  observar  a 
serie  dos  pontos  designados  entre  a  caverna  da  Barriga  e  o  Serro 
do  Haver,  notará  que  toda  esta  secção  topographica  está  assigna- 
lada  ethnographicamenle  por  característicos  attinentes  a  um  povo 
que  a  senhoreou  no  período  da  ultima  idade  da  pedra,  ao  qual 
seria  difficil  attribuir  outro  abrigo  de  habitação  que  não  fossem 
as  mais  próximas  cavernas,  como  podem  ter  sido,  além  das  que 
ficam  por  apontar,  as  três  seguintes,  marcadas  na  carta,  isto  é, 
a  dos  Ouriçaes,  a  de  Beliche  Velho  e  a  de  João  Vaz;  e  por  isso 
bem  comprehensivel  é,  quanto  seria  interessante  e  presumptiva- 
mente  promettedora  a  exploração  que  se  emprehendesse  nesses 
recônditos  edifícios  da  natureza. 

Estas  circumstancias  de  congruência,  suggeridas  á  observa- 
ção e  á  hermenêutica,  vão  porém  escapando-se  pela  tangente  das 
conveniências  materiaes  e,  a  titulo  de  economia  publica,  sendo 
desprezadas  por  quem  não  entende  o  seu  alcance  ou  não  duvida 
sacrifical-o  em  troca  de  uma  verba  de  despeza,  que  o  simples 
bom  senso  reconheceria  ser  indispensável  applicar-se  em  benefi- 
cio de  um  estudo  que  tem  principalmente  de  ser  baseado  na  cri- 
tica dos  factos.  Não  se  percam  porém  de  vista  as  outras  três  ca- 


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vernas,  além  das  que  omitto,  que  vão  marcadas  entre  o  cabo  de 
S.  Vicente  e  a  enseada  de  Sagres,  se  alguma  vez  houver  quem 
as  saiba  procurar  e  explorar. 

Gruta  dos  Ouriçaes.  —  Está  situada  junto  á  praia  da  Roi- 
çada,  a  que  também  chamam  do  Telheiro,  1  kilometro  a  no- 
roeste da  ponta  do  cabo  e  outro  ao  sul  do  Leixão  de  S.  Vicente, 
sobre  a  costa  occidental.  Não  tenho  noticias  especiaes  d'esta 
gruta.  Diz-se  ser  assas  espaçosa,  frequentada  por  bandadas  de 
pombos  bravos,  por  lontras  e  rapozas,  cujas  pegadas,  coprolithes, 
e  ossadas  alguns  caçadores  têem  observado.  Gomo  não  me  foi 
permiltido  o  estudo  das  cavernas,  deixei  de  visitar  esta  gruta  ou 
furna  dos  Ouriçaes,  quando  fui  investigar  se  ainda  naquelle 
extremo  retalho  de  terra  firme  haveria  vestígio  d'aquellas  myste- 
riosas  pedras  Lapides  multis  in  locis  temos  aut  quaternos  impo- 
sitos,  a  que  se  refere  Strabão 4,  e  que  não  obstante  o  sentido  em 
que  o  geographo  grego  as  toma,  são  interpretadas  como  signifi- 
cando antigos  dolmens  pelo  barão  de  Bonstetten,2  e  se  a  minha 
rápida  passagem  pela  região  do  cabo  de  S.  Vicente  não  me  per- 
mittiu  atinar  com  vestígios  de  construcções  megalithicas,  de  tu- 
muli  ou  galerias  cobertas,  como  julgo  deverem  existir,  achei  com- 
tudo  quem  me  vendesse  um  pequeno  machado  de  pedra  polida, 
que  represento  com  o  n.°  3,  na  estampa  n,  encontrado  nas  escar- 
pas da  rocha  próxima  ao  acastellado  convento  de  S.  Vicente,  e  me 
informasse  de  terem  apparecido  outros  muitos  n'aquellas  para- 
gens; o  que  bem  deixa  entender  que  a  população  neolithica  fre- 
quentou aquelles  logares,  onde  de  outras  habitações,  além  das 
cavernas,  não  ha  vestígios. 

Não  se  me  tome  porém  tanto  a  risca  ou  como  prova  de  affir- 
mação  este  conceito,  para  se  dar  como  averiguado  ou  como  con- 
cludente o  facto  da  habitação  da  gruta  dos  Ouriçaes,  porque  lá 
estão  outras  não  indicadas  na  carta  prehistorica,  que  poderiam 
ter  sido  preferidas.  Citarei  a  seguinte. 

'  Lib.  ih,  5.° 

s  Essai  sur  les  dolmens,  pag.  40—  1865. 


Cl 

Furna  ou  Caverna  de  Beliche  Velho. —  Está  situada  na  cosia 
marítima,  comprehendida  entre  o  cabo  e  a  ponta  de  Sagres,  e 
mais  restrictamente  entre  a  fortaleza  de  Beliche  e  a  ponta  de  Sa- 
gres. Diz-se  ser  grandiosa,  mas  não  encontrei  quem  me  desse 
approximada  idéa  das  suas  dimensões,  configuração,  e  das  par- 
ticularidades apparentes  que  possam  recommendal-a  a  um  estudo 
especial,  além  da  circumstancia  de  se  achar  numa  zona  de  terra 
em  que  têem  apparecido  instrumentos  de  pedra  e  a  que  o  teste- 
munho histórico  de  Strabão,  bem  como  as  tradições  propagadas 
por  Artemidoro,  contemporâneo  de  Júlio  César,  attribuem  uma 
remota  habitação. 

Furna  de  João  Vaz.  —  E  esta  a  ultima  furna  ou  caverna  que 
vae  marcada  na  carta  prehistorica  pertencente  á  região  do  cabo 
de  S.  Vicente,  comquanto  fiquem  mais  algumas  sem  indicação,  o 
que  só  poderá  supprir-se,  se  se  chegar  a  tratar  do  estudo  espe- 
cial das  cavernas.  Está  sobre  o  flanco  esquerdo  da  enseada  de- 
fendida pela  fortaleza  da  Balieira  (que  também  defende  o  flanco 
esquerdo  da  enseada  de  Sagres)  e  a  margem  direita  da  ribeira, 
ou  antes  pequeno  rio  de  Benaçoitão.  Parece  ser  uma  das  grandes 
cavernas  da  costa  do  sul.  E  larga  a  sua  entrada  e  accessivel  a 
um  batel.  A  abobada  do  seu  magestoso  átrio  é  um  tanto  aba- 
tida. E  mui  visitada  por  caçadores  de  pombos  bravos.  Nada  se 
sabe  porém  das  suas  ramificações  e  dos  seus  mysterios.  Pertence 
comtudo  a  uma  região,  fechada  por  uma  serie  de  pontos  em  que 
são  frequentes  os  instrumentos  de  pedra  polida,  taes  como  o 
cabo  de  S.  Vicente,  Catalão,  Villa  do  Bispo,  Sellanitos,  Budens 
e  Areias. 

Concelho    cie    Lagos 

(Freguezia  de  Bensafrim) 

Caverna  da  Saborosa.  —  A  2  kilometros  e  a  es-sueste  da 
igreja  de  Bensafrim,  no  Serro  da  Cruz,  sitio  da  Saborosa,  e  her- 
dade dos  Mirandas,  uma  grandiosa  caverna  se  manifesta  com 
três  entradas  para  outras  tantas  camarás,  ficando  a  primeira  ao 


62 

poente,  a  da  direita  a  suesle  e  a  da  esquerda  a  nordeste.  Estão 
as  ditas  entradas  obstruídas  por  pedras  lançadas  pelos  maioraes 
para  os  gados  não  entrarem  na  caverna  e  poderem  melhor  esprei- 
tar a  passagem  dos  coelhos.  Refere  o  illustrado  prior  de  Bensa- 
frim,  António  José  Nunes  da  Gloria,  ter  observado  de  fora  as 
três  famosas  camarás  que  dão  entrada  á  caverna,  parecendo-lhe 
estarem  entre  si  communicadas  e  abrirem  para  o  fundo  e  lados 
espaçosas  galerias.  A  gente  do  povo  crê  que  as  galerias  chegam 
a  Silves!  Refere  o  mesmo  noticioso  prior,  que  a  uns  100  metros 
ao  sul,  e  a  mais  de  meia  encosta  do  serro,  se  acha  um  grande 
covão  ou  fojo  de  30  metros  de  diâmetro  e  de  forma  circular,  que 
parece  ser  proveniente  de  um  abatimento  no  solo  ou  antes  da 
abobada  de  alguma  das  camarás  da  caverna.  Não  está  por  em- 
quanto  sufficientemente  observada;  mas  o  facto  de  ser  central  a 
um  grande  numero  de  logares  em  que  são  frequentes  os  instru- 
mentos neolithicos,  e  de  se  terem  achado  no  Monte  Amarello,  4 
kilometros  ao  norte  de  Bensafrim,  indícios  de  construcções  de 
pavimento  circular,  calçado  de  pedra  miúda,  com  muitos  macha- 
dos de  pedra  polida,  crystaes  de  rocha  e  fragmentos  de  facas  de 
silex,  obriga  a  ligar  a  esta  caverna  o  maior  interesse  e  curiosi- 
dade na  sua  exploração,  porventura  mui  esperançosa  e  profícua! 

Ooncellio    cie    Portimão 

(Freguezia  da  Mexilhoeira  Grande) 

Caverna  bo  Serro  do  Algarve.  —  Está  situada  quasi  no 
cabeço  do  serro  d'este  nome,  a  3k,8  a  nordeste  da  igreja  da 
Mexilhoeira  Grande  e  distante  pouco  mais  de  2  kilometros 
da  necropole  de  Alcalá.  Logo  á  entrada  acha-se  o  visitante 
sob  um  arco  proximamente  ogival  e  num  átrio  de  forma  quasi 
circular,  coberto  de  abobada  levantada  em  diversas  ondulações, 
cujas  paredes  apresentam  um  compacto  revestimento  assas  cu- 
rioso de  aranhiços  (Pholcus  phalangioides,  Walk.),  que  branda- 
mente se  balanceiam  em  suas  oscillantes  teagens.  Diziam  alguns 
camponezes  da  Mexilhoeira  Grande,  que  na  parede,  á  esquerda 


63 

de  quem  entra,  se  viam  pintadas  varias  figuras  representando  os 
mouros  que  habitaram  esta  caverna.  Não  ha  porém  taes  pintu- 
ras, mas  uma  combinação  caprichosa  da  rocha  jurássica  com  a 
infiltração  estalactitica,  produzindo  veios,  cores  e  formas  de  tal 
modo  dispostas,  que  com  effeito  parecem,  até  certo  ponto,  deli- 
near vultos  humanos. 

Já  se  vê,  pois,  que  a  tradição  local  aponta  a  caverna  do  Serro 
do  Algarve  como  tendo  sido  habitada  pelos  mouros,  porque  aos 
mouros  refere  o  conceito  popular  quanto  ha  mais  antigo.  Da  en- 
trada ao  fundo  do  átrio  mede-se  a  extensão  de  6  metros  e  ahi 
se  bifurca  em  duas  passagens.  A  direita,  na  orientação  sul  e  a  8 
metros  da  entrada,  ha  uma  cavidade  á  feição  de  poço,  de  fórma 
proximamente  circular,  obstruída  por  uma  tão  grande  quantidade 
de  pedra,  segundo  se  diz,  lançada  alli  pelos  pastores  serranos, 
que  não  permitte  reconhecer-se  se  tem  seguimento  para  alguma 
parte.  A  oes-sudoeste  outra  pequena  abertura,  também  simi- 
lhante  a  gargalo  de  poço,  está  obstruída  de  pedras  soltas,  mos- 
trando porém  um  seguimento,  cuja  profundidade  e  direcção  não 
é  possível  calcular,  e  pega  com  uma  passagem  ainda  aberta,  de 
pouca  altura  e  pouco  extensa,  em  cujo  fundo  as  stalactites  já 
formam  columnas  com  as  stalagmites. 

A  caverna  termina  apparentemente  bifurcando-se  em  dois 
ramaes,  um  apontando  para  nordeste  e  o  outro  para  noroeste. 
No  primeiro  é  visível  uma  grande  fenda,  actualmente  intransitá- 
vel, mas  que  pode  ter  sido  praticável  antes  do  desenvolvimento 
que  tem  alli  tido  o  solo  stalagmitico  já  assas  espesso.  O  ramal 
que  corre  para  noroeste  seria  porém  transitavel,  se  não  estivesse 
obstruído  por  grandes  e  numerosas  pedras.  A  este  ramal  pertence 
uma  pequena  camará,  em  que  se  pode  estar  de  pé  sem  constran- 
gimento, de  cujo  tecto  pendem  cardumes  de  stalactites  em  suc- 
cessiva  formação. 

O  espaço  em  que  se  bifurcam  os  dois  ramaes,  assim  como  o 
plano  do  que  segue  no  sentido  de  noroeste  manifesta  coprolithes 
antigos  e  recentes  de  um  carnívoro  do  género  Felis,  o  gato  bravo 
vulgar,  podendo  também  ser  o  lynce,  ou  gato  cravo  (Felis  par- 


C4 

dina,  dos  naturalistas),  que  mui  provavelmente  poderá  penetrar 
por  algumas  fendas  em  espaços  mais  largos  e  recônditos,  agora 
defesos  ao  ingresso  do  visitante. 

Não  são  alli  visíveis  certamente  vestígios  apparentes  de  an- 
tiga habitação  humana  em  todo  o  espaço  accessivel  á  observação, 
mas  a  circumstancia  de  haver  escondrijos  occupados  pelo  carní- 
voro, que  frequenta  a  caverna,  deixa  presumir  que  ella  tome  á 
extensa  collina  do  chamado  Serro  do  Algarve  muito  maior  espaço, 
embora  actualmente  desconhecido  e  vedado  por  abatimentos,  ou 
por  accumulação  de  pedras  lançadas  a  entrada  das  suas  galerias. 
A  habitação  antiga  mui  bem  podéra  igualmente  existir  sob  o  solo 
de  formação  stalagmitica  em  camadas  até  muito  inferiores,  como 
se  tem  verificado  na  Europa  em  varias  cavernas,  em  que  os  ossos 
com  os  detritos  carriados  pelas  torrentes  formam  camadas  sedi- 
mentares brechiformes  sob  o  manto  concrecionado  de  uma  for- 
mação estalagmitica  posterior.  Outra  circumstancia  emfim  re- 
commenda  esta  caverna  ao  exame  de  futuros  exploradores,  e  é 
ser  a  única  que  se  conhece  como  central  a  uma  infinidade  de 
pontos  em  que  são  frequentes  os  instrumentos  de  pedra  lascada 
e  polida,  e  não  haver  vestígios  de  habitação  prehistorica  na  área 
limitada  por  esses  pontos,  além  de  algumas  cavernas  artificiaes 
escavadas  no  solo. 

Ooncellio    de    Lagoa 

(Freguezia  de  Estombar) 

Cavernas  da  Mexilhoeirinha.  —  Sobre  a  margem  esquerda 
do  rio  que  corre  de  Silves  para  a  foz  de  Portimão,  entre  Silves  e 
a  Mexilhoeirinha,  ou  Mexilhoeira  da  Carregação,  muitas  cavernas 
são  indicadas  pela  gente  do  campo  com  a  tradição  vivamente  ar- 
raigada na  crença  popular  de  terem  sido  a  vivenda  dos  mouros, 
que  occuparam  uma  das  secções  topographicas  mais  importantes 
do  Al-Gharb  mussulmano,  atalaiada  pelo  castello  de  Alvor,  cas- 
tello  Lindo  e  castellos  de  Portimão,  Silves  e  Estombar,  podendo 
assim  entender-se  que  a  tradição  confunde  a  epocha  árabe  com 
outras  de  mais  remota  antiguidade. 


05 

Carlos  Bonnet *  refere-se  a  estas  cavernas,  parecendo  com- 
tudo  não  tel-as  visitado.  Averiguou,  porém,  haver  com  effeito 
acima  da  Mexilhoeirinha  montanhas  calcareas  com  mui  las  c  pro- 
fundas cavernas  naturaes,  estando  algumas  abertas  para  o  rio,  e 
repete  a  tradição  de  terem  sido  habitadas  por  mouros. 

Uma  visitei  eu  parcialmente,  ate  onde  a  claridade  externa 
me  permittiu  o  transito.  Está  situada  a  nordeste  e  a  uns  500 
metros  da  Mexilhoeirinha.  Tem  duas  entradas  contíguas  á  feição 
de  arcos,  espaçoso  átrio,  corredores  e  chão  pouco  ondeado.  Re- 
parte-se  em  diversos  ramaes,  cuja  extensão  e  orientação  não  me 
foi  possível  verificar.  Notei,  porém,  estar  obstruída  uma  das  suas 
passagens  por  grandes  amontoamentos  de  pedras  soltas,  mui  pro- 
vavelmente despregadas  da  abobada.  Algumas  pessoas  da  popu- 
lação rural  afiançaram-me  que  a  caverna  era  extensíssima,  acere- 
scentando  logo  outras,  com  o  mais  firme  entono  de  convicção,  que 
ia  terminar  no  castello  de  Silves!  Tal  é  a  fertilidade  da  imagina- 
ção popular!  O  que  para  toda  a  gente  do  campo  e  mais  especial- 
mente para  as  lavadeiras,  que  costumam  recolher-se  naquelle 
abrigo,  passa  por  sabido  e  sem  admissão  a  replica,  é  que  os  mou- 
ros viviam  naquella  e  nas  outras  cavernas  da  margem  do  rio,  e  que 
quando  o  castello  de  Silves  caiu  em  poder  dos  christãos  (1189), 
alli  se  refugiaram  e  viveram  ainda  muitos  annos.  Um  trabalhador 
já  idoso  refere  que.  sendo  ainda  moço,  com  outros  companheiros 
entrara  muitas  vezes  naquella  furna,  mas  que  hoje  não  se  pode 
já  ir  tão  longe  como  em  seu  tempo,  em  razão  das  muitas  pedras 
que  os  pastores  do  gado  toem  amontoado  nas  embocaduras  das 
passagens  com  o  receio  de  que  se  perdessem  algumas  cabeças 
dos  rebanhos  em  meio  d'aquella  assustadora  escuridão,  onde 
havia  fojos  ou  abysmos  profundos,  que  nunca  ninguém  observou. 
Accrescentava  ainda  o  informador,  que  lá  por  aquelles  corredores 
dentro  havia  casas  lindíssimas  com  os  tectos  formados  de  bicos 
de  uma  pedra  de  agua  muito  branca,  muita  louça  de  barro  escuro 
despedaçada  e  muitos  morcegos,  que  chegavam  a  apagar  as  luzes 


Memoria  geológica  do  Algarve,  1850. 
o 


G6 

que  se  levavam,  que  eram  umas  lijelas  com  sebo  derretido  em 
azeite  e  uma  torcida  grossa  de  trapo  no  meio.  Contava,  final- 
mente, que  um  parente  seu  achara  lá  dentro,  debaixo  de  um 
monte  de  conchas  de  marisco,  umas  cousas  de  cobre,  que  não 
sabia  dizer  o  que  eram,  porque  sobre  tudo  isso  já  tinham  passado 
muitos  annos. 

A  parte,  porém,  a  exageração  com  que  os  narradores  rústicos 
geralmente  engrandecem  o  que  observam,  parece  comtudo  haver 
nas  maravilhas  que  referem  um  certo  fundo  de  verdade,  que  pode 
guiar  o  explorador  consciente  a  descobrimentos  importantes  para 
a  sciencia,  e  por  isso  as  cavernas  da  margem  esquerda  do  rio  de 
Silves,  nas  proximidades  da  Mexilhoeira  da  Carregação,  ficam 
aqui  recommendadas  para  quando  alguma  vez  haja  governos 
n'este  paiz,  que,  comprehendendo  o  alto  interesse  que  em  todas 
as  nações  cultas  está  inspirando  o  estudo  das  cavernas,  saibam 
dar  por  bem  empregado  o  tempo  e  dispêndio  que  reclamam  estes 
interessantes  trabalhos,  que  tantas  revelações  hão  ministrado  com 
relação  ás  raças  e  ao  grau  de  civilisação  das  mais  remotas  na- 
cionalidades, que  viveram  n'este  ultimo  retalho  occidental  da 
terra. 

Furna  da  Zorra  ou  do  Medronhal.  —  Corre  a  formosa  e  mui 
pittoresca  ribeira  de  Odelouca,  navegável  até  á  sua  antiquíssima 
ponte,  agora  renovada  e  desfigurada,  por  entre  duas  verdejantes 
e  alterosas  collinas,  denominando~se  serra  de  Arge  ou  de  Alge, 
a  que  lhe  serve  de  flanco  direito  e  serra  da  Atalaya,  a  que  lhe 
forma  a  margem  esquerda. 

A  foz  d'esta  ribeira  pode  marcar-se  na  extremidade  sul  do 
mui  galhardo  ilhéu  do  Rosário,  apenas  separado  da  serra  da  Ata- 
laya por  uma  estreita  passagem,  que  mistura  as  aguas  da  ribeira 
com  as  do  rio  que  corre  de  Silves  para  Portimão,  formando  o 
flanco  oriental  do  ilhéu  a  foz  do  rio  de  Silves.  Reservando-me 
para  em  seu  competente  logar  descrever  o  ilhéu  do  Rosário  com 
as  suas  antiguidades  prehistoricas  e  históricas  por  mim  desco- 
bertas em  1878,  e  com  as  tradições  que  o  assignalam  naquella 


C7 

encantadora  paragem,  tratarei  aqui  somente  do  assumpto  a  que 
me  refiro. 

Numerosas  nascentes,  manando  da  serra  do  Almirante  ao 
oriente,  correndo  pelo  escarpado  recosto  da  serra  da  Mesquita,  e 
mais  caudalosamente  partindo  também  da  serra  de  Monchique, 
vão  precipitar-se  sobre  o  profundo  valle  de  Odelouca  e  cortam 
na  região  alpestre  mais  elevada  da  serrania  do  Algarve  o  carbo- 
nífero inferior,  a  erupção  foyaítica  de  Monchique,  a  faxa  do  trias 
na  latitude  de  Silves,  o  jurássico  superior,  que  chega  no  flanco 
direito  até  á  margem  esquerda  da  ribeira  do  Boina  e  no  esquerdo 
até  á  extremidade  que  separa  a  serra  da  Atalaia  do  ilhéu  do 
Rosário.  Ora,  é  precisamente  ao  sul  da  faxa  do  trias,  em  plena 
região  jurássica,  e  a  montante  do  terciário  marino  que  conslitue 
os  flancos  da  foz  do  rio  de  Portimão,  que  estão  situadas  as  ca- 
vernas da  possante  ribeira  de  Odelouca,  tanto  na  serra  da  Ata- 
laia como  na  serra  de  Arge. 

E  preciso,  porém,  sabel-as  procurar  e  reconhecer,  porque  as 
suas  entradas  não  são  sufficientemente  definidas  ou  accessiveis 
actualmente.  Citarei  apenas  a  da  Zorra  ou  do  Medronhal,  por  ser 
a  primeira  que  se  acha  na  secção  marginal  comprehendida  entre 
a  margem  direita  da  ribeira  de  Odelouca  e  a  esquerda  da  ribeira 
do  Boina,  uns  500  metros  distante  da  foz  de  Odelouca. 

Chamam-lhe  caverna  ou  furna  da  Zorra,  porque,  com  effeito, 
os  pellos  e  coprolithes  do  astuto  mammifero  d'este  nome,  denun- 
ciam a  sua  passagem  e  habitação  no  interior  daquelle  edifício  da 
natureza,  cujo  âmbito  é  desconhecido,  porque  só  é  accessivel  ao 
visitante  o  seu  apertado  átrio.  Não  indico  na  carta  prehistorica 
as  outras  cavernas  das  duas  serras,  separadas  pela  corrente  da 
caudalosa  ribeira  de  Odelouca,  porque  os  prasos  que  me  foram 
concedidos  para  o  reconhecimento  geral  das  antiguidades  do  Al- 
garve não  podiam  de  forma  alguma  abranger  mais  esta  especia- 
lidade, cujo  exame  seria  certamente  muito  moroso. 

Tendo-se  porém  á  vista  a  referida  carta,  notar-se-ha  que  a 
secção  topographica  cortada  pelas  ribeiras  de  Enxerim,  Odelouca 
e  Boina  abunda  em  critérios  neolithicos,  representando  um  povo 


G8 

que  alli  estanciava  na  ultima  idade  da  pedra,  e  que  embora  ou- 
tras habitações  terrestres  po desse  ler  tido,  mui  provavelmente 
não  desprezaria  aquelles  abrigos,  que  a  natureza  ministrou  ás 
limitadas  necessidades  da  infância  humana. 

No  mesmo  caso  estavam  os  que  por  tão  diversos  pontos  dei- 
xaram prova  da  sua  existência  na  secção  comprehendida  entre  a 
margem  esquerda  do  rio  de  Lagos  e  a  direita  do  de  Portimão, 
abrangendo  as  ribeiras  de  Odiáxere,  de  Arão,  do  Farello  e  do 
Verde;  pois  é  mui  provável  que  a  caverna  do  Serro  do  Algarve, 
próxima  á  margem  direita  da  ribeira  do  Boina,  não  seja  a  única, 
por  isso  que  na  serie  mesozóica  das  rochas  sedimentares  d'aquella 
região  é  todo  jurássico  o  terreno  adjacente  á  ribeira  do  Boina, 
entre  a  faxa  do  trias  ao  norte  e  o  terciário  marino  ao  sul,  sendo 
portanto  mui  provável  que  esse  retalho  do  jurássico  superior  con- 
tenha algumas  cavernas,  embora  não  conhecidas  actualmente. 
Sem  uma  exploração  exclusivamente  destinada  ás  cavernas  nada 
se  pode  porém  afíirmar. 

Concelho    de    Lagoa 

Furna  da  Senhora  da  Rocha.  —  Todo  o  viajante  habituado  a 
sulcar  as  aguas  da  costa  do  sul  de  Portugal  conhece  a  ponta  do 
Carvoeiro  ou  cabo  Carvoeiro,  formado  por  uma  elevada  rocha  de 
cretáceo  inferior,  pertencente  á  serie  mesozóica  das  rochas  sedi- 
mentares, avançada  para  o  mar,  na  latitude  de  37°  7',  e  um 
tanto  ao  nascente,  propinqua  ao  oceano,  a  ermida  amuralhada 
da  Senhora  da  Rocha,  defendida  por  uma  bem  situada  bateria. 
Entre  esta  ermida  e  a  ponta  do  Carvoeiro  está  a  muito  antiga, 
forte  e  grande  povoação  de  Porches  Velho,  outr'ora  defendida  por 
um  castello,  de  que  D.  Affonso  III,  em  1252,  fez  doação  ao  seu 
chanceller  D.  Estevão  Annes,  mas  que  no  dia  do  terremoto  de 
1755  ficou  pela  maior  parte  destruída,  perdendo  duzentas  e  trinta 
e  oito  casas  de  habitação.  Entre  a  ponta  do  cabo  e  as  minas  do 
antigo  castello,  a  nordeste  junto  á  praia,  está  situada  a  chamada 
furna  da  Senhora  da  Rocha,  assaz  espaçosa,  de  forma  quasi  cir- 


C9 

cular,  alumiada  por  um  óculo,  que  sobre  a  sua  entrada  está 
aberto  na  abobada  natural  que  a  cobre.  Póde-se  alli  entrar  a  pé 
enxuto,  mas  não  se  sabe  hoje  se  cm  antigos  tempos  se  commu- 
nicava  com  algumas  ramificações  actualmente  obstruídas. 

Se  esta  furna  ou  caverna  foi  habitada  em  eras  remotas,  não 
se  pode  dizer,  porque  nenhum  trabalho  de  investigação  alli  se 
tem  feito  neste  sentido.  É,  porém,  muito  notável  o  grande  numero 
de  instrumentos  de  pedra  polida,  que  consta  tcr-se  achado  nas 
immediações  da  caverna  e  em  toda  a  área  do  concelho  de  Lagoa, 
mostrando  a  frequência  que  teve  aquella  raia  do  litoral  marítimo 
no  período  neolithico  um  povo  que  usava  instrumentos  de  pedra 
polida,  sem  que  se  lhe  possa  attribuir  outro  abrigo  de  habitação 
mais  próximo  do  que  a  mencionada  caverna. 

No  museu  do  Algarve  existem  três  machados  de  pedra:  um, 
que  comprei  em  Porches  Velho;  outro,  no  sitio  de  Grastos;  e  o 
terceiro,  que  eu  mesmo  achei  isolado,  indo  a  pé  de  Grastos  para 
a  Senhora  da  Rocha,  os  quaes  vão  figurados  na  estampa  xvm, 
sob  os  n.os  2,  3  e  4,  pertencentes  á  minha  collecção. 

Bastaria  pois  esta  circumstancia  para  que  a  exploração 
d'aquella  caverna  se  devesse  emprehender. 

Concelho  e  íreg^iezia  de  Albufeira 

Furnas  da  Orada,  grutas  das  Gralheiras  e  furnas  da  Praia. 
A  villa  de  Albufeira  está  situada  sobre  rochas  escarpadas  e  pro- 
pinquas  ao  mar,  em  que  o  terciário  lacustre  e  o  marino  estão  no 
contacto  do  jurássico  superior,  formando  duas  mui  avançadas 
pontas,  uma  ao  nascente,  chamada  o  Porchel  ou  de  S.  João,  e  a 
outra  ao  poente,  denominada  a  Balieira.  Estas  duas  pontas  limi- 
tam ao  sul  as  extremidades  de  uma  enseada  de  quasi  nullo  abrigo 
para  a  navegação,  a  que  se  tem  dado  o  nome  de  bahia  de  Albu- 
feira, e  cada  ponta  está  ligada  a  uma  praia  assaz  extensa,  em 
que  ha  muitas  furnas  não  exploradas,  como  é  a  da  Senhora  da 
Orada,  como  são  as  das  Gralheiras  e  as  da  Praia. 

Se  essas  furnas  e  grutas,  que  se  diz  serem  assaz  espaçosas, 


foram' habitadas  em  tempos  prchistoricos,  não  se  pode  saber  sem 
que  sejam  devidamente  estudadas.  Sabe-se,  porém,  que  não  pou- 
cos instrumentos  neolilhicos  têem  apparecido  em  terrenos  mui 
próximos,  o  que,  pelo  menos,  deixa  presumir  que  taes  abrigos  não 
seriam  desconhecidos  dos  homens  que  viveram  e  frequentaram 
aquella  região  na  ultima  idade  da  pedra.  Alguns  camponezes  de 
Albufeira"possuem  machados  de  pedra  que  não  vendem  nem  ce- 
dem por  forma  alguma.  A  uma  mulher  idosa  pretendi  pagar  muito 
bem  dois  'que  possuía,  um  a  que  ella  dava  o  nome  de  raio,  e  o 
outro  que  distinguia  d'aquelle  pelo  nome  de  centelha,  e  não  quiz 
vender,  sendo  pobríssima,  porque  sempre  tinha  tido  muito  medo 
de  raios.  Tal  é  a  crença  que  de  longas  eras  ainda  existe  rediviva 
no  conceito  popular. 

Na  estampa  xix,  sob  o  n.°  1,  represento  um  pequeno  ma- 
chado de  pedra  polida,  encontrado  para  os  lados  da  Senhora  da 
Orada,  pertencente  á  collecção  do  sr.  Joaquim  José  Júdice  dos 
Santos. 

Caverna  do  Sumidouro  dos  Lentiscaes.  —  Está  situada  esta 
caverna  numa  como  garganta  do  jurássico  superior,  apertada 
entre  a  isolada  formação  do  terciário  lacustre  de  Paderne,  e  uma 
ramificação  da  rocha  triassica,  que  atravessa  a  região  central 
d'esta  província  do  poente  para  o  nascente.  A  entrada  que  hoje 
se  lhe  conhece,  assaz  estreita  e  profunda,  é  circumdada  de  gros- 
sos penedos,  e  por  ella  se  somem  as  aguas  pluviaes  do  serro  do 
Espargal  e  dos  terrenos  adjacentes.  Dizem  ser  mui  dilatada  por 
extensas  e  complicadas  ramificações,  mas  ninguém  affirma  ter 
alli  penetrado.  Julga-se,  com  algum  fundamento,  que  varias  nas- 
centes, arrebentando  a  grandes  distancias,  têem  n'esta  caverna 
o  seu  poderoso  deposito.  Outros  dizem  ouvir-se  correr  a  agua  no 
interior  d'ella,  produzindo  estrondos,  como  se  formasse  quedas 
á  feição  de  catadupas,  e  um  susurro  longiquo;  mas  que  a  aber- 
tura por  onde  recebe  as  aguas  da  chuva,  não  é  a  entrada  antiga 
da  caverna,  com  a  qual  não  se  acerta  agora  por  estar  abatida  e 
desfigurada. 


71 

Carlos  Bonnet,  na  sua  já  cilada  memoria,  refere-se  somente 
á  abertura  por  onde  entram  as  aguas  do  Espargal  e  confirma  a 
situação  indicada,  dizendo  achar-se  á  direita  do  caminho  de  Alte 
para  Paderne,  passando-se  a  rocha  Amarella.  Ha  finalmente  a 
versão  de  que  o  sumidouro  dos  Lentiscaes,  se  communica  com  a 
vasta  caverna  da  igrejinha  dos  Sôidos  ou  Soídos.  E,  porém,  in- 
verosímil esta  asserção;  porquanto,  a  igrejinha  dos  Soidos  está 
situada  num  retalho  do  jurássico  superior,  entalado  entre  a  raia 
sul  da  faxa  do  Irias,  que  forma  a  cumiada  de  S.  Bartholomeu  de 
Messines  até  Salir,  e  uma  larga  ramificação  que  d'essa  faxa  corre 
para  leste  ainda  além  dos  dois  logarejos  de  Benafins  com  a  ex- 
tensão de  uns  4  kilometros,  não  sendo  inferior  a  sua  menor  lar- 
gura a  1:500  metros.  Por  esta  possante  ramificação  da  rocha 
triassica  estão  pois  geologicamente  separadas  e  incommunicaveis 
as  duas  mencionadas  cavernas. 

Se  com  eííeito  existiu  outra  entrada  para  a  caverna  do  su- 
midouro dos  Lentiscaes,  é  possível  que  n'ella  houvesse  uma  parte 
habitável,  de  que  se  utilisassem  os  homens  que  se  deixaram  re- 
presentados nos  campos  de  Paderne,  na  Fonte  Santa,  em  Alie  e 
Paniachos  por  instrumentos  neolithicos,  taes  como  os  que  vão  figu- 
rados na  estampa  xix,  sob  os  n.os  2,  3  e  4. 

Concelho  de  Silves 
(Freguezia  de  Algoz) 

Caverna  de  Algoz. — A  igreja  de  Algoz  está  situada  em  pleno 
terciário  lacustre  no  contacto  do  jurássico  superior,  e  é  no  Serro 
de  Gueina,  1  kilometro  ao  noroeste  da  igreja,  que  Carlos  Bonnet, 
na  sua  memoria  geographica  e  geológica,  publicada  em  1850, 
pag.  40,  dá  noticia  de  uma  grande  caverna,  que  todavia  não  vi- 
sitou, mas  de  que  teve  informações. 

Não  vi  eu  também  esta  caverna,  comquanto  d'ella  me  dessem 
conhecimento  quando  entrei  na  aldeia  de  Algoz  e  fui  examinar 
os  campos  adjacentes  a  oeste  e  a  leste  do  Barranco  Longo,  e  da 
ermida  da  Senhora  do  Pilar  ao  sul  de  Algoz,  onde  me  informa- 


72 

ram  ser  frequente  o  apparecimento  de  pedras  de  raio,  e  d'onde 
com  effeilo  já  conhecia  um  polidor  de  pedra,  pertencente  á  col- 
lecção  do  sr.  Joaquim  José  Júdice  dos  Santos,  que  represento  na 
estampa  xv,  sob  o  n.°  3. 

Em  Algoz  comprei  eu  um  machado  de  pedra,  que  havia  sido 
achado  nas  proximidades  da  ermida  do  Pilar,  o  qual  pode  ver-se 
na  minha  collecção  depositada  no  museu  do  Algarve.  Àcham-se 
portanto  nas  proximidades  daquella  caverna,  que  se  diz  ser  das 
maiores  do  Algarve,  isolados  critérios  do  período  neolithico,  dei- 
xando assim  presumir  que  não  deixariam  de  aproveitar  aquelle 
abrigo  os  homens  que  taes  instrumentos  alli  deixaram. 

Concelho  de  Loulé 

(Freguezia  de  Alte) 

Igrejinha  dos  Soídos.  —  0  ponto  do  Sobradinho,  na  vertente 
de  sueste  do  Serro  dos  Soidos,  n'uma  elevação  de  472  metros, 
que  o  navegante  observa  do  mar  entre  o  cabo  Carvoeiro  e  a  ponta 
da  Balieira,  distando  de  Alte  ao  noroeste  uns  1:800  metros,  in- 
dica a  caverna  da  igrejinha  dos  Soidos,  marcada  na  carta  pre- 
historica.  Já  ficaram  descriptas  antecedentemente  as  condições 
geológicas  d'esta  caverna,  acerca  da  qual  deixou  Carlos  Bonnet 
as  noticias,  que  vou  referir,  impressas  em  1850  na  sua  Descri- 
ption  géogràphique  et  géologique  (Algarve). 

Carlos  Bonnet  visitou  esta  caverna,  julgando  nella  encontrar 
vestígios  de  habitação  humana,  e  refere  ter  alli  feito  uma  exeava- 
ção,  mas  que  não  achou  ossos!  Já  se  vê  que  sob  o  manto  stala- 
gmitico  é  que  concebeu  a  possibilidade  de  encontrar  vestigios 
directos  de  habitação.  Não  diz,  porém,  as  espessuras  que  rompeu 
nem  indica  os  pontos  escolhidos  para  a  sua  pesquiza,  certamente 
muito  incompleta.  Não  falia  de  provas  indirectas,  ou  de  vestigios 
da  industria  antiga,  que  bem  parece  não  ter  procurado,  ou  não 
ter  sabido  reconhecer,  apesar  das  tradições  locaes  apontarem 
esta  e  outras  cavernas  d  aquella  região  como  tendo  sido  habita- 
das por  mouros. 


Não  admira,  porém,  que  a  Bonnet  escapassem,  em  1850, 
estas  interessantes  particularidades,  quando  hoje,  com  tanta  sabe- 
doria que  neste  paiz  se  apregoa,  ainda  não  se  reconheceu  a  ne- 
cessidade do  estudo  das  cavernas  do  Algarve,  por  mim  proposto 
em  1877,  e  apenas  tôcm  sido  exploradas,  sob  os  auspícios  da 
secção  geológica,  algumas  do  litoral  marítimo  da  costa  Occiden- 
tal, mas  sem  attenção  á  ordem  geographica,  não  se  podendo  por 
isso  formar  approximado  conceito  da  expressão  etimológica  das 
raras  troglodyticas,  que  viveram  n'este  solo,  nem  da  sua  distri- 
buição geographica.  Não  ha,  pois,  um  pensamento  definido,  pre- 
sidindo a  este  estudo,  nem  systema  a  que  devam  subordinal-o 
os  próprios  monographistas.  Em  assumptos  archeologicos  cada 
qual  corre  para  seu  lado;  falta  a  congregação,  porque  a  iniciativa 
não  parte  d'onde  devera  partir;  apenas  sobeja  o  antagonismo,  pro- 
movendo embaraços  e  desconceito  para  os  que  trabalham. 

Por  estas  e  outras  causas,  o  atrazamento  n'este  género  de 
inslrucção  superior  em  Portugal  é  deplorável!  Por  isso,  o  pouco 
que  Carlos  Bonnet  disse,  ha  mais  de  trinta  annos,  de  algumas 
cavernas  do  Algarve,  é  preciso  aproveitar-se,  agradecendo  á  sua 
memoria  este  serviço.  Relativamente  á  igrejinha  dos  Soidos  dá 
as  seguintes  noticias: 

«Na  vertente  de  sueste  da  rocha  dos  Soidos,  acha-se  a  entrada 
d'esta  caverna  no  logar  denominado  Sobradinho,  ao  norte  de 
Alte  um  quarto  de  légua,  ao  nivel  do  chão,  e  é  tão  apertada,  que 
só  com  difíiculdade  se  vence  a  sua  passagem.  Para  alli  se  entrar 
é  mister  levar  luzes.  E  grandiosa,  de  forma  circular,  de  abobada 
muito  elevada  á  feição  de  cúpula,  a  primeira  camará.  As  stala- 
ctites  assaz  grossas  e  separadas  umas  das  outras  formam  com 
as  stalagmites  umas  columnas  similhantes  ás  das  igrejas.  Para  o 
lado  do  nascente  ha  diversas  passagens  que  se  dirigem  a  cavi- 
dades baixas,  e  estas  parecem  capellas.  Em  razão  de  tal  confi- 
guração deram  os  habitantes  das  localidades  próximas  a  esta  ca- 
verna o  nome  de  Igrejinha,  considerando  a  grande  sala  como 
nave  central  e  as  camarás  contíguas  como  capellas.  Nas  proxi- 
midades da  entrada  ha  muitas  fendas  e  buracos,  que  communi- 


cam  com  outras  cavidades,  como  geralmente  se  acham  em  todo  este 
lado  do  serro,  sendo  por  isso  perigoso  percorrel-o  sem  um  guia.» 

Carlos  Bonnet,  pelas  informações  que  obteve,  diz  ser  muito 
maior  do  que  esta  a  caverna  do  serro  de  Gueina,  perlo  de  Algoz, 
acima  indicada. 

Já  notei,  que  em  Alte  e  Fonte  Santa,  ao  sul  do  Sobradinho, 
são  frequentes  os  instrumentos  prehistoricos,  abundando  também 
os  de  cobre  e  bronze  nas  immediações  da  mina  cuprifera  de  Alie; 
o  que  bem  mostra  ter  aquella  região  sido  frequentada  pelas  an- 
tigas raças  que  senhorearam  o  solo  d'esta  província. 

Caverna  do  Poço  dos  Mouros.  —  No  concelho  de  Loulé,  fre- 
guezia  de  Alte,  e  não  mui  distante  da  antecedente,  acha-se  esta 
caverna  no  serro  da  Pena,  a  noroeste  de  Salir  uns  6  kilometros. 
E  muito  nomeada  nas  localidades  próximas  e  em  todo  o  Algarve. 
A  gente  mais  antiga  do  campo  refere-lhe  varias  tradições,  e  porque 
toda  essa  gente  acredita  convictamente,  que  fora  uma  das  prin- 
cipaes  habitações  dos  mouros,  denomina-a  por  isso  Poço  ou  Ca- 
verna dos  Mouros. 

O  serro  da  Pena,  figurando  no  alto  relevo  orographico  d'esta 
província  com  470  metros  de  altitude,  numa  cota  pouco  inferior 
ao  serro  dos  Soidos,  de  que  é  separado  por  um  extenso  valle, 
termina  a  sua  máxima  elevação  num  apparatoso  planalto  ligei- 
ramente ondulado  com  mais  de  3  kilometros  de  extensão  de 
oeste  para  este,  sobre  uma  largura  que  atlinge  do  norte  ao  sul 
mais  de  lk,500,  sendo  nestas  ultimas  orientações  inaccessivel, 
por  ser  a  rocha  quasi  cortada  a  pique. 

É  o  serro  da  Pena  mais  procurado  pelas  rapinas  (águias, 
griffos,  bufos,  francelhos  e  gaviões),1  do  que  pelos  visitantes,  que 


1  Por  informações  cie  alguns  caçadores  da  freguezia  de  Aite,  e  do  gente  da  próxima 
aldeia  da  Penina,  o  serro  da  Pena  ò  frequentado  por  muitas  rapinas.  Dão  noticia  de  duas 
águias,  que  bem  podem  ser  a  real  (Aquila  chrysaclos,  L.)  e  a  imperial  (Aquila  heliaca, 
Savig.);  do  grillb  (Gyps  fulvus,  Gm.);  do  francelho  (Folco  linunculus,  L.?);  do  milha- 
fre (Milvus  regalis,  Br.);  do  buffo  ou  corujão  (Bubo  maximus,  Sibb.);  do  gavião  (Acci- 
piler  nisus,  L.)  c  de  outras  espécies,  que  não  sabem  descrever.  Quasi  todas  são  vulga- 
res, ou  têem  sido  observadas  no  Alemtejo,  e  por  isso  não  admira  que  também  se  achem 
no  Algarve,  cuja  ornithologia,  como  tudo  mais,  carece  de  estudo  especial. 


/') 


só  a  muito  custo  conseguem  vencer  as  abruptas  e  empinadas  ver- 
tentes do  poente  e  nascente  para  chegarem  ao  bello  plan'allo  em 
cjue  se  acha  o  Poço  dos  Mouros,  a  que  alguns  camponezes  dão 
também  o  nome  de  Algar  dos  Mouros. 

Percorri  os  mais  elevados  serros  d'aquella  região,  e  no  da 
Pena  fui  principalmente  observar  a  entrada  do  Poro  dos  Mouros, 
mas  não  visitei  a  caverna,  porque  não  ia  preparado  com  luzes 
próprias,  porque  o  meu  trabalho  não  permittia  delongas  em  es- 
tudos não  auetorisados.  Foi  porém  duas  vezes  vista  por  Carlos 
Bonnet,  e  por  isso  vou  restringir-me  ás  noticias  que  este  acadé- 
mico deixou  escriptas  na  sua  referida  memoria,  publicada  em 
língua  franceza,  pela  academia  real  das  sciencias,  em  1850. 

« A  caverna  denominada  Poço  dos  Mouros,  Buraco  dos  Mou- 
ros (Caverna  dos  Mouros)  é  a  mais  profunda  da  província  e  me- 
rece alguma  attenção.  Ácha-se  a  sua  entrada  sobre  o  planalto 
da  serra  da  Pena,  que  n'este  logar  descáe  um  tanto  para  o  sul. 
Não  se  descobre  a  sua  abertura  senão  quando  se  está  junto 
d'ella.  A  montanha,  em  razão  das  muitas  convulsões  por  que  tem 
passado;  está  cheia  de  amontoamentos  de  penedos ;  a  sua  altitude 
junto  á  entrada  da  caverna  é  de  455  metros,  medindo  uns  20 
metros  de  circumferencia  sobre  5  de  profundidade;  mas  só  pelo 
lado  do  nascente  se  pôde  descer.  As  aguas  pluviaes  de  uma  parte 
da  serra  dão  alli  entrada  e  por  isso  a  humidade  lhe  alimenta 
uma  constante  vegetação.  Quando  a  visitei  (diz  Bonnet),  havia 
uma  frondosa  alfarrobeira,  que  lhe  sombreava  e  encobria  a  en- 
trada. Tendo-se  descido,  acham-se  muitas  fendas  e  para  o  no- 
roeste duas  aberturas,  uma  á  esquerda,  de  7  a  8  palmos,  e  outra 
mais  pequena  á  direita,  por  onde  uma  pessoa,  de  grossura  me- 
diana, pôde  passar  e  descer  a  uma  profundidade  de  12  a  15 
palmos,  onde  se  encontra  uma  camará,  alumiada  pelas  frestas, 
de  solo  ondulado  e  escorregadio,  com  30  palmos  em  todas  suas 
dimensões.  Do  lado  de  oeste  35°  norte,  acha-se  outra  abertura 
de  12  palmos  de  largura  e  de  15  a  18  de  altura  para  um  corre- 
dor de  ladeira  rápida  de  75°,  onde  já  é  preciso  caminhar  com 
luz.  Tem  este  corredor  para  noroeste  uma  inclinação  de  quasi 


35°;  percorridos  100  palmos  de  extensão,  diminue  de  largura, 
até  4  palmos  e  de  altura  a  uns  7  ou  8.  N'este  ponto  reparle-se 
num  grande  numero  de  zigzags,  permitíindo  ainda  o  transito  até 
uma  extensão  de  400  palmos,  onde  toda  a  passagem  está  inter- 
rompida por  amontoamentos  de  pedras,  que  antigamente  não 
existiam,  e  por  isso  se  podia  ir  muito  mais  longe. 

« Uns  25  palmos  antes  d'este  ponto  interrompido,  acha-se  na 
direcção  de  nor-noroesíe  uma  abertura  mui  pequena,  que  dá  en- 
trada a  uma  passagem  bastante  estreita  no  rumo  do  norte,  onde 
é  mister  ir  de  rastos  por  uma  apertada  passagem  de  120  pal- 
mos; então  esta  passagem  toma  o  rumo  de  noroeste  e  começa  a 
ganhar  maiores  dimensões,  a  ponto  de  se  poder  transitar  de  pé; 
e  prosegue  o  seu  alargamento  até  á  distancia  de  1 1  metros,  em 
que  se  acha  uma  grande  camará  com  85  palmos  cie  comprimento 
na  direcção  oeste  32°,  norte  a  sul  32°  este,  sobre  45  de  largura. 
Do  estreito  corredor  até  este  salão  desec-se  por  ladeira  pouco 
inclinada. 

« Não  é  parelho  o  solo  d'esta  grande  cavidade,  porque  para  o 
centro  começa  a  levantar-se  pela  formação  de  uma  stalagmite. 
A  abobada  tem  a  forma  pyramidal  ou  de  funil  invertido,  com  140 
palmos  de  altura.  A  rocha  calcarea  que  constitue  as  paredes  é 
lisa,  compacta  e  polida.  A  abobada  tem  algumas  stalactites.  Para 
o  lado  do  sul  ha  no  solo  um  pequeno  abatimento.  Os  morcegos 
são  os  habitadores  d'esta  recôndita  camará;  os  seus  excrementos 
já  formam  uma  espessura  de  3  palmos.  Rompendo  a  rocha  con- 
crecionada do  solo  (diz  Bonnet),  não  havia  ossos.  A  direcção  mé- 
dia d'esta  caverna  é  oeste  45°  norte  a  este  45°  sul,  o  que  dá 
noroeste  a  sueste.  O  seu  comprimento,  comprchendendo  as  sinuo- 
sidades, orça  por  1:000  palmos  (222m,23),  e  calculando  a  incli- 
nação das  differentes  rampas,  poderá  ter  uma  profundidade  ver- 
tical, abaixo  do  plano  da  entrada,  de  130  palmos,  ou  28m,60. 

« Esta  caverna  é  assumpto  de  superstição  entre  os  habitantes 
dos  arredores,  que  só"  se  lhe  approximam  com  certo  terror,  sem 
que  todavia  se  atrevam  a  visital-a.  A  tradição  refere  que  durante 
muitos  séculos  ninguém  ousou  n'ella  entrar  senão  um  padre,  que 


disse  ler  encontrado  um  lago  e  uma  ribeira.  O  padre  iria  talvez 
numa  occasião  pouco  depois  das  chuvas,  e  por  isso  acharia  um 
deposito  de  agua;  e  não  deixa  de  ser  verosímil,  que,  n'uma  epo- 
cha  anterior,  podcsse  percorrer  distancias  agora  interrompidas 
por  amontoamentos  de  pedras,  e  achasse  um  reservatório  subter- 
râneo; e  tanto  isto  é  de  acreditar,  que  nas  vizinhanças  brotam 
abundantes  nascentes  cujas  aguas  podem  provir  d'este  serro.  9 

Em  junho  de  1846  e  setembro  de  1847,  diz  Bonnet  não  ter 
encontrado  agua  no  interior  da  caverna. 

O  nome  de  Poro  dos  Mouros  (referem  os  habitantes)  provém 
de  ter  sido  habitada  a  caverna  pelos  mouros,  que  se  bateram 
sobre  a  montanha  no  tempo  da  sua  expulsão  do  Algarve.  A  este 
respeito  colligiu  Bonnet  uma  lenda,  que  não  reproduziu  na  sua 
memoria.  Grande  quantidade  de  calhaus  arrastam  para  alli  as 
torrentes  pluviaes,  interrompendo  as  passagens.  A  segunda  vez 
que  Bonnet  visitou  a  caverna  com  um  anno  de  intervallo,  foi 
obrigado  a  abrir  caminho  por  elles,  em  logares  onde  no  anno 
antecedente  não  existiam,  e  por  isso  julgou  que  passado  mais 
algum  tempo  ninguém  poderá  chegar  á  grande  camará  que  ficou 
descripta. 

O  serro  da  Pena,  segundo  as  observações  feitas  por  Carlos 
Bonnet,  apresenta  no  seu  planalto  uma  ligeira  inclinação  de  oeste 
para  este,  tendo  a  oeste  a  sua  máxima  cota  de  470  metros,  no 
centro  a  de  460  melros  e  a  este,  junto  á  entrada  da  caverna, 
455  metros.  Este  abaixamento  de  15  metros  com  relação  ao 
ponto  culminante  e  á  extensão  da  montanha,  forma  pois  um  an- 
gulo muito  agudo,  e  por  isso  pouco  sensível  á  vista  do  observa- 
dor. A  rocha  pertence  a  formação  do  calcareo  jurássico,  tendo 
ao  norte  no  seu  contacto  a  faxa  triassica,  que  corre  do  poente 
para  o  nascente,  cortando  a  província  inteira. 

Diz  Silva  Lopes,1  que  na  raiz  da  rocha  da  Pena  e  na  da  Pe- 
nina,  meia  légua  distante,  brotam  fontes  de  agua  férrea,  o  que 
com  effeito  verifiquei  ser  exacto,  e  que  umas  grandes  fendas,  que 


Clioroçrrapliia  do  reino  do  Algarve,  pag.  320—1841. 


78 

atravessam  a  rocha  da  Pena,  foram  produzidas  pelo  terremoto 
de  1755,  que  lhe  desaggregou  e  expelliu  a  grandes  distancias 
varias  pedras  de  prodigiosa  grandeza. 

O  facto  de  não  ter  Carlos  Bonnet  achado  ossos  humanos  no 
corte  que  fez  sobre  o  solo  concrecionado  ou  stalagmitico  da 
grande  sala  dos  morcegos,  é  insulíiciente  para  provar  que  neu- 
tros logares  da  caverna  não  haja  indícios  de  ter  sido  habitada 
em  tempos  prehistoricos.  As  tradições  locaes  deixam  presumir 
que  o  foi,  porque  talvez  em  tempos  antigos  alli  se  achassem  os- 
sos humanos  ou  objectos  próprios  dos  usos  da  vida,  e  que  não 
se  conservando  noticia  de  outro  povo  anterior  á  invasão  mussul- 
mana,  aos  mouros  se  referisse  a  occupação  da  caverna;  e  para 
que  não  ficassem  essas  memorias  sem  o  maravilhoso  que  lhes  ó 
peculiar  nas  lendas  tradicionaes,  imaginou-se  um  grande  com- 
bate no  alto  do  serro  da  Pena  entre  mouros  e  christãos,  e  a  re- 
tirada dos  mouros  vencidos  para  o  interior  da  caverna,  quando 
é  provável  que  o  mais  próximo  combate  que  houvesse,  fosse  o  da 
tomada  do  castello  de  Salir,  uns  6  kilometros  a  sueste  do  Poço 
dos  Mouros. 

Interpretadas  assim  as  tradições,  accresce  a  circumstancia 
congruente  de  terem  por  vezes  apparecido  nas  proximidades  da 
caverna,  em  Paniachos,  campos  de  Alte  e  Fonte  Santa,  como  vão 
indicados  na  carta  prehistorica,  significativos  critérios  neolithicos 
e  da  idade  do  bronze. 

Faltando,  porém,  as  provas  affirmativas,  suppram-n'as  por 
einquanto  as  presumpções  de  que  uma  bem  dirigida  exploração 
poderá  mostrar  que  não  os  mouros  de  outro  dia,  mas  os  selva- 
gens de  outr'ora  seriam  levados  a  utilisar  um  tão  vasto  e  seguro 
abrigo,  tanto  mais  tendo-se  verificado  a  existência  de  um  dolmen 
coberto,  já  destruído,  no  serro  das  Pedras,  situado  na  linha  de  no- 
roeste a  sueste,  entre  a  caverna  do  Poço  dos  Mouros  e  o  castello 
de  Salir,  como  vae  figurado  com  a  sua  respectiva  planta  na  es- 
tampa n.°  xi,  e  com  os  objectos  alli  achados,  representados  na 
estampa  x,  sob  os  n.os  1  a  8,  advertindo  que  entre  o  dolmen  e  a 
caverna  haverá  apenas  a  distancia  de  uns  5  kilometros. 


71) 

E  porque  mui  provavelmente  não  serei  eu  o  explorador  cTessa 
caverna,  aqui  ponho  de  aviso,  a  quem  o  for,  a  circumstancia,  já 
parcialmente  declarada  por  Bonnet,  que  pode  dar-se,  de  não  se- 
rem alli  encontrados  ossos  humanos,  mas  simplesmente  provas 
indirectas  de  ter  sido  habitada;  o  que  poderá  significar,  se  taes 
provas  indirectas  apparecerem,  que  os  troglodytas  da  caverua  do 
serro  da  Pena  preferiram  construir  depósitos  externos  para  reco- 
lherem as  relíquias  dos  seus  defuntos.  Talvez  então  se  descu- 
bram outros  depósitos  mortuários  nos  mais  próximos  serros  da 
região  e  maior  copia  de  critérios  prehistoricos  nas  circunvizinhan- 
ças da  celebre  caverna,  que  venham  auxiliar  esta  presumpção. 

Se  me  tivesse  sido  entendida  e  concedida  a  proposta  que  fiz 
em  1877,  para  que  o  estudo  das  antiguidades  do  Algarve  come- 
çasse pelas  cavernas,  os  factos  suppririam  hoje  escusadas  conje- 
cturas. É  o  que  succede  todas  as  vezes  que  se  altera  o  andamento 
de  qualquer  trabalho,  ou  quando  se  encommendam  trabalhos  pú- 
blicos, mais  por  conveniência  de  occasião  do  que  pelo  zelo  scien- 
tifico. 

Caverna  da  Solestreira.  —  Occupa  esta  caverna  uma  extre- 
midade da  formação  jurássica  no  contacto  da  rocha  triassica  entre 
Salir  e  Querença,  freguezias  pertencentes  ao  concelho  de  Loulé. 
Dizem  varias  pessoas,  que  a  visitaram,  ser  uma  das  maiores 
d'esta  província.  Estive  mui  perto  da  sua  entrada  numa  occasião 
em  que  não  era  possível  pernoitar  n'alguma  das  duas  referidas 
freguezias,  porque  o  pouco  tempo  de  que  podia  dispor  o  empre- 
guei no  exame  que  fui  fazer  ao  serro  das  Pedras,  onde  havia  um 
dolmen  coberto  destruído,  que  represento  na  estampa  xi.  Obtive 
comtudo  umas  informações,  que  me  deixaram  presumir  a  possi- 
bilidade de  se  poderem  alli  encontrar  seguros  vestígios  de  antiga 
habitação. 

Descobriu-se  haver  no  interior  da  caverna  um  espesso  depo- 
sito de  guano  de  grande  utilidade  para  as  terras  cultivadas,  pro- 
veniente da  residência  immemorial  que  alli  hão  tido  os  morcegos; 
e  tendo  sido  extrahida  grande  quantidade  d'aquella  fertilisante 


80 

substancia,  disseram  alguns  informadores  que  por  vezes  se  acha- 
vam pedaços  de  louça  de  barro  muito  grosseira,  que  bem  mos- 
trava ter  para  alli  sido  levada  por  pessoas  antigas,  que  se  tives- 
sem refugiado  naquelle  logar  cm  tempos  de  guerra  ou  por  outros 
motivos,  e  que  além  d'isto  havia  noticia  de  já  anteriormente  se 
terem  achado  na  caverna  da  Solestreira  algumas  cousas  de 
valor. 

Corre  tradição  local  de  que  esta  caverna  tem  communicação 
com  a  do  Poço  dos  Mouros  na  serra  da  Pena;  o  que  não  é  verosí- 
mil, porque  tendo  a  faxa  triassica,  ao  norte  de  Salir,  apenas  1  kilo- 
metro  de  largura  apparente,  logo  um  tanto  a  oeste,  estende  para 
o  sul  uma  ponta  com  mais  de  4  kilometros,  internando-se  no  ju- 
rássico superior,  cortando  e  dividindo  em  duas  secções  dislinctas 
a  grande  massa  jurássica,  a  qual  por  esta  causa  parece  não  poder 
deixar  communicaveis  as  duas  cavernas.  Além  da  Solestreira, 
diz  Carlos  Bonnet  haver  nas  montanhas  entre  Salir  e  Querença, 
um  grande  numero  de  cavidades  naturaes,  pequenas  cavernas, 
fracturas  e  fendas  mais  ou  menos  largas. 

Tudo  isso  devera  ser  cuidadosamente  explorado  em  devida 
regra.  A  caverna  dista  do  monumento  do  serro  das  Pedras 
para  sueste  uns  3  a  4  kilometros,  e  tem  a  igual  distancia  na 
orientação  de  sudoeste  a  celebre  mina  cuprifera  da  Vendinha  do 
Esteval,  cujos  trabalhos  antigos  relatarei  em  seu  competente  logar; 
vae  por  isso  indicada  na  carta  prehistorica,  advertindo  porém 
aqui,  desde  já,  que  nas  circumvizinhanças  de  Querença  e  da  mina 
aífirmam  os  camponezes  locaes  terem  sido  achadas  muitas  pedras 
de  raio  e  no  interior,  como  nos  terrenos  adjacentes  á  mina,  muitas 
cunhas  de  bronze  com  corte  de  machado. 

Todas  estas  circumsíancias  nas  vizinhanças  de  uma  região 
abundante  de  cavernas  e  grutas  naturaes,  recommendam  a  um 
detido  exame  esses  recônditos  logares,  que  em  tempos  assaz  re- 
motos, bem  poderiam  ter  abrigado  os  homens  que  tão  perlo  se  dei- 
xaram representados  por  seus  instrumentos  de  pedra  e  de  bronze. 
Conírontando-se  pois  estas  conjecturas  com  as  que  acompanham 
as  noticias  respectivas  á  mina  da  Vendinha  do  Esteval,  melhor 


81 

poderão  compréhender-se  c  admittir-se  as  ponderações  que  me 
occorreram. 

Addiciono  agora  a  este  artigo,  que  escrevi  em  1883,  uma 
noticia,  de  todo  o  ponto  importante,  que  vem  inteiramente  confir- 
mar as  minhas  precedentes  presumpções  com  um  facto  assaz  po- 
sitivo, que  prova  ter,  com  effeito,  sido  utilisada  a  caverna  da  So- 
lestreira  em  tempos  prehistoricos. 

Encontrei-me  em  Faro  no  anno  de  1884  com  uns  distinctos 
naturalistas  inglezes  e  allemães,  sendo  um  d'elles  o  dr.  Gadow, 
professor  da  universidade  de  Cambridge,  a  quem  communiquei 
varias  noticias  respectivas  á  paleoethnologia  do  Algarve,  e,  no- 
tando que  se  interessava  pelo  conhecimento  das  cavernas,  affir- 
mei-lhe  a  convicção  que  tinha,  havia  muito  tempo,  de  que  ellas 
deviam  revelar  os  mais  antigos  critérios  das  primeiras  raças  que 
viveram  na  região  algarviense,  e  a  propósito  citei  o  facto  de  terem 
apparecido  na  caverna  da  Solestreira  alguns  fragmentos  de  louça 
antiga  sob  as  espessas  camadas  de  guano  alli  deixadas  pelos 
morcegos. 

Ao  que  parece,  o  sr.  Gadow  ligou  alguma  importância  a  esta 
informação,  e  annunciou-me  logo  que  no  anno  seguinte  voltaria 
ao  Algarve  para  visitar  as  cavernas,  e  não  faltou,  porque  em 
1885,  estando  eu  ausente,  constou-me  ter  sido  procurado  por 
aquelle  naturalista,  que,  não  me  encontrando,  foi  fazer  um  re- 
conhecimento na  Solestreira,  onde  achou  um  esqueleto  humano, 
contas  da  chamada  calaite  e  outros  objectos,  cujo  descobrimento 
communicou  ao  eximio  naturalista  o  sr.  Alfredo  Bensaude,  a 
quem  sou  devedor  d'estes  obsequiosos  esclarecimentos.  Escre- 
vendo-lhe,  porém,  o  sr.  Bensaude  e  eu  posteriormente,  pedindo 
informações  mais  desenvolvidas,  o  sr  Gadow  não  continuou  a 
tratar  deste  assumpto,  reservando-o  mui  provavelmente  para  al- 
guma memoria  que  se  proponha  escrever. 

Está  portanto  provado,  que  a  caverna  da  Solestreira  foi  utili- 
sada para  deposito  mortuário,  mui  provavelmente  no  período  neo- 
lithico,  ou  na  epocha  da  transição  d'esse  período  para  a  idade 
do  bronze,  em  que  também  apparecem  no  Algarve  as  celebres 

6 


82 

contas  de  ealaite  nos  depósitos  mortuários,  como  em  seu  logar 
mostrarei. 

Caverna  da  Esparguina  da  Lapa.  —  A  villa  de  Loulé  pode 
dizer-se  que  assenta  os  seus  alicerces  no  centro  da  zona  mais 
ampla  e  desaffrontada  do  jurássico  superior.  São  numerosas  as 
cavernas  nesta  região,  comprebendidas  entre  a  faxa  do  trias,  ao 
norte  e  as  formações  ao  sul  do  cretáceo  inferior  e  do  terciário  la- 
custre superior,  attingindo  alli  a  zona  jurássica  a  largura  de  uns 
12  kilometros,  contada  do  norte  para  o  sul,  passando  pelo  centro 
da  villa.  A  maioria  d'essas  cavernas  não  tem  nome  conhecido; 
algumas  tomam  porém  o  dos  sitios  em  que  existem;  tal  ó  esta 
da  Esparguina  da  Lapa,  ao  norte  do  valle  de  Judeu,  situada  ao 
poente  e  a  8  kilometros  de  distancia  da  torre  de  S.  Clemente,  e 
taes  são  as  duas  seguintes: 

Caverna  do  Barrocaliniio,  a  oeste  e  distante  5  kilometros 
da  villa. 

Caverna  de  Matos  da  Nora,  a  sueste  e  a  6  kilometros  da 
torre  de  S.  Clemente,  e  mais  quatro  cavernas  na  mesma  orien- 
tação comprehendidas  numa  área  de  2  kilometros. 

Taes  são  as  informações  que  a  este  respeito  me  transmittiu 
o  sr.  António  de  Paulo  Serpa,  empregado  na  direcção  das  obras 
publicas  do  clistricto  de  Faro,  auctor  de  muitas  plantas  que  foram 
levantadas  sob  minha  direcção  durante  o  reconhecimento  geral 
das  antiguidades  d'esta  província,  de  que  me  occupei  em  1877 
e  1878,  e  por  isso  já  mui  habituado  ao  reconhecimento  de  anti- 
guidades. 

São  assaz  conhecidas  na  região  a  que  pertence  a  villa  de 
Loulé  as  pedras  de  raio,  por  terem  sido  achadas  por  campone- 
zes.  Nenhuma,  porém,  obtive,  porque,  quem  as  guarda,  ali- 
menta certamente  o  velho  e  geral  preconceito  de  que  não  cairá 
raio  na  casa  em  que  existam;  e  por  este  mesmo  motivo  não  con- 
segui obter  em  Portimão,  Silves,  Alvor  e  noutras  terras  bastantes 


83 

e  mui  perfeitas,  que  só  me  foi  licito  observar.  Na  aldeia  de  Que- 
rença  obtive  apenas  um  machado  de  pedra.  0  vasto  concelho  de 
Loulé  abunda  pois  em  critérios  neolithicos. 

Já  se  vê,  pois,  que  na  ultima  idade  da  pedra  foi  aqueíle  ter- 
ritório frequcnlado  por  homens  que  faziam  uso  de  instrumentos 
de  pedra  polida  e  que  n'esta  extrema  parte  do  occidente,  como 
n'oulras  regiões  da  Europa,  construíram  os  tiimuli,  as  galerias 
cobertas,  as  antas  ou  dolmens  para  depositarem  os  seus  defun- 
tos, assim  como  para  os  mesmos  fins  e  para  sua  vivenda  apro- 
veitaram as  cavernas  naturaes,  chegando  ainda  numa  epocha 
menos  remota  a  escavarem  grutas  artificiaes  onde  a  nalureza  do 
solo  não  tinha  formado  cavernas,  e  portanto,  havendo  tantas  ca- 
vernas na  região  jurássica  de  Loulé,  não  irá  fora  de  propósito 
esperar-se  que  ellas  possam  corresponder  com  a  mesma  afirma- 
ção, se  um  dia  chegarem  a  merecer  este  conceito  e  houver  go- 
vernos e  corporações  scientificas  que  não  julguem  mal  empregado 
o  tempo  e  o  dispêndio  que  exijam  as  explorações  reclamadas  por 
esses  recônditos  abrigos  da  infância  humana.  Haverá  então  quem 
se  admire  de  que,  tendo  já  sido  estudadas  na  Europa  numerosís- 
simas cavernas,  na  data  em  que  este  livro  está  sendo  escripto, 
se  me  haja  recusado  o  estudo  das  do  Algarve.  O  estado  de  civi- 
lisação  dos  povos  avalia-se  por  estes  e  outros  factos.  A  Dina- 
marca, a  Suécia,  a  Hungria  e  outras  pequenas  nações  pouca 
nomeada  teriam  hoje  no  mundo  civilisado,  se  não  se  tivessem 
apresentado  com  os  serviços  que  hão  prestado  ao  progresso  da 
anthropologia  e  da  archeologia  prehistorica. 

Ooncelho  cie  Olhão 

Caverna  do  Aijysmo.  — O  serro  de  S.  Miguel  com  403  me- 
tros de  altitude  e  o  serro  da  Cabeça,  também  chamado  de  Mon- 
carapacho, com  246  metros  sobre  o  nivel  do  mar,  são  pontos 
culminantes  do  lado  oriental  d'esta  província,  que  flanqueiam  o 
valle  Formoso  por  onde  corre  a  extensa  ribeira  que  vae  desaguar 
sobre  o  esteiro  e  foz  do  porto  da  Fuzeta. 


84 

Está  em  plena  região  jurássica,  tendo  ao  norte  a  faxa  trias- 
sica  e  a  sueste  o  terciário  marino,  que  segue  á  beira  do  rio  de 
Olhão  para  Tavira  até  quasi  o  flanco  direito  do  Gilão.  O  serro 
da  Cabeça  mostra  ter  soffrido  sensíveis  alterações,  apresentando 
a  curtas  distancias  grandes  e  profundas  fracturas,  amontoamentos 
de  grossos  penedos,  depressões  e  elevações,  taes  como  para  oeste 
uns  pequenos  outeiros  de  forma  mammillar,  e  terá  approximada- 
mente  uns  6  kilometros  de  extensão,  a  partir  de  este,  junto  ao 
monte  do  Thesouro  e  terminando  a  oeste  na  aldeia  do  Jordana. 
No  começo  do  serro,  do  lado  do  mar,  está  uma  cavidade,  um 
tanto  cercada  de  pedras,  que  serve  de  entrada  a  uma  grande  ca- 
verna denominada  o  Abysmo,  onde  cheguei  a  entrar,  notando 
haver  diversas  camarás  e  ramificações,  mais  ou  menos  difficil- 
mente  transitáveis,  mas  que  não  percorri  por  falta  de  luzes  apro- 
priadas. Diz-se  terem  sido  d'alli  extrahidos  muitos  objectos  dei- 
xados pelos  mouros. 

Cavernas  da  Ladroeira  Grande  e  da  Ladroeira  Pequena. — 
No  alto  do  mesmo  serro  da  Cabeça,  e  quasi  defrontando-se,  estão 
duas  outras  cavernas,  denominando- se  uma  Ladroeira  Grande  e 
a  outra  Ladroeira  Pequena.  N'esta,  a  entrada  que  hoje  se  lhe 
conhece  é  uma  fenda  estreitamente  apertada,  que  impede  a  pas- 
sagem. Diz-se  que  teve  outra,  agora  obstruída  e  em  logar  tam- 
bém desconhecido.  Um  tiro  de  rewolver  produz  no  seu  interior 
uma  detonação  forte  e  prolongada.  Nada  se  sabe  ao  certo  d'esta 
caverna. 

A  outra  permitte  a  entrada  para  uma  cavidade  espaçosa  e 
de  abobada  baixa.  Dizem  que  tinha  passagens  abertas  para  outras 
grandes  cavidades,  mas  que  ha  muitos  annos  estão  obstruídas. 
Por  este  motivo,  se  é  certo,  também  nada  se  sabe  com  verdade.1 
Só  uma  exploração  bem  dirigida  poderia  esclarecer  um  tão  im- 
portante assumpto.  A  região  foi  frequentada  no  período  neoli- 
thico,  porque  lá  ficaram  as  provas  dispersas  por  todo  aquelle 
accidentado  solo.  Muitos  machados  de  pedra  polida  têem  sido 
achados  nos  montes  e  terrenos  adjacentes  á  rica  aldeia  de  Mon- 


85 

carapacho.  Alli  mesmo  me  vendeu  um  oleiro  o  que  vac  figurado 
na  estampa  xx  (concelho  de  Olhão),  sob  o  n.°  3.  Qual  seria  pois 
a  habitação  dos  homens  que  durante  a  ultima  idade  da  pedra 
deixaram  tão  significativos  signacs  da  sua  existência  nos  terrenos 
de  Moncarapacho?  O  futuro  responderá,  se  alguma  vez  se  tomar 
a  serio  um  estudo  que  já  podéra  estar  feito,  offerecendo  á  scicncia 
elementos  importantíssimos,  e  collocando  o  paiz  ao  par  dos  que 
caminham  nas  sendas  do  progresso. 

São  estas  as  cavernas  que  vão  unicamente  indicadas  na  carta 
prchistorica:  faltam  talvez  cinco  vezes  outras  tantas.  E  fallo 
nellas  e  quiz  muito  de  propósito  apontal-as,  embora  não  me 
fosse  licito  estudal-as,  para  que  futuros  escriptores,  quando  em 
Portugal  se  começar  a  comprehender  a  importância  d'este  estudo, 
não  hajam  de  fulminar  a  minha  memoria  com  as  suas  censuras, 
lançando  á  conta  da  minha  ignorância  o  silencio  a  que  me  cum- 
pria votar  este  assumpto. 


III 

período  neolithigo 

SUMMARIO 

Monumentos  megalitliicos  da  architectura  paleoethnologica.  —  Menhirs.  —  Alinhamen- 
tos.— Cromlecks.—  Antas  ou  dolmens,  synonymos  de  aras  ou  altares.—  Discute-se 
se  o  dolmen  apparente  esteve  sempre  descoberto  ou  primitivamente  sob  tumu- 
lus.  —  Opiniões  e  presumpções  ácêrea  d'este  assumpto.  —  Cistos,  ou  pequenos  dol- 
mens. —  Fundamentos  que  permittem  suppor-se  ter  havido  no  Algarve  cinco  loga- 
res  em  que  existiram  antas  ou  dolmens  apparentes.  — Descrevem-se  as  condições 
geograpliicas  d'esses  logares  e  indicam-se  na  carta  prehistorica,  2.a  columna,  sob 
a  epigraplie:  «Anlas  ou  dolmens  que  presumptivamente  existiram  sobre  o  solo». 

Na  classe  dos  monumentos  megalithicos i  estão  grupadas  as 
mais  typicas  construcções  da  architectura  prehistorica,  formadas 
de  grandes  pedras  toscas,  comprehendendo  os  menhirs,  alinha- 
mentos, cromlecks  e  dolmens. 

O  menhir  é  uma  unica  pedra  tosca  erguida  a  pino  e  cravada 
no  solo,  de  forma  variável  e  de  diversas  dimensões.  D'estas  pe- 
dras monumentaes  consta  existirem  muitas  in  situ  em  todo  o 
reino,  mas  ainda  ninguém  tratou  de  invenlarial-as  e  descre- 
vel-as.2  São  vulgares  e  numerosas  em  vários  paizes  da  Europa. 


1  Diz-se  ser  este  termo  derivado  do  prefixo  mega,  que  significa  grande,  e  de  lillios, 
pedra. 

2  Depois  de  escripto  este  capitulo,  veiu  á  minha  mão  um  trabalho  impresso  em  1881 
na  typographia  Lallemant,  intitulado :  Relatório  e  mappas  acerca  dos  edifícios  que  devem 
ser  classificados  monumentos  nacionaes,  apresentados  ao  governo  pela  real  associação 
dos  archileclos  civis  e  archeologos  porluguezes,  em  conformidade  da  portaria  do  minis- 
tério das  obras  publicas  de  24  de  outubro  de  1880. 

Este  relatório,  servindo  de  resposta  á  portaria,  dividiu  os  monumentos  nacionaes  (?) 


88 

Em  França,  onde  tudo  se  estuda,  estão  contados  mil  seiscentos 
trinta  c  oito  menhirs,  distribuídos  por  oitenta  departamentos, 
sendo  o  maior  d'entre  todos  o  de  Locmariaquer,  no  Morbihan, 
actualmente  prostrado  e  feito  em  três  pedaços,  o  que  nâo  impede 
de  se  conhecer  que,  inteiro,  media  21  metros  de  comprimento  e 
4  de  espessura,  sendo  o  seu  enorme  peso  avaliado  em  250:000 
kilogrammas. 

Estas  pedras  isoladas  são  attribuidas  ao  período  neolithico  e 
ás  primeiras  idades  dos  metaes,  sendo  possível  que  algumas  haja 
de  tempos  menos  remotos.  A  sua  significação  tem  sempre  pare- 
cido problemática.  Não  se  julga  que  tenham  sido  marcos  territo- 
riaes,  por  apparecerem  a  curtas  distancias  em  regiões  limitadas, 
ou  isoladamente.  A  crença  popular  em  varias  localidades  lhes 
attribue  significações  religiosas,  a  ponto  de  que  algumas  têem  sido 
decoradas  com  uma  cruz  ou  uma  imagem.  Não  são  padrões  fu- 
nerários, porque  as  excavações  feitas  no  seu  recinto  não  têem 
mostrado  vestígios  mortuários,  comquanto  perto  de  certos  tiimuli 
e  mesmo  de  dolmens  se  achem  isoladas  ou  formando  circuito. 
O  sr.  de  Mortillet  julga  os  menhirs  simplesmente  commemorati- 
vos.  No  meu  conceito,  porém,  é  essencialmente  mysteriosa  a  sua 
significação  e  muito  arriscada  a  classificação,  que  se  pretenda 
fazer  relativamente  aos  tempos  a  que  pertencem  os  que  não  se 


em  seis  classes,  e  na  ultima  registrou  os  prehistoricos.  Em  todo  o  reino  ficaram  pois 
indicados  trinta  e  três  logares  com  dolmens  ou  antas,  três  com  menhirs  e  dois  com 
mamunhas.  Nada  mais! 

Estão  portanto  ofíicialmente  inventariados  três  menhirs  e  todos  no  concelho  de 
Villa  Velha  do  Rodam,  um  em  Fantel,  outro  em  Monte  Fidalgo  e  o  terceiro  na  ribeira 
de  Alcafalla. 

Segundo  parece,  o  ministério  das  obras  publicas  quiz,  porém,  obra  mais  fina  e 
apurada,  e  como  tinha  no  orçamento  de  1881-1882  á  sua  disposição  uma  verba  de  réis 
230:000^000  para  gastar  com  edifícios  e  monumentos  públicos,  etc,  consta  ter  expedido 
outra  portaria  com  data  de  29  de  dezembro  de  1881,  encarregando  o  presidente  da  men- 
cionada associação  de  classificar  os  monumentos  nacionaes,  sendo  para  este  fim  auxi- 
liado por  um  pessoal  também  então  nomeado,  mas  que  não  se  pode  com  certeza  indi- 
car, por  não  ter  a  dita  portaria  sido  publicada  no  Diário  do  Governo. 

Está  pois  este  importante  assumpto  de  todo  o  ponto  inaccessivel  aos  que  precisam 
saber  quaes  são  os  monumentos  classificados  (?)  desde  dezembro  de  1881  até  1886,  e  sobre 
que  elementos  teclmicos  se  baseia  a  classificação.  Estas  cousas  não  devem  constituir  se- 
gredo de  secretaria  de  estado;  pertencem  ao  dominio  publico,  porque  estão  custando 
avultadas  verbas,  c  porque  devem  ministrar  esclarecimentos  aos  que  trabalham. 


89 

acham  junto  de  oulros  monumentos,  que  possam  fornecer  crité- 
rios de  epocha.  Em  seu  logar  descreverei  os  menhirs  e  pyramides 
das  circunvizinhanças  de  Silves  e  da  Cumeada  de  S.  Barlholo- 
mcu  de  Messines,  cujo  lavor  ornamental  parece  excluil-os  do  pe- 
ríodo neolilhico. 

Os  alinhamentos  são  construcções  de  megalithos  ou  menhirs, 
de  dimensões  e  formas  diversas,  enfileirados  e  distanciados  mais 
ou  menos  entre  si,  com  uma  extremidade  cravada  na  terra  ou 
apenas  collocados  sobre  o  solo.  Simples  ou  singelo  é  o  que  consta 
de  uma  única  fileira  de  menhirs,  ou  de  grandes  penedos,  e  compos- 
tos os  que  são  formados  de  duas  ou  mais  fileiras  parallelas,  colloca- 
das  a  distancias  de  largura  variável.  O  grande  alinhamento  com- 
posto de  Carnac,  no  departamento  de  Morbihan,  em  França,  ter- 
mina excepcionalmente  por  um  hemicyclo  que  liga  as  suas  extre- 
midades com  a  da  primeira  e  ultima  fileira,  e  correm  em  três 
secções  separadas  por  espaços  em  aberto,  numa  extensão  de  3 
kilometros,  as  suas  onze  fileiras  com  mil  cento  e  vinte  menhirs. 
Ha.  porém,  outros  alinhamentos  de  curta  extensão  em  França, 
distribuídos  por  quinze  departamentos,  em  Inglaterra  e  noutros 
paizes;  uns  que  se  julga  pertencerem  á  ultima  idade  da  pedra  e 
outros  á  idade  do  bronze. 

Ainda  não  se  pode  hoje  affirmar  qual  fora  o  destino  de  taes 
construcções.  Julgou-se  a  principio  que  seriam  cemitérios,  em 
que  cada  pedra  indicasse  um  ou  mais  enterramentos;  mas  diver- 
sas exeavações  junto  dos  menhirs  confirmaram  o  contrario,  não 
mostrando  vestígios  mortuários.  A  idéa  que  mais  geralmente  se 
attribuia  na  Europa  a  esses  monumentos,  propendia  a  julgal-os 
campos  de  reunião  publica,  em  que  se  tratavam  os  assumptos 
mais  graves  e  se  procedia  á  eleição  dos  chefes  e  grandes  man- 
datários da  nação,  ou  em  que  se  praticavam  solemnidades  reli- 
giosas. O  sr.  de  Mortillet  considera-os  como  podendo  ter  sido 
campos  commemorativos,  em  que  cada  pedra  representasse  uma 
acção  notável,  um  individuo,  uma  data.  É  porém  possível,  alar- 
gando ainda  mais  a  liberdade  da  conjectura,  que  fossem,  com 
preferencia  ás  outras  hypothescs,  campos  de  combate,  e  que  cada 


90 

pedra  servisse  de  abrigo  a  um  combatente  contra  o  ataque  dos 
inimigos,  por  isso  que  na  Bretanha  e  n'outras  partes  se  toem 
achado  em  substituição  de  menhirs  extensas  barreiras  á  feição  de 
entrincheiramento.  No  Algarve  não  achei  nem  me  consta  que 
haja  algum  d'estes  monumentos. 

Os  cromlecks  são  construcções  monumentaes  prehistoricas, 
em  que  os  menhirs,  geralmente  de  menores  dimensões,  ou  pedras 
assentes  no  solo,  se  acham  em  figura  circular,  oval  ou  rectangu- 
lar, e  é  esta  a  feição  do  cromleck  simples.  Ha,  porém,  muitas 
variedades  n'estas  construcções,  até  o  ponto  de  serem  assaz  com- 
plicadas. Ha  cromkcks  compostos,  de  duas  e  mais  ordens  paral- 
lelas  de  menhirs,  com  uma  d'estas  pedras  servindo  de  centro  e 
outros  a  curta  distancia  entre  si,  circumdados  por  um  cromleck 
simples,  como  era  ainda  em  1713  o  d'Avebury,  em  Wiltshire. 
Finalmente,  mais  algumas  variantes  na  forma  são  ainda  indicadas 
em  Inglaterra,  na  Scandinavia  e  n'outros  paizes. 

A  significação  d'estes  monumentos  envolve  tantas  duvidas 
e  incertezas,  como  a  dos  menhirs  isolados  e  a  dos  alinha- 
mentos. 

Varias  circumstancias,  porém,-  tecm  deixado  persuadir  que 
podessem  ter  sido  logares  fortificados  e  d.e  abrigo  contra  invasões 
inimigas;  pois  tanío  o  grande  cromleck  de  Avebury  como  o  de 
Stone-Henge,  perto  de  Salisbury,  em  Inglaterra,  estão  construí- 
dos em  planaltos,  que  dominavam  os  campos  adjacentes,  e  cir- 
cumdados de  largo  fosso,  defendido  por  elevadas  barreiras  nos 
seus  bordos. 

Os  historiadores  inglezes  inclinam-se  a  considerar  estes  mo- 
numentos como  logares  destinados  a  administração  da  justiça, 
aos  negócios  importantes  da  nação,  e  talvez  mesmo  ao  culto  re- 
ligioso, referindo  Martin  e  Wormius,  que  ainda  na  segunda  me- 
tade do  século  xiv,  os  nobres  do  norte  elegiam  os  seus  principes 
reunindo-se  em  círculos  de  pedra.  Perto  de  Upsal,  diz-se  existir 
ainda  o  circuito  de  pedras  em  que  Érico  foi  proclamado  rei  da 
Suécia.  King,  na  sua  obra  Monumenta  antiqua,  affirma  que  os 
mesmos  usos  foram  seguidos  durante  muito  tempo  na  Irlanda  e 


91 

na  Escócia.  Seja  porém  qual  for  a  força  (Testas  hypolhcses,  nada 
com  certeza  se  pode  afíirmar. 

No  Algarve,  já  muito  depois  das  explorações  que  dirigi  por 
incumbência  do  governo,  recebi  noticia  de  haver  no  cabeço  de 
uns  serros  da  freguezia  de  Vaqueiros  algumas  pedras  alias,  cra- 
vadas no  solo  e  verticalmente  erguidas.  Não  tenho  informações 
de  confiança  a  este  respeito  e  por  isso,  embora  as  que  recebi  me 
possam  inspirar  a  presumpção  de  haver  alli  um  ou  mais  cromlecks, 
não  ouso  afíirmar  cousa  alguma.  Devo  porém  desde  já  indicar  na 
freguezia  serrana  de  Vaqueiros  o  elemento  neolithico,  em  pre- 
sença de  uma  collecção,  que  em  seu  logar  descreverei,  de  sílices 
lascados  e  de  interessantes  instrumentos  de  pedra  polida  alli 
achados  em  exeavações  ruraes,  pertencentes  ao  sr.  António  de 
Paulo  Serpa,  empregado  na  direcção  das  obras  publicas  do  dis- 
tricto  de  Faro. 

Antas  ou  dolmens. —  Não  está  provado  que  a  região  dolme- 
nica  descesse  até  ás  extremas  raias  do  sul  de  Portugal.  Percorri 
duas  vezes  esta  província  sem  encontrar  um  único  dolmen  desco- 
berto, comquanto  possa  presumir  que  devem  ler  existido  pelo 
menos  nos  quatro  pontos  que  vão  indicados  na  carta  prehistorica 
do  Algarve. 

O  dolmen,  assim  chamado  pelos  modernos  archeologos  inglc- 
zes,  porque  dizem  derivar-se  dos  vocábulos  bretões  dol,  que  si- 
gnifica mesa  e  men,  pedra,  denomina-se  em  Portugal  anta,  ara, 
ou  altar.  Em  Allemanha  chama-se  hiinengraben,  em  razão  das 
tradições  populares  apontarem  estas  construcções  como  túmulos 
de  gigantes.  Em  França,  onde  se  acham  distribuídos  três  mil 
quatrocentos  e  dez  dolmens  por  setenta  e  oito  departamentos,  são 
conhecidos  pelas  denominações  de  allèes  convertes,  oustals,  grot- 
tes}  maison  des  fées,  maison  des  loups  e  por  outras  propriamente 
locaes.  A  idéa,  porém,  de  que  eram  altares  em  que  se  praticavam 
sacrifícios  humanos,  chegou  a  incutir-se  no  conceito  de  muitos 
sábios,  tanto  mais  desde  que  os  antigos  archeologos  britannicos 
os  consideraram  como  altares  druidicos,  ou  aliares  em  que  os 


92 

druidas,  sacerdotes  dos  celtas  (dizem  elles),  celebravam  cruentos 
sacrifícios  próprios  de  uma  ceita  sanguinária. 

Tal  era  a  idéa  que  em  Portugal  também  havia  relativamente 
a  esses  altares  ou  aras  antigas,  mais  geralmente  conhecidas  pelo 
nome  de  antas,  idéa  que  ainda  em  1863  compartilhava  o  erudito 
abbade  Audierne  no  seu  livro  intitulado  De  V origine  et  de  1'enfance 
des  arts  en  Pêrigord,  acceitando  a  tradição  de  que  sobre  os  men- 
cionados altares  celebravam  os  povos  antigos  sacrifícios  humanos 
para  assim  applacarem  os  castigos  do  céu.  Está,  porém,  compro- 
vado serem  os  dolmens  muito  anteriores  aos  chamados  celtas  e 
assaz  numerosos  em  regiões  que  elles  nunca  invadiram. 

A  idéa  de  altar  e  de  mesa,  que  a  tradição  ligou  em  diversos 
paizes  a  estes  monumentos  da  architectura  prehistorica,  origina- 
riamente neolithica,  ou  da  ultima  idade  da  pedra,  parece  antes 
derivar-se  da  sua  própria  configuração,  do  que  de  noticias  de 
sacrifícios  n'elles  praticados,  que  a  antiguidade  houvesse  trans- 
mittido.  Com  effeito,  alguns  dolmens  ha  que  a  simples  vista 
podem  suscitar  essa  ou  uma  outra  idéa  similhante.  Em  Portugal, 
encontram-se  não  poucos  com  três  e  quatro  esteios  ou  pilares 
cravados  no  solo,  com  ligeira  inclinação  para  o  eixo  vertical,  que 
são  cobertos  por  uma  grande  lage  á  feição  de  mesa,  comquanto 
outras  muitas  formas  e  variantes  se  notem  ainda  mesmo  entre 
os  de  uma  determinada  região. 

Discute-se  ainda  hoje,  se  os  numerosos  milhares  de  dolmens 
que  isoladamente,  ou  formando  grupos,  existem  espalhados  nos 
continentes  asiático,  africano  e  europeu,  foram  sempre  descober- 
tos sobre  o  solo  ou  primitivamente  envoltos  n'um  montículo  arti- 
ficial de  terra.  A  ultima  opinião  de  grande  força,  que  a  este  res- 
peito appareceu,  foi  a  do  sr.  Gabriel  de  Mortillet,  no  seu  pre- 
cioso livro  intitulado  Le  préhistorique,  publicado  em  1883.  O  sr. 
de  Morlillet  não  admitte  originariamente  dolmens  descobertos. 
Eis- aqui  as  suas  convicções:  «Os  dolmens  não  estão  intactos 
senão  quando  se  acham  pela  primeira  vez  oceultos  na  terra. 
Logo  que  são  descobertos,  alteram-se  rapidamente.  Sem  difficul- 
dade  se  podem  perceber  os  progressos  da  sua  mina  e  reconhecer 


93 

que  os  suppostos  altares  não  são  mais  do  que  as  mesas  que  se 
firmam  sobre  os  pilares  desnudados.  .  .  pag.  589 ». 

N'outra  pagina  do  seu  livro  (596),  reforça  este  sábio  o  mesmo 
conceito,  dizendo:  «  Todos  os  dolmens  estavam  primitivamente  sob 
a  terra. »  Nos  arredores  de  Paris  eram  enterrados  no  solo,  prin- 
cipalmente nas  rampas  das  collinas.  N'outras  partes  eram  cober- 
tos de  tumulas,  que  diz  serem  amontoamentos  de  terra  e  pedra 
formando  cabeços  ou  montículos.  Se  presentemente  vemos  dol- 
mens descobertos,  é  porque  se  acham  mais  ou  menos  em  ruinas. 
Habitualmente  observando-se  com  attenção,  se  reconhecem  restos 
ou  vestígios  do  antigo  tumulus » . 

Outras  opiniões,  também  fundadas  em  factos  de  observação, 
e  entre  ellas  a  do  barão  de  Bonstetten,  seguem  um  rumo  inteira- 
mente opposto,  querendo  provar  que  todos  os  dolmens  descobertos 
assim  estiveram  sempre  desde  a  sua  construcção. 

A  meu  ver,  julgo  estas  contrarias  proposições  demasiado  po- 
sitivas c  sem  sufficiente  comprovação. 

Concordando  com  a  opinião  geral,  perfeitamente  demonstrada, 
de  que  os  dolmens  sempre  foram  mansões  mortuárias,  mas  tendo 
em  vista  as  condições  mui  diversas  em  que  n'elles  se  acham 
sepultadas  sob  ou  sobre  o  solo  as  relíquias  humanas,  acompa- 
nhadas de  instrumentos  de  pedra  e  de  outros  artefactos  coetâ- 
neos, e  primeiro  que  tudo  as  condições  da  construcção  de  taes 
monumentos,  parece-me  poder  admittir  a  existência  dos  dois  ca- 
sos, presumindo  que  muitos  dolmens,  que  ha  séculos  estão  desco- 
bertos, estiveram  primitivamente  oceultos  e  protegidos  por  mon- 
tículos de  terra  e  pedra,  assim  como  outros  teriam  ficado  inten- 
cionalmente descobertos. 

Ha  dolmens,  cujos  pilares  são  dispostos  com  tal  ajustamento 
entre  si,  que  fecham  completamente  o  seu  circuito  com  o  auxilio 
de  um  megalitho  servindo  de  porta,  e  que  por  isso,  tendo  a  co- 
bertura bem  adaptada  ás  extremidades  dos  pilares,  não  carece- 
riam de  ser  envoltos  por  montículos  de  terra  e  pedra  para  asse- 
gurarem toda  a  possível  resistência  a  qualquer  acção  de  invasão 
no  seu  antro.  Ora,  quando  se  possa  verificar  que  cm  dolmens 


94 

assim  defendidos  pela  robustez  e  disposição  dos  seus  esteios  e 
mesas,  os  enterramentes  foram  feitos  por  excavaçâo  no  solo,  e 
este  ainda  coberto  de  lageado,  pode  entender-se  que  todas  as 
precisas  precauções  de  segurança  contra  o  ataque  do  homem  e 
das  feras,  tinham  preenchido  os  constructores  para  não  se  verem 
obrigados  a  esconder  n'um  montículo  artificial  o  monumento  de- 
fensor das  suas  tão  recatadas  relíquias;  e  portanto  não  repugna 
admittir-se  que  os  dolmens,  n'estas  condições,  podem  ter  ficado 
descobertos  e  servindo  como  padrões  commemorativos,  consagra- 
dos á  memoria  e  abrigo  dos  que  n'elles  foram  sepultados.  Logo, 
pois,  que  o  sr.  de  Mortillet  (Le  préhistorique,  pag.  586)  consi- 
dera os  menhirs  isolados  e  até  aquelles  que  entram  na  composi- 
ção dos  alinhamentos  (pag.  587)  como  commemorativos,  sem 
que  junto  delles  se  tivesse  alguma  vez  achado  uma  qualquer 
prova  archeologica,  com  melhor  presumpção  se  me  afigura  po- 
derem ser  assim  interpretados  os  dolmens  que  não  careciam  de 
ficar  occultos  e  que  provavelmente  foram  levantados  em  honra 
dos  mortos. 

Ainda  quando  a  camará  ou  crypta  do  dolmen  que  reúne  as 
condições  de  segurança  acima  enunciadas  não  manifesta  enter- 
ramentos por  excavaçâo  no  solo,  mas  o  seu  âmbito  parcial  ou 
totalmente  cheio  de  ossos,  quer  provenham  de  enterramentos 
alli  mesmo  feitos  dentro  de  camadas  de  terra  transportada, 
de  que  ha  muitos  exemplos,  ou  de  inhumações  de  ossos  huma- 
nos  provenientes   dos   cistos1,    reconhecida   pelos   constructo- 


1  Císlos  são  sepulturas  rectangulares  de  comprimento  inferior  ao  de  um  cadáver, 
mesmo  de  individuo  de  baixa  estatura.  São  formadas  por  duas  fileiras  de  lages  toscas 
parallelas,  cujas  extremidades  sobresáem  a  dois  travessões,  que  as  separam  no  sentido 
perpendicular,  que  são  paralielos  e  servem  de  cabeceiras.  Em  seus  competentes  logares 
mostrarei  que  estes  cistos,  originariamente  pertencentes  á  ultima  idade  da  pedra,  pas- 
saram a  ser  usados  durante  a  idade  do  bronze  e  ainda  na  primeira  idade  do  ferro,  em 
todo  o  território  do  Algarve. 

A  respeito  dos  cistos  neoliihicos,  exprime-se  o  sr.  G.  de  Mortillet  do  modo  seguinte: 
«Nem  todas  as  sepulturas  da  epocha  robcnhausienne  (período  neolithico,  ou  ultima  idade 
da  pedra)  se  fizeram  no  interior  dos  dolmens.  Os  enterramentos  faziam-se  também  em 
cistos  de  pedra,  pequenos  dolmens,  ou  caixas  formadas  geralmente  de  quatro  lages,  co- 
bertas por  outra.  Estes  cistos,  ou  caixas,  eram  demasiado  apertados  para  poderem  re- 
ceber um  cadáver.  0  corpo  era  dobrado  pela  articulação  dos  joelhos  e  sobre  estes  rc- 


95 

res  a  garantia  da  inviolabilidade,  não  se  ha  de  concluir  que  o 
dolmen  esteve  necessariamente  occulto  em  montículo  artificial,  se 
não  houver  no  seu  terreno  circumdante  algum  bem  determinado 
vestígio  de  monticulação.  N'esta  hypothese,  pois,  pode  ter  sido 
sempre  livre  e  apparcnte. 

Todos  aquelles  dolmens,  porém,  cujos  esteios  estão  separa- 
dos por  intervallos  apenas  fechados  por  muros  de  pedra  sêcca? 
os  que  não  apresentam  na  sua  conslrucção  as  precisas  condições 
de  segurança,  e  os  que  ainda  permittem  denunciar  a  sua  situação 
num  plano  artificialmente  elevado  no  seu  contorno,  boas  pre- 
sumpções  suscitarão  ao  observador  de  que  primitivamente  teriam 
sido  protegidos  por  um  montículo  de  terra  e  pedra. 

Admitto,  portanto,  não  como  deducção  de  principios,  porque 
ainda  não  os  vi  precisamente  estabelecidos,  mas  como  presum- 
pção  derivada  da  critica  das  condições  de  observação  directa,  a 
possivel  existência  primordial  de  dolmens  descobertos  ou  apparen- 
tes,  de  dolmens  cobertos,  ou  occidtos  em  montículos  artificiaes,  e 
de  dolmens  que,  tendo  sido  primitivamente  monticulados,  passa- 
ram a  ficar  descobertos  por  effeito  de  diversas  acções  meteoroló- 
gicas, ou  por  outras  causas  ignoradas. 

Outra  controvérsia,  grandememente  debatida,  tem  havido  em 
relação  ao  trajecto,  que  se  pretendeu  deduzir  da  distribuição 
geographica  dos  dolmens,  que  um  supposto  povo  emigrante  de- 
screveu na  passagem,  a  partir  do  seu  paiz  natal.  Este  assumpto 
é  magistralmente  tratado  pelo  sr.  de  Mortillet,  que  com  atilada 
critica  e  bem  achados  fundamentos  repelle  a  vã  idéa  de  que  um 
só  povo  em  marcha  fosse  o  construetor  de  tantos  milhares  de 
monumentos  de  que  ha  noticia  na  Ásia,  na  Europa  e  na  Africa, 
quando  osteologica  e  anthropologicamente,  primeiro  que  tudo, 
estão  verificados  no  interior  d'esses  monumentos  approximada- 


pousava  a  cabeça  (pag.  597)».  O  sr.  de  Mortillet  viu  muitos  cTestes  cistos  em  meio  da 
região  dos  grandes  dolmens  de  Plouarzel,  no  Morbihan.  0  sr.  Prunières  achou  um  ce- 
mitério d'estes  cistos  no  departamento  de  Lozère,  e  o  sr.  Morel-Fatio  explorou  um  no 
cantão  de  Vaud,  naSuissa.  No  Algarve  são  frequentes.  Citarei  os  das  minhas  explorações. 
Nunca  os  vi  descriptos  em  Portugal. 


96 

mente  do  mesmo  estylo  architectonico,  mas  de  construcçoes  mui 
diversas,  numerosos  indivíduos  de  differentes  raças.  A  theoria 
relativa  ao  imaginário  povo  dos  dolmens  cessou  pois  de  existir, 
devendo  entender-s?,  que  vários  povos,  e  povos  sedentários,  fo- 
ram os  construetores  dos  que  se  acham  esparsos  ou  reunidos  por 
grupos  em  quasi  todo  o  mundo. 

Fosse  qual  fosse  o  trajecto  traçado  pelos  construetores  dos 
dolmens  existentes  em  Portugal,  parece  que  a  linha  geral  d'essas 
colossaes  construcçoes  não  desceu  até  ao  litoral  do  Algarve. 
O  Alemtejo  é  a  primeira  região  dolmenica  do  sul  de  Portugal, 
onde  ainda  ha  numerosos  dolmens  apparentes  ou  descobertos. 

No  Algarve,  com  vestígios  apparentes  não  ha  ver  um  único 
dolnien,  e  comtudo,  como  a  principio  disse,  parece  ter  havido 
alguns.  Vou  portanto  expender  os  fundamentos  d'esta  presumpção. 

Quatro  logares  indiquei  na  carta  prehistorica  com  signaes 
correspondentes  a  antas  ou  dolmens  apparentes,  já  destruídos:  são 
o  cabo  de  S.  Vicente,  a  serra  de  Monchique,  a  Ponta  do  Altar 
(Portimão)  e  o  sitio  das  Antas,  no  concelho  de  Tavira.  Depois  de 
estar  impressa  a  carta,  annunciou-me  o  meu  amigo  e  distincto 
conterrâneo,  o  sr.  Francisco  de  Mello  Corrêa  Leotte,  haver  um 
outro  sitio  denominado  Antas,  perto  de  Albufeira. 

Cabo  de  S.  Vigente.  —  Artemidoro,  escriptor  grego,  contem- 
porâneo de  Strabão  e  de  César,  por  ter  visitado  a  orla  marítima 
sul-occidental  da  Europa,  negou  a  existência  de  um  templo  de- 
dicado a  Hercules,  de  que  Ephoro  dava  noticia  no  Promontório 
Sagrado  (Cabo  de  S.  Vicente).  Como  testemunha  ocular,  referiu 
não  haver  templo  algum  n'aquella  extremidade  da  terra,  mas 
apenas  uns  grupos  esparsos  de  três  ou  quatro  pedras,  de  que 
falia  Strabão  no  livro  m  da  sua  Geographia,  dizendo  (edição  de 
Amsterdam,  1707):  Lapides  mídtis  in  locis  ternos  aat  quatemos 
impositos,  etc. 

Esta  passagem  de  Strabão  foi  assim  traduzida  em  1867  por 
Amédée  Tardieu:  «Les  seuls  monuments  quil  y  vit  (Artemidoro) 
étaitent  des  grupes  épars  de  trois  ou  quatre  pierres,  que  les  vi- 


97 

siteures,  pour  obéir  à  une  coulume  locale,  tournent  dans  im  sens, 
puis  dans  1'autre,  après  avoir  fait  au-dessus  certames  libations; 
quant  à  des  sacrifices  en  règle,  il  n'est  pas  permis  d'en  faire  en 
ce  lieu,  non  plus  quil nest  permis  de  le  visiler  la  nuit,  les  dieux, 
à  ce  qu'on  croit,  s'y  donnant  rcndez-vous.»  O  traductor  relativa- 
mente ao  uso  local  acima  referido,  declara  ter  assim  interpretado 
o  texto  grego  com  M.  Miiller,  porque  a  symetria  da  phrase  torna 
d'este  modo  a  leitura  mais  provável  que  a  dos  manuscriptos,  e 
accrescenta:  «Reste  à  expliquer  maintenant  le  sens  d'un  parcil 
usage»  (pag.  223). 

Tudo  isto  envolve  alguma  obscuridade,  não  se  sabendo,  se  o 
auctor  quiz  dizer,  que  os  visitantes,  depois  de  feitas  as  libações, 
voltavam  as  pedras  duas  vezes,  ora  num  ora  n'outro  sentido,  ou 
se,  tendo  feito  essas  libações,  eram  elles  que  passavam  duas  vezes 
rodeando  as  pedras  em  sentidos  oppostos,  como  parece  mais 
provável;  porque  se  aquelles  grupos  de  pedras  constituíam  monu- 
mentos, capazes  de  attrahirem  visitantes,  a  quem  se  impunham  as 
leis  usadas  no  Promontório  Sagrado,  não  se  pôde  racionalmente 
suppor  que  fossem  de  tão  minguadas  dimensões,  que  qualquer 
visitante  as  podesse  voltar  duas  vezes,  deixando  cada  grupo  re- 
construído, nem  que  sobre  ellas,  sendo  só  três  ou  quatro  em 
cada  grupo,  e  de  pequeno  volume,  praticassem  libações  com  todo 
o  ceremonial  obrigatório. 

Por  isso,  pois,  estas  ou  outras  considerações  suscitaram  ao 
barão  de  Bonstetten  a  idéa  de  considerar  como  dolmens  os  gru- 
pos de  pedras  que  Artemidoro  viu  no  Promontório  Sagrado,  e  de 
que  Strabão  deixou  noticia,  citando  este  seu  contemporâneo  e 
concidadão. 

Antes,  porém,  do  erudito  barão  de  Bonstetten,  no  seu  Essai 
sur  les  dolmens,  publicado  em  1865,  ter  interpretado  a  narrativa 
de  Strabão  como  significando  a  existência  de  dolmens  no  Pro- 
montório Sagrado,  ainda  no  primeiro  século  christão,  já  fr.  Ber- 
nardo de  Brito  i  a  tinha  aproveitado,  infelizmente  para  querer 


Monarchia  Lusitana,  liv.  n,  pai?.  75. 
7 


98 

provar  uma  das  engenhosas  invenções  com  que  encheu  os  pri- 
meiros trinta  capítulos  da  sua  em  grande  parte  idealisada  Mo- 
narchia  Lusitana.  A  este  respeito  refere  pois  o  abalizado  mestre 
da  lingua  portugueza: 

«Mostravão-lhe  também  (os  habitadores  do  cabo  de  S.  Vi- 
cente a  Hanon)  grandes  montes  de  pedra,  juntos  alli  de  tempo 
antiquíssimo  (de  quem  falia  Strabo)  reprovando  a  opinião  de 
Ephoro,  que  negando  haver  alli  templo  (dedicado  a  Hercules), 
contava  só  d'estes  cúmulos  de  pedra:  &  dizia  d'elles,  que  os  ajun- 
tarão os  Deoses  por  sinal  &  limite  de  se  concluyr  alli  o  mundo». 

É  possível  que  Ephoro,  que  viveu  uns  três  e  meio  séculos 
antes  de  Christo,  fallando  em  templos  que  havia  no  Promontório 
Sagrado,  quizesse  referir-se  aos  monumentos  de  pedra  que  Ar- 
temidoro  observou,  porque  já  então  as  antas  ou  dolmens  se  con- 
siderassem como  aras  ou  altares,  e  soubesse  ou  lhe  constasse, 
que  algum  d'elles  tivesse  sido  dedicado  ao  culto  de  Hercules 
pelos  próprios  naturaes  do  logar ;  pois  o  que  Strabão  refutara  a 
Ephoro,  pelo  testemunho  de  Artemidoro,  fora  a  existência  de 
templo  propriamente  dito,  que  alli  houvesse  sido  dedicado  a  al- 
guma divindade. 

Foram  muitas  as  lendas  que  aquelles  monumentos  crearam 
na  imaginação  dos  escriptores  fabulistas,  propondo  alguns  que 
eram  o  signal  cia  sepultura  de  Thubal,  neto  de  Noé,  por  todos 
apontado  como  primeiro  povoador  post-diluviano  do  torrão  pe- 
ninsular, a  que  acudiu  também  com  grande  symptoma  de  piedosa 
convicção  o  cisterciense  fr.  Bernardo  de  Brito,  que  a  todos  quiz 
exceder,  indicando  pelas  suas  tábuas  chronologicas  o  anno  2009 
antes  de  Christo,  como  sendo  o  do  fatal  passamento  de  Thubal, 
cujas  principescas  qualidades  deixou  engrandecidas  por  entre  as 
fluencias  da  sua  eloquente  e  vernácula  dicção,  occorrendo-lhe 
também  que  poderiam  os  taes  montes  de  pedra  ser  d'aquelles  a 
que  chamavam  Fieis  de  Deus  \  que  os  antigos  costumavam  levan- 
tar em  logares  ermos,  em  que  alguma  pessoa  tinha  sido  morta, 


Monarchia  Lusitana,  liv.  i,  pag.  36  c  3~i 


9(J 

e  a  que  os  transeuntes  juntavam  sempre  algumas  pedras  em  si- 
gnal  de  devoção;  mas  não  se  conforma  este  prcsupposto  com  a 
lição  de  Strabão,  que  bem  claramente  designa  só  três  ou  quatro 
pedras  em  cada  grupo. 

Com  todas  estas  noticias  c  tradições,  embora  nenhum  vestí- 
gio apparente  de  dolmens  exista  hoje  na  região  do  cabo  de  S.Vi- 
cente, pode  comtudo  admitlir-sc  que  alguns  d'esses  monumentos 
ainda  alli  houvesse  ha  vinte  e  dois  séculos,  quando  Ephoro  os 
designou  por  templos  c  que  ainda  se  conservassem,  ha  feitos 
1800  annos,  quando  Artcmidoro  observou  esses  grupos  de  três 
a  quatro  pedras,  que  na  linguagem  de  Strabão  eram  monumen- 
tos. Por  isso,  pois,  com  as  devidas  reservas,  vae  indicado  na 
carta  prehistorica  esse  derradeiro  ponto  do  Occidenle  com  o  si- 
gnal  symbolico  correspondente  ás  antas  ou  dolmens  (desíruidos), 
que  mui  presumptivamente  existiram  sobre  o  solo. 

Prova  convincente  de  que  as  populações  prehistoricas  oceu- 
param  essa  região  é  terem  alli  apparecido,  e  em  outros  logares 
próximos,  muitos  instrumentos  de  pedra  polida,  de  formas  neoli- 
thicas.  No  capitulo  competente  descreverei  um  machado  de  pedra 
que  alli  comprei,  pertencente  á  minha  collecção  depositada  no 
museu  archeologico  do  Algarve, 

Foya  de  Monchique.  — Não  era  provável  que  aos  homens,  que 
na  ultima  idade  da  pedra  oceuparam  todo  o  território  do  Al- 
garve, escapassem  as  benignas  condições  com  que  uma  esplen- 
dida natureza  parece  ter  querido  soccorrer  as  necessidades  da 
vida  humana  em  meio  das  portentosas  montanhas,  dos  bellos 
plan  altos,  valles  fertilissimos  e  ravinas  sulcadas  por  limpidos 
mananciaes  de  crystallinas  aguas,  que  dão  feição  de  formosíssima 
grandeza  á  famosa  serra  de  Monchique,  estando  provado,  como 
em  seus  logares  mostrarei,  que  a  população  neolilhica  e  as  das 
idades  prehistoricas  subsequentes  se  deixaram  caracíerisadas 
em  todo  este  solo.  Não  era  verosímil  que  licasse  desaproveitado 
esse  trado  de  alentada  serrania,  que  a  grandes  distancias  e  de 
numerosos  locares  attrahe  a  vista  e  a  curiosidade  natural  de  to- 


100 

dos  os  observadores  com  o  seu  alteroso  aspecto.  Devera  pois  en- 
tender-se,  que  o  homem  antigo  deixaria  alli  vestígios  da  sua 
existência,  e  por  isso  cumpria  procural-os. 

Mais  de  uma  vez  percorri  grande  parte  da  serra,  e  com  effeilo 
algumas  provas  arcbeologicas  encontrei  dos  tempos  prehistoricos, 
ao  passo  que  já  tinha  conhecimento  de  outras  alli  achadas,  que 
a  meu  cargo  cabe  enumerar  e  descrever. 

Não  descobri  monumentos  megalithicos,  nem  d'elles  me  de- 
ram noticia  os  habitantes  da  villa  e  das  aldeias.  Chegando, 
porém,  a  Lisboa,  soube  na  escola  polvtechnica,  que  um  explora- 
dor da  secção  mineralógica,  chamado  Joaquim  Duarte,  que  pouco 
antes  tinha  sido  encarregado  de  obter  o  desenho  de  vários  dol- 
mem  do  Alemtejo,  dera  informação  de  ter  achado  na  Foya  um 
dolmen  apparente  destruído,  assim  como  alguns  instrumentos  de 
pedra.  Pedi-lhe  esclarecimentos  a  este  respeito,  e  com  effeito  vie- 
ram elles  confirmar  o  que  já  sabia.  O  explorador  Joaquim  Duarte 
observou  na  rampa  oriental  da  Foya,  e  não  mui  longe  da  villa 
de  Monchique,  uns  monolithos  ainda  in  situ,  que  reconheceu  se- 
rem restos  de  uma  anta  destruída,  e  próximo  d'esse  logar  achou 
ao  sul  da  villa,  a  uns  1500  metros,  um  machado  de  schisto  am- 
phibolico,  actualmente  existente  no  museu  mineralógico  d'aquella 
escola.  Creio,  pois,  terem  escapado  á  minha  observação  os  vestí- 
gios d'esse  monumento;  mas  devo  ao  mesmo  tempo  acreditar, 
que  não  seria  fácil  illudir-se  um  explorador  tão  hábil  e  costu- 
mado a  ver  e  a  desenhar  muitos  outros  na  região  alemtejana. 

Em  1878  comprei  eu  a  um  lavrador  de  Monchique  dois 
machados  de  pedra  polida  e  alguns  característicos  da  idade  do 
bronze,  por  elle  achados  em  trabalhos  ruraes.  Lá  estão  todos  no 
museu  do  Algarve  com  os  mais  objectos  da  minha  collecção. 
O  dolmen  destruído  pode  pois  ter  pertencido  á  ultima  idade  da 
pedra  ou  á  idade  do  bronze,  assim  como  os  instrumentos  de  pe- 
dra e  os  metallicos.  Com  estes  fundamentos  de  contemporanei- 
dade, indico  na  carta  prehistorica  o  dolmen  destruído,  que  um 
observador  consciente  me  communicou  ter  encontrado  na  Foya 
de  Monchique. 


101 

E  assaz  notável  que  tão  poucos  vestígios  de  occupação  pre- 
historica  se  tenham  até  hoje  descoberto  naquclle  apparatoso 
acervo  de  azuladas  montanhas,  cortadas  por  innumeraveis  ravinas 
e  valleiros,  por  onde  correm  copiosas  e  límpidas  aguas,  alimen- 
tando um  luxuriante  e  florido  jardim,  que  pode  considerar-se 
mixto  de  dois  climas  distinctos,  próprios  de  uma  zona  temperada 
nas  cotas  menos  elevadas  e  de  uma  região  subalpina  já  próximo 
dos  erguidos  coruchéus  d'essas  lombas  alterosas  de  aspecto  gra- 
nitoide,  que  fascinam  os  olhos  do  observador  com  os  seus  crys- 
tallisados  espelhos  de  quartzo,  de  mika  e  de  feldspatho. 

E  comtudo  mui  provável  que  outras  estações  prehistoricas  se 
possam  ainda  verificar  n'esse  vistoso  paraizo  da  terra,  para  me- 
lhor exemplificarem  a  tendência  dos  antigos  povos  para  os  loga- 
res  mais  aprimorados  pelas  graças  e  mimos  da  natureza;  mas 
também  é  possivel  que  a  falta  de  população  prehistorica  agora 
notada  possa  um  dia  explicar-se  pelo  estudo  especial  da  sua  pa- 
leontologia animal  e  vegetal. 

A  natureza  mineralógica,  a  mui  complicada  distribuição  do 
relevo  orographico  e  os  meios  climatéricos  d'aquelle  solo  fertili- 
zado pelos  agentes  meteorológicos  e  pelas  acções  chimicas,  exer- 
cidas sobre  os  seus  componentes  elementares,  prepararam  alli 
especiaes  aptidões  de  fecundidade  e  condições  geradoras  em  su- 
bido grau,  para  crearem  e  desenvolverem  uma  flora  opulenta  e 
frondosa,  assim  como  uma  fauna  correspondente. 

Na  proximidade  das  rochas  eruptivas  não  ha  que  procurar 
vestígios  orgânicos  nas  de  formação  sedimentar  preexistentes, 
que  ellas  romperam  e  atravessaram,  porque  a  acção  plutonica  as 
transformou  em  rochas  metamorphicas  e  alterou  todos  os  vestí- 
gios, que  podiam  anteriormente  conter  até  onde  chegou  o  alcance 
do  seu  raio  e  a  força  da  sua  intensidade.  Apenas  em  depósitos 
sedimentares  descobertos,  posteriores  á  epocha  geológica  em  que 
se  operou  a  emissão  foyaitica,  assim  como  a  dos  basaltos,  diorites 
e  outras  rochas  Ígneas,  poderão  verificar-se  as  essências  orgâ- 
nicas relativamente  mais  antigas  d'aquella  região.  Só  assim  se 
chegaria  a  reconhecer,  se  nos  tranquillos  e  solitários  abrigos  da 


102 

flora  então  existente  viveram  carnivoros,  e  em  quantidade  tal, 
que  repellissem  aventureiros  invasores,  ou  reprimissem  a  sua  au- 
daciosa diffusão. 

Ainda  actualmente  apparecem  naquelles  valles  e  montanhas 
o  Canis  lúpus,  h.,  o  Felis  pardina,  Oken.,  e  o  Sus  scrofa,  L., 
que  podem  citar-se  como  sendo  os  mais  ferozes  mammiferos  da 
fauna  actual.  Vão,  porém,  diminuindo  de  numero,  ao  passo  que 
o  agricultor  desenvolve  a  área  das  suas  devezas,  conquistando 
ás  Eriças,  aos  Cistus  c  ao  próprio  mui  bizarro  e  vistosíssimo 
Rhododendrum  boeticum  a  substanciosa  terra,  em  que  brilham  as 
argillas  metamorphicas  feldspathicas. 

Ora,  se  ao  progresso  de  população  e  de  industria  se  pode 
attribuir  o  facto  do  decrescimento  na  procreação  das  feras,  cujo 
apparecimento  era  muito  mais  frequente  naquellas  paragens 
antes  dos  modernos  soutos  e  verdejantes  pomares  que  embelle- 
zam  e  enriquecem  aquelle  tão  privilegiado  grupo  de  alterosas 
serras  e  de  ameníssimos  valles  tomarem  o  extenso  espaço  que 
hoje  occupam,  bem  pode  suppor-se  que  em  grande  escala  pode- 
riam, n'aquelles  20  kilometros  de  rocha  eruptiva,  ter  sido  povoa- 
das por  innumeros  carnivoros  as  suas  brenhas  quasi  impenetrá- 
veis, numa  epocha  que  tão  escassos  vestígios  humanos  transmittiu 
á  posteridade. 

Pode,  pois,  julgar-se,  á  falta  de  outras  causas  conhecidas, 
que  esta  fosse  uma  das  que  impediu  a  população  neolithica  e  as 
suas  successoras,  de  se  deixarem  mais  amplamente  representa- 
das. E  portanto  mui  provável,  se  um  dia  alli  forem  emprehendi- 
dos  alguns  trabalhos  geológicos,  que  exijam  cortes  dilatados  e 
profundos,  appareçam  as  provas  paleontologicas  d'esta,  por  em- 
quanto,  prematura  supposição. 

Ponta  do  Altar  —  Este  logar,  situado  entre  o  cabo  de  S.  Vi- 
cente e  a  ponta  do  Carvoeiro,  deixa  presumir,  já  por  seu  nome 
immemorial,  já  por  vários  artefactos  alli  encontrados,  diversas  ve- 
zes, que  n'elle  tivesse  havido  um  d'esses  edifícios  da  architectura 
prehistorica  denominados  antas,  aras  ou  altares. 


103 

A  chamada  ponta  do  Altar  é  propriamente  a  extremidade 
sul-occidental  da  escarpada  rocha  que  forma  o  flanco  esquerdo 
da  foz  do  rio  que  de  Villa  Nova  de  Portimão  chega  até  Silves. 
Ao  norte  d'cssa  ponta  está  o  forte  de  S.  João  c  1  kilomelro  mais 
acima  a  bem  situada  aldeia  de  Ferragudo. 

É  mister  repetir,  que  em  Portugal  os  monumentos  chamados 
antas  também  são  geralmente  conhecidos  pelos  nomes  de  aras 
ou  altares,  por  se  ter  durante  muito  tempo  julgado  que  eram  com 
effeito  os  altares  em  que  antigos  selvagens  de  uma  seita  gentílica 
celebravam  seus  ritos. 

É  matéria  corrente  entre  os  mais  abalizados  archeologos,  que 
onde  se  ache  vinculado  desde  tempos  immemoriaes  o  nome  de 
certos  monumentos,  deve  entender-se  que  ahi  existiram,  embora 
não  ficassem  vestígios.  A  este  respeito  diz  o  sr.  de  Mortillet,  re- 
ferindo as  diversas  denominações  locaes  por  que  são  conhecidos 
os  dolmens  em  vários  departamentos  da  França:  «Ces  clénomi- 
nations,  appbquées  à  des  lieux  dits,  peuvent  même  servir  à  dé- 
voiler  Fexistence  d'anciens  dolmens  sur  des  points  oíi  il  n'en  reste 
plus  aucune  trace»,  Le  Préhistorique,  pag.  589. 

Presumo,  pois,  que  n'aquella  ponta  de  elevada  rocha,  propin 
qua  á  foz  do  rio  de  Portimão,  existiu  um  altar  ou  anta,  e  que 
d'csse  monumento  ficou  o  nome  ao  logar. 

Toda  a  formação  d'aquelle  flanco  pertence  á  serie  sedimentar 
cainozoica  e  a  rocha  ao  terciário  marino.  Parece  cortada  a  pique 
a  secção  batida  pelas  ondas  do  oceano.  O  observador  que  se  ap- 
proximar  d'aquella  raia,  notará  enormes  penedos  precipitados  no 
mar,  que  bem  podem  representar  os  monolithos  de  uma  anta 
destruída,  ou  desaggregações  da  mesma  rocha.  * 

Não  ha  somente  estes  fundamentos  conjecturaes  para  se  po- 
der julgar  que  aquelle  logar  fora  com  effeito  utilisado.  ou  fre- 
quentado numa  epocha  em  que  eram  usados  os  instrumentos  de 
pedra  polida.  São  estes  mesmos  instrumentos  alli  achados  e 
nJoutros  muitos  pontos  mais  ou  menos  próximos,  que  dão  maior 
força  a  este  conceito. 

Portanto ,    em   vista    das   circumstancias   expendidas,    en- 


104 

tendi  poder  assignalar  na  caria  prelnstorica  a  rocha  que  forma  a 
ponta  do  Altar  como  presumptiva  sede  de  um  altar  destruído. 

Antas  de  Albufeira.  —  Não  tive  conhecimento  de  haver  nas 
proximidades  de  Albufeira,  onde  em  1878  estabeleci  a  estação 
ceniral  das  explorações  que  fiz  n'aquelle  concelho,  sitio  algum 
com  a  denominação  de  Antas,  porque  não  o  vi  designado  na  re- 
lação manuscripta  dos  sitios  e  logares  pertencentes  ás  freguezias 
do  Algarve,  nem  me  foi  nomeado  pelos  informadores  a  quem 
pedi  esclarecimentos  nas  freguezias  d'aquelle  concelho,  e  final- 
mente por  não  estar  indicado  na  Carta  chorographica,  publicada 
por  João  Baptista  da  Silva  Lopes  em  1812.  Foi,  porém,  já  muito 
depois  de  impressa  a  carta  prelnstorica,  que  o  meu  illustrado 
amigo  e  conterrâneo  Francisco  de  Mello  Corrêa  Leotte,  com  quem 
me  encontrei  em  Faro,  me  deu  noticia  de  haver  perto  d'aquella 
villa  um  sitio  com  o  nome  de  Antas. 

Não  ha  vestígios  materiaes  n'aquelle  sitio,  que  possam  indi- 
car monumentos  megalithicos  destruídos,  comquanto  em  outros 
sitios  próximos  tenham  apparecido  instrumentos  de  pedra,  que 
mostram  ter  aquella  região  sido  habitada  ou  frequentada  por 
homens  que  de  taes  instrumentos  faziam  uso;  resta  apenas  o 
nome  local,  como  significando  a  tradição  de  ter  havido  alli  mo- 
numentos, que  o  povo  n'outras  eras  conhecia  pela  denominação 
de  Antas.  É  o  que  succede  em  numerosos  logares  que  em  Portu- 
gal ainda  hoje  são  indicados  em  diccionarios  e  cartas  geographi- 
cas  com  o  nome  de  Anta  ou  Antas. 

Antas  da  Luz.  —  Chegou  a  eslabelecer-se  como  theoria,  que 
os  dolmens  na  sua  distribuição  acompanhavam  geralmente  o 
curso  dos  grandes  rios.  O  sr.  de  Mortillet  refutou,  porém,  a  falsi- 
dade de  tal  invenção,  mostrando  que  os  departamentos  do  sul 
da  França,  onde  abundam  os  dolmens,  são  os  mais  desprovidos 
de  grandes  rios,  e  que  é  nos  plan'allos  que  mais  frequentemente 
se  encontram,  ao  passo  que  na  Bretanha  maior  numero  de  dol- 
mens se  acha  no  litoral  marítimo  do  que  no  interior  do  paiz. 


105 

E  muito  variável  a  situação,  e  bem  assim  o  são  as  condições 
orographicas,  em  que  as  antas  se  acham  disseminadas.  Já  em 
1830,  quando  foi  publicado  o  primeiro  volume  do  Cours  d' anti- 
quites  monumentales  do  sr.  de  Gaumont,  dizia  este  antigo  mestre 
da  archeologia  monumental  (pag.  77): 

« Os  dolmens  encontram-se  ordinariamente  isolados,  ou  for- 
mando grupos  de  dois,  três  e  quatro,  com  mais  frequência  nas 
charnecas  e  bosques  sobre  elevações  naturaes;  mas  também  os 
ha  em  logares  baixos  e  brejosos  e  alguns  edificados  sobre  cabe- 
ços artificiaes. » 

Expenderei  agora  as  condições  da  ultima  localidade  do  tra- 
jecto que  segui,  partindo  do  poente  para  o  nascente,  em  que 
presumo  ter  havido  em  antigos  tempos  um  ou  mais  monumentos 
do  género  antas. 

Sobre  o  flanco  esquerdo  do  Gilão,  que  da  barra  de  Tavira 
corre  no  parallelo  do  extenso  delta  que  da  costa  maritima  separa 
o  rio,  a  uns  9  kilometros  da  foz,  e  no  rumo  de  oes-sueste,  acha-se, 
com  a  denominação  de  Antas,  um  terreno  marginal  ao  rio,  que 
se  alarga  até  quasi  á  estrada  real  n.°  78,  pertencente  á  freguezia 
da  Senhora  da  Luz.  Todo  esse  terreno  está  comprehendido  na 
dilatada  área  que  occuparam  os  povos  balsenses  e  é  geralmente 
denominado  quinta  das  Antas l.  O  nome  de  Antas  é  alli  vincu- 
lado desde  tempos  muito  antigos. 

Na  primeira  metade  do  século  xm,  já  o  sitio  das  Antas  era 
memorado  com  este  nome.  Duarte  Nunes  de  Leão2,  referindo  o 
notável  caso  que  precedera  a  tomada  de  Tavira  aos  mouros  em 
1242,  conta  que,  estando  alojada  em  Cacella  a  guerreira  caval- 


1  A  quinta  das  Antas  foi  deixada  cm  testamento  por  meu  segundo  tio  Valentim  Thi- 
motheo  de  Mendonça  da  Veiga  Velho,  também  senhor  da  Torre  de  Ares,  e  familiar  de 
numero  do  santo  officio  de  Évora,  a  seu  sobrinho  e  meu  primeiro  tio  Francisco  de  Paula 
Fernandes  Estacio  da  Veiga,  fidalgo  da  casa  real,  que  nasceu  em  6  de  fevereiro  de  1801 
e  falleceu  a  6  de  março  de  1815.  Coube  a  sua  mãe,  e  minha  avó,  D.  Maria  Barbara  Cy- 
riaca  Cenedicta  Angélica  de  Mendonça  da  Veiga  e  Velho,  a  herança  d'essa  quinta.  Hoje 
pertence  ao  distincto  cavalheiro  João  Luiz  de  Mendonça  e  Mello,  parente  dos  meus  pa- 
rentes, e  filho  do  antigo  general  Luiz  de  Mendonça  e  Mello.  No  principio  d'este  século 
já  era  pois  aquella  propriedade  denominada  quinta  das  Antas. 

2  Clironica  de  D.  Affonso  111,  pag.  286—1774. 


106 

laria  de  Santiago,  o  commendador  mor  da  ordem  «disse  a  uns 
cavalleiros,  que  pois  estavam  em  tréguas  com  os  mouros,  fossem 
ao  logar  das  Antas,  a  caçar  com  suas  aves,  que  era  no  termo  de 
Tavila  e  distava  do  logar  onde  estavam  3  léguas». 

Do  primeiro  dos  tomos  velhos  (pag.  207  a  213),  e  do  pri- 
meiro dos  tomos  reformados  (pag.  3  a  9)  do  archivo  municipal 
de  Tavira,  copiou  fr.  Joaquim  de  Santo  Agostinho  e  publicou  com 
uma  introducção,  no  tomo  i  das  'Memorias  de  litíeratura  portu- 
gueza,  um  manuscripto  inédito,  intitulado  « Coroniqua  de  como 
Dom  Payo  Corrêa,  mestre  de  Santiago  de  Castella,  tomou  este 
reino  do  Algarve  aos  mouros  »,  que  se  julga  escripto  anterior- 
mente ao  reinado  de  D.  Manuel,  na  qual  o  seu  anonymo  auctor 
repetidas  vezes  falia  no  sitio  das  Antas:  «...  então  se  partio  o 
commendador  com  outros  symquo  cavalleiros  e  vierão  direitos 
pello  caminho  da  villa  e  chegarão  as  antas  huma  légua  de  ta- 
vira.  . . »;  e  mais  adiante  segue:  <•  e  tam  ciozo  hia  por  lhes  soc- 
correr  que  não  ouve  sentido  de.  tomar  a  villa  que  bem  podéra 
tomarse  se  quisesse  e  quando  chegou  as  antas,  etc».  Já  se  vê 
que  Tavira  ainda  não  tinha  o  foro  de  cidade  com  que  D.  Manuel 
a  ennobreceu. 

No  tomo  n  da  Europa  portugueza  conta  Manuel  de  Faria  e 
Sousa  o  mesmo  successo,  dizendo:  «En  los  dias  d'ellas  (das  tré- 
guas pedidas  pelos  serracenos)  se  fue  el  Comendador  D.  Pedro 
Perez  con  cinco  Cavalleros  a  lograr  el  alivio  de  la  caça  por  el 
monte  de  la  Aldeã  de  Antas,  para  donde  passo  por  Tavira  Ciudad 
de  Moros». 

O  mesmo  refere  fr.  Vicente  Salgado  nas  Memorias  ecclesias- 
ticas  do  Algarve  (pag.  293);  e  todos  os  mais  auctores,  que  fal- 
iam da  conquista  de  Tavira,  citam  o  logar  das  Antas.  Não  pode 
pois  pôr-se  em  duvida,  que  era  este  o  nome  antigo,  com  os  seus 
synonymos  de  aras  e  altares,  que  se  dava  aos  monumentos  que 
geralmente  hoje  se  denominam  dohnens  e  aos  logares  em  que 
estavam. 

Não  devera  esperar-se  que  ainda  existissem  alguns  vestígios 
d'essas  construcções  numa  área  que  se  acha  corlada  em  diversos 


107 

sentidos  pelos  alicerces  da  famosa  Balsa,  que  os  romanos  já 
acharam,  a  que  deram  o  foro  de  município  e  que  engrandeceram 
com  famosos  edifícios  e  monumentos. 

D'estes  testemunhos  históricos  assaz  se  deduz  a  antiguidade 
de  que  data  a  denominação  de  Antas  no  referido  logar.  É  possí- 
vel pois,  que  a  superstição  romana  conservasse  alli  algum  ou 
mesmo  mais  de  um  d'esses  monumentos,  ou  transmittisse  a  no- 
ticia de  terem  alli  existido  ás  civilisações  que  posteriormente  do- 
minaram esta  parte  da  península,  por  isso  que  os  documentos 
históricos  nacionaes  confirmam  a  tradição  d'esse  nome  local. 

Muitos  instrumentos  de  pedra  têem  alli  sido  encontrados  em 
excavações  fundas,  inferiores  ao  plano  em  que  abundam  os  cri- 
térios romanos.  Descreverei  alguns  no  seu  respectivo  logar.  Pode 
portanto  entender-se,  que  numa  epocha  muito  anterior  á  romana, 
estacionou  naquellas  paragens  um  povo  que  se  servia  de  instru- 
mentos de  pedra  polida,  n'uma  epocha  certamente  anterior  á  pri- 
meira idade  do  ferro,  que  é  precisamente  a  epocha  dos  dolmens 
desde  o  período  neolithico. 

O  logar  das  Antas  da  Luz  vae  pois  indicado  na  carta  prehis- 
torica  com  o  competente  signal  de  anta  destruída. 

Do  mesmo  modo  que  na  Bretanha,  os  logares  que  presumpti- 
vamente  denunciam  ter  sido  sedes  de  antas  ou  dolmens  acham-se 
(com  uma  única  excepção  em  Monchique)  no  litoral  marítimo. 


SUMMARIO 

Critérios  neolithicos  esparsos,  deixando  presumir  a  existência  de  monumentos  do  mesmo 
período.  —  Intuitos  suscitados  por  esta  presumpção,  relativamente  aos  typos  ethni- 
cos  que  deviam  achar-se  nas  estações  paleoethnologicas  até  então  não  descober- 
tas. —  Notável  facto  contradictorio  com  referencia  á  emigração  de  uma  raça  brachy- 
cephala,  que  se  diz  haver  invadido  a  Europa.  —  Mostra-se  que  a  raça  dolichocephala 
mantinha  na  zona  do  Algarve  o  seu  quasi  absoluto  predominio.  —  Reconhece-se 
que  os  depósitos  até- ha  pouco  considerados  quaternários,  em  que  se  julgou  serem 
paleolithicos  e  dolichocephalos  os  craneos  que  continham,  são  simplesmente  per- 
tencentes aos  tempos  geologicamente  denominados  acluaes  e  neolithicos.  —  Sob  o 
predominio  da  velha  raça  surge  o  sentimento  religioso.  — 0  homem  julga-se  su- 
perior á  matéria  e  reconhece  em  si  próprio  um  espirito  que  o  domina;  esse  espi- 
rito crê  ser  immortal;  concebe  a  morte  como  temporária  ausência  do  espirito;  e 
vae  mais  longe  ainda,  instaurando  o  dogma  da  resurreição.  — 0  respeito  e  a  ve- 
neração que  dedicou  aos  mortos  abonam  a  existência  d'essas  crenças.  —  Indicam-se 
os  jazigos  preparados  em  honra  dos  mortos  e  bem  assim  as  habitações  dos  vivos. — 
As  ambições  promovem  ao  mesmo  tempo  o  antagonismo.  —Do  antagonismo  nasce 
a  guerra.  —  As  armas  de  caça  são  ao  mesmo  tempo  a  divisa  do  guerreiro.— A  ponta 
de  frecha,  o  machado  de  pedra  e  a  adaga  de  silex  substituem  todos  os  argumen- 
tos.—0  mais  forte  é  o  vencedor. —  Muitos  ossos  depositados  em  estações  neolithi- 
cas  attestam  terem  sido  penetrados  por  esses  instrumentos  de  guerra.  —  Da  neces- 
sidade de  segurança  contra  os  inimigos  veiu  mui  provavelmente  a  invenção  dos 
logares  fortificados,  e  a  das  palafittas  nas  regiões  em  que  havia  lagos.  —  Dá-se 
noticia  da  lagoa  do  Boinho  entre  Tavira  e  Villa  Real,  sem  se  poder  affirmar  se  foi 
ou  não  habitada.  —  Mostra-se  que  as  palafittas  já  existiam  antes  da  idade  do 
bronze.  — Aptidões  manifestadas  pelo  homem  neolithico  —  Origem  da  agricultura 
na  Europa.  —  Cereaes  que  eram  cultivados.  —  Aproveitamento  dos  fruetos  espontâ- 
neos.—Pedras  para  a  moagem  dos  cereaes;  fabricação  e  cozedura  do  pão.  — Des- 
envolvimento dos  meios  de  alimentação  protestando  contra  a  calumnia,  que  attribue 
o  vicio  da  anthropophagia  áquelles  verdadeiros  sectários  do  trabalho  e  do  pro- 
gresso.—Géneros  de  alimentação.— Bebidas  alcoólicas.— Industria  manufactora,— 
A  pedra  é  a  principal  matéria  prima. —  0  homem  faz-se  mineiro,  procurando  os 
jazigos  do  siiex.  —  Officinas  de  trabalho.  — Ausência  de  alguns  caractcristicos  acha- 
dos n'outras  regiões. 

Pretendi  descobrir  e  descrever  as  mais  remotas  antiguidades 
do  Algarve,  quando  em  1877  vim  mui  saudosamente  a  esta  bella 
terra  da  minha  naturalidade  officialmente  incumbido  de  symbo- 
lisal-as  numa  carta  archeologica. 


MO 

Alistando  methodicamcnte  o  que  já  conhecia,  coordenei  o 
plano  geral  do  trabalho  que  a  meu  cargo  trouxera,  c  partindo 
do  principio  de  que  quasi  toda  a  província  se  mostrava  assigna- 
lada  por  numerosos  instrumentos  de  pedra  polida  de  feição  pro- 
priamente neolithica,  bem  evidente  era  que  este  território  fora 
amplamente  habitado  na  ultima  idade  da  pedra,  embora  ainda 
então  não  se  houvesse  descoberto  um  único  monumento  d'esses 
tempos,  de  que  as  gerações  viventes  estão  separadas  por  muitas 
dezenas  de  séculos. 

Mirava,  porém,  mais  longe  o  meu  propósito,  porque  vendo  a 
nacionalidade  neolithica  caracterisada  em  mais  de  cento  e  vinte 
logares,  o  facto  de  apparecerem  juntamente  com  os  seus  nume- 
rosos vestígios  alguns  instrumentos  de  formas  rudimentares,  me 
deixou  presumir  não  ter  ella  sido  a  primeira  habitadora  d'esta 
plaga,  poisque  taes  instrumentos,  se  não  eram  obra  genuína  de 
uma  idade  anterior,  bem  podiam  significar  venerandas  relíquias 
de  gerações  já  extinctas. 

Outro  fundamento  accrescia  em  auxilio  do  meu  conceito.  Di- 
zendo os  sábios,  que  logram  mais  elevado  titulo  de  auctoridade, 
que  a  Europa  na  ultima  idade  da  pedra  fora  povoada  por  uma 
raça  emigrante  brachycephala,  dava-se  o  caso,  assaz  contradicto- 
rio,  de  ser  a  raça  dolichocephala,  que  parecia  predominar  n'esta 
região,  tendo  em  vista  as  informações,  muito  averiguadas,  que 
obtivera  com  referencia  aos  craneos  da  estação  de  Aljezur  e  de 
outras,  em  que  a  pedra  polida,  a  cerâmica  mais  rudimentar  e  a 
completa  ausência  de  artefactos  metallicos,  constituíam  seguros 
critérios  de  pertencerem  ao  período  neolithico,  por  isso  que  na 
idade  paleolithica  não  havia  enterramentos,  não  havia  instrumen- 
tos polidos  de  pedra  e  não  havia  louças. 

Feitos  estes  reparos,  varias  illações  parece  poderem  ser  de- 
duzidas dos  factos  enunciados. 

Se,  com  effeito,  uma  raça  brachycephala  tinha  invadido  a 
Europa  na  ultima  idade  da  pedra,  isto  é,  muito  posteriormente 
aos  tempos  geológicos  ou  quaternários,  em  que  o  typo  geral  era 
dolichocephalo,  o  misticismo  das  duas  raças  não  tem  sido  até 


III 

hoje  verificado  n'esta  zona  sul-occidenlal;  pois  lodos  os  crancos 
das  estacões  extremas  d'esta  província,  a  de  Aljezur  e  a  da  Torre 
dos  Frades,  são  puros  representantes  do  typo  aborigine. 

Sendo  dolichocephala  a  raça  verificada  em  Aljezur  c  na  Torre 
dos  Frades,  a  sua  origem  n'cste  tracto  de  terra  é  consequente- 
mente anterior  á  cpocba  da  invasão  brachyccphala.  Portanto,  po- 
voando cila  toda  esta  região  nos  tempos  quaternários,  longe  de 
se  extinguir,  affirma  ainda  a  sua  existência  na  ultima  idade  da 
pedra,  como  suecede  noutras  mui  las  estações  europêas,  cm  que 
também  ficou  caracterisada. 

Não  faltam  provas. 

O  celebre  craneo  de  Engis,  c  todos  os  mais  ossos,  que  em 
1833  Schmerling  extrahiu  d'esta  gruía  e  da  de  Engihoul,  nas 
margens  do  Meuse,  perto  de  Liège,  comquanto,  em  vista  dos 
conteúdos  paleontologicos  dos  seus  depósitos,  fossem  durante 
muito  tempo  considerados  como  característicos  elhnicos  do  qua- 
ternário inferior  (!),  e  representantes  da  raça  de  Neanclerthal, 
porque  o  craneo  de  Engis,  medindo  71  no  seu  Índice  ceplialko, 
é  mais  dolicbocepbalo  do  que  o  outro,  que  mede  72,  está  verifi- 
cado que  ao  período  neolitbico  pertencem  todas  essas  relíquias 
bumanas.  N'aquelle  período,  pois,  subsistia  no  território  belga  a 
mais  antiga  raça  humana,  caracterisada  em  Neanderthal,  Cans- 
tadt,  Eguisbeim  e  Brux. 

A  velha  raça,  que  em  grande  parle  deve  ter  sido  victimada 
pelas  enormes  convulsões  cósmicas,  que  tantas  vezes  modificaram 
a  orographia  da  Europa  nos  tempos  quaternários,  não  se  perdeu 
totalmente;  obedeceu  á  lei,  derivada  da  observação  de  muitos 
factos,  que  o  sr.  Ferrière  l  estatuiu  e  formulou,  dizendo  que  numa 
região  isolada,  as  espécies  actuaes  devem  descender  das  espécies  fos- 
seis, e  acerescentando  que,  se  as  espécies  são  provenientes  de  varia- 
ções accumuladas  por  selecção,  a  consequência  é  que  os  fosseis  devem 
ser  os  antepassados  das  raças  existentes.  Esta  lei  de  continuidade, 
que  somente  tem  por  excepção  as  espécies  extinctas,  completa-se 


Le  Uarwinisme,  pag.  42. 


11-2 

com  a  theoria  do  que  as  camadas  geológicas  intermédia*  devem 
conter  as  espécies  ou  as  variações  que  ligam  os  typos  extremos,  o 
fóssil  e  o  seu  derivado  por  gradação.  E  o  caso  em  que  se  apre- 
sentou na  communa  de  Tayac  o  deposito  mortuário  neolithico  de 
Cro-Magnon,  onde  havia  um  velho,  um  adulto  e  uma  mulher, 
medindo  o  Índice  cephalico  do  primeiro  73, 7G,  o  do  segundo 
74,75  e  o  do  terceiro  71,72. 

0  sábio  Lartet  enganou-se,  porém,  quando  julgou  quaterná- 
rias as  sepulturas  de  Cro-Magnon  e  d'Aurignac;  pois  ambos  os 
depósitos  continham  louças,  cuja  origem  pertence  á  ultima  idade 
da  pedra,  ao  passo  que  o  enterramento  dos  cadáveres,  sabido  é 
hoje  que  não  era  usado  nos  tempos  geológicos. 

Os  indivíduos  de  Cro-Magnon,  representando  a  raça  mais 
antiga,  para  poderem  chegar  ao  período  neolithico,  tiveram  ne- 
cessariamente uma  ascendência  de  successão  não  interrompida. 
Dois  d'esses  ascendentes  já  os  sábios  acharam  em  boas  condições 
paleolithicas,  um  figurado  pela  mandíbula  da  gruta  d'Arcy,  e  o 
outro  pelo  esqueleto  esmagado  de  Laugerie-Basse;  mas  onde 
estão  os  do  fim  dos  tempos  quaternários  até  o  começo  dos  tempos 
actuaes,  devendo  entender-se  que  a  epocha  de  transição  d'aquelles 
para  estes  deve  ter  sido  de  uma  duração  incommensuravel? 

Entre  os  últimos  tempos  geológicos  e  a  idade  da  pedra  po- 
lida, operou-se  uma  enorme  transformação  no  clima,  na  fauna  e 
na  industria.  Pretende-se  até  que  o  próprio  typo  humano  soffreu 
aperfeiçoamentos  (!),  como  se  fora  obra  commettida  ao  sentimento 
esthelico  de  muitos  estatuários. 

As  variedades  de  typo,  um  diverso  modo  de  viver,  e  os  des- 
envolvimentos industriaes  poderiam  explicar-se,  admitlindo-se 
uma  invasão  social,  derivada  de  um  centro  mais  civilisado  do  que 
a  raça  inferior  que  povoava  a  Europa,  se  tudo  isso  tivera  appa- 
recido  repentinamente;  mas  o  que  nenhuma  invasão  podia  com- 
sigo  trazer  era  a  faculdade  de  transformar  a  temperatura  fria 
dos  últimos  tempos  geológicos  num  clima  temperado,  como  pa- 
rece ter  havido  no  período  neolithico;  não  podia  fazer  retirar 
para  a  cumieira  das  montanhas  os  mammiferos  que  até  então 


113 

viviam  nas  planícies;  não  podia  em  Ioda  a  parle  extinguir  o  mam- 
mouth,  as  hyenas  e  os  outros  grandes  carnívoros  das  cavernas, 
nem  promover  a  emigração  da  renna  e  de  oulros  viventes  da  fauna 
paleolithica  para  as  regiões  septentrionaes. 

Houve,  certamente,  grandes  modificações  climatéricas,  não 
repentinas,  mas  lentamente  progressivas,  ao  passo  que  o  decres- 
cimento  das  geleiras  foi  libertando  amplos  espaços  e  preparando 
condições  muito  mais  propicias  para  a  vida  humana  do  que  an- 
teriormente havia  emquanto  a  temperatura  do  ambiente  foi  exces- 
sivamente fria  para  manter  nas  planícies  os  mammiferos,  que  só 
podiam  viver  nas  regiões  alpinas. 

Entre  os  últimos  tempos  geológicos  e  o  período  neolithico 
decorreram  talvez  myriadas  de  annos.  Porque  não  poderiam  en- 
tão, n'esse  immenso  lapso  de  tempo,  ter  surgido  os  crepúsculos 
de  uma  aurora  mais  desanuviada  e  congruente  ao  progresso  da 
intellecção  humana? 

Então  o  homem,  preclaro  primor  de  todas  as  creações,  com 
que  a  Providencia  tinha  affirmado  as  mais  sublimes  faculdades 
da  sua  omnipotente  sabedoria,  lançando-o  nos  regaços  da  natu- 
reza para  um  dia  poder  ser  o  seu  único  interprete,  não  se  sen- 
tindo já  abalado  pelos  cataclysmos  que  aturdiram,  entorpeceram 
e  apavoraram  o  espirito  dos  seus  antepassados,  mas  em  meio  de 
todas  as  graças  que  constituíam  a  obra  grandiosa,  immensa,  re- 
gular e  harmónica  de  um  ser  superior  a  todos  os  seres;  o  homem, 
por  instincto  próprio  do  seu  natural  entendimento,  ou  por  uma 
inspirada  intuição  do  seu  espirito,  contemplando  em  torno  de  si 
tão  variadas  maravilhas  e  ao  mesmo  tempo  os  deslumbrantes  es- 
plendores de  todo  o  firmamento,  a  quem  havia  de  attribuir  tantos 
prodígios  de  perfeição,  se  todos  os  outros  viventes  e  elle  próprio 
não  eram  mais  do  que  uma  parte  integrante  da  mesma  obra  uni- 
versal? E  como  poderia  elle  conceber  a  existência  do  Universo 
sem  um  creador  primordial,  sem  um  supremo  dictador  das  leis 
immutaveis,  que  regem  todos  os  movimentos  e  funeções  de  cada 
cousa  em  constante  harmonia  com  todas  as  cousas? 

O  homem  neolithico,  respirando  pois  n'um  ambiente  mais  sa- 


114 

lutar  do  que  tiveram  os  seus  antecessores,  pôde  começar  a  des- 
envolver o  seu  condão  intelleclivo  de  um  modo  verdadeiramente 
assombroso.  A  crença  religiosa  e  com  cila  uma  certa  ordem  de 
sentimentos  próprios  da  natureza  humana,  desabrocham  na  sua 
alma.  O  affecto,  o  respeito  e  a  veneração  entre  os  homens  da 
ultima  idade  da  pedra,  definem  o  seu  estado  de  elevação  moral. 
Até  então  os  seus  predecessores  não  davam  sepultura  aos  mor- 
tos. Os  cadáveres  eram  abandonados,  podendo  entender-se,  que 
em  grande  parte  seriam  pasto  das  feras.  O  estado  de  desordem 
em  que  se  acham  nas  cavernas  paleolithicas  os  ossos  humanos 
misturados  com  os  de  vários  animaes,  permitte  este  conceito, 
comquanto  se  possa  admittir,  que  o  homem  não  poucas  vezes 
poderia  ter  sido  preza  dos  carnívoros  que  viviam  naquelles  re- 
cônditos abrigos.  Ao  contrario,  na  ultima  idade  da  pedra,  extin- 
ctos  os  mais  terríveis  devoradores  que  frequentavam  as  cavernas, 
o  Ursus,  a  Hyena  spelcea  e  o  Felis  spelcea,  muitos  d'aquelles  an- 
tros pavorosos  passaram  a  ser  logares  de  habitação  de  menor 
perigo,  comquanto  subsistissem  todas  as  feras  da  fauna  actual, 
ao  passo  que  alguns  foram  também  destinados  á  jazida  da  gente 
que  se  finava. 

E  não  só  as  cavernas  de  formação  natural  tiveram  aproveita- 
mento funerário.  Muitas  grutas  foram  então  exeavadas  nas  rochas 
de  mais  branda  contextura  para  exclusivo  deposito  dos  mortos; 
abriram-se  covões  no  solo  para  o  mesmo  fim;  fizeram-se  cistos  ou 
sepulturas  quadrangulares  de  curtas  dimensões,  formadas  de  la- 
ges  toscas  e  cobertas  com  outras  lages;  construiram-se  dolmcns, 
enormes  monumentos  megalithicos,  entre  os  quaes  alguns  attin- 
giram  extraordinárias  dimensões,  sendo  geralmente  cobertos  de 
tumuli  ou  montículos  artificiaes,  e  finalmente  houve  ainda  um 
deposito  mortuário  misto,  que,  á  falta  de  nome  próprio,  poderá 
denominar-se  gruta-dolmenica,  cujo  antro  apparece  exeavado  na 
rocha  á  feição  de  caverna,  sendo  a  frente  defendido  por  menhirs 
e  mesas,  affectando  a  configuração  de  um  dolmen  meio  desco- 
berto. 

Em  todos  aquelles  logares  o  homem  era  sepultado  com  os 


m 

objectos  que  linha  possuído  durante  a  vida.  armas  de  guerra  e 
de  caça,  instrumentos  de  trabalho,  adornos,  amuletos,  etc. 

Havia  já  então  a  sublime  crença  da  im  mortalidade  da  alma 
e  juntamente  a  da  resurreição.  A  morte  era  portanto  considerada 
como  um  estado  transitório,  e  por  isso,  quando  cada  pessoa  re- 
suscitasse,  deveria  logo  achar  cm  torno  de  si  todas  suas  alfaias 
para  continuar  a  utilisal-as.  Sc  esta  era  precisamente  a  idéa  que 
presidia  á  pratica  invariável  de  se  juntarem  aos  cadáveres,  ou 
aos  ossos  exhumados  de  uns  para  outros  depósitos,  os  objectos 
que  tinham  pertencido  a  cada  individuo,  um  bem  definido  direito 
de  propriedade  ficara  por  este  modo  instituído  na  sociedade  neo- 
lithica,  não  permittindo  que  o  defunto  fôsse  expoliaclo  dos  seus 
haveres.  O  próprio  amuleto,  que  mesmo  reduzido  a  pedaços 
nunca  minguava  de  virtudes,  acompanhava  o  morto,  como  para 
melhor  preparar  o  seu  regresso  á  vida. 

A  crença  na  existência  da  divindade,  o  dogma  da  resurreição, 
a  superstição,  a  veneração  pelas  relíquias  humanas  e  o  respeito 
pela  propriedade  dos  que  se  finavam,  são  factos  que  parecem 
exemplificados  por  aquella  civilisação. 

Apesar  de  se  dizer  que  o  homem  neolithico  tratava  melhor 
dos  mortos  que  dos  vivos,  porque,  com  cffeito,  dedicou  monu- 
mentos de  grandiosa  fabrica  ao  abrigo  e  memoria  dos  que  falle- 
ciam,  ainda  assim  não  deixou  os  míseros  viventes  totalmente 
expostos  ao  açoite  cruel  das  tempestades  e  ao  pavoroso  farejo 
das  alimárias,  que  em  vagabundas  alcateias  procurariam  os  loga- 
res  habitados  para  ahi  assentarem  banquete  de  voragem. 

Os  engenheiros  construetores  das  antas  nos  paizes  em  que  havia 
lagos,  passam  a  ser  engenheiros  hydraulicos  e  começam  a  fundar 
cidades  lacustres  ou  palafittas,  isto  é,  a  cravarem  grossa  estacaria 
de  madeira  no  fundo  dos  lagos,  e  sobre  essa  rede  de  valentes 
alicerces  a  edificarem  cabanas  cobertas  de  colmo  ou  de  palhas 
dos  cereaes,  que  já  sabiam  semear  e  colher.  Só  a  Suissa  concen- 
trou perto  de  duzentas  palafittas,  sendo  ao  mesmo  tempo  nume- 
rosas no  norte  da  Itália,  na  Suécia,  no  Wurtemberg,  na  Áustria, 
na  Baviera  c  em  todo  o  mundo. 


110 

Que  idéa,  que  receio,  ou  que  conveniência  levou  o  homem 
neolithico  a  ir  construir  cidades  ou  centros  de  população  sobre 
estacaria  em  meio  dos  lagos?  A  fauna  já  então  estava  isenta  dos 
grandes  carnívoros,  que  se  extinguiram  com  os  tempos  geológi- 
cos. Restava  o  lobo,  o  mesmo  Canis  lupas,  que  ainda  boje  vive, 
e  é  mui  provável  que,  abundando  em  numero,  algumas  vezes  ou- 
sasse atacar  as  povoações,  attrahido  sobretudo  pelos  rebanhos 
dos  animaes,  que  o  homem  começava  a  domesticar,  taes  como  o 
carneiro,  uma  das  suas  prezas  mais  appetecidas,  a  cabra,  o  boi, 
o  cavallo,  o  porco.  Mas  como  se  pode  julgar  que  temessem  a  in- 
vestida das  alcateias  os  homens  que  transportavam  e  punham  a 
pino  monolithos  de  21  metros  de  comprimento  sobre  4  de  es- 
pessura e  de  peso  250:000  kilogrammas,  como  era  o  menhir  de 
Locmariaquer,  os  que  cobriam  quasi  inteira  a  crusta  do  globo 
com  innumeraveis  monumentos  megalithicos,  e  os  que  derruba- 
vam arvores  gigantescas  e  iam  enfial-as  no  lodo  das  grandes  ba- 
cias lacustres  para  sobre  os  topos  de  taes  estacas  firmarem  as 
suas  vivendas?  A  possança  d'esses  homens  não  pode  pôr-se  em 
duvida,  tanto  em  presença  das  obras  com  que  o  seu  braço  robus- 
tíssimo se  deixou  caracterisado,  como  em  vista  da  forte  muscula- 
ção que  os  seus  ossos  denunciam.  Havia  portanto  uma  entidade 
peior  e  mais  temível  que  o  lobo,  de  que  o  homem  precisava  pre- 
catar-se  e  defender-se  e  era,  como  ficou  sendo  até  hoje,  o  seu 
próprio  similhante.  A  ambição  parece  haver  surgido  no  coração 
humano  e  gerado  o  antagonismo  entre  os  homens.  Alimentadas 
estas  paixões,  a  guerra  era  consequência  inevitável. 

Os  instrumentos  de  caça  passam  ao  mesmo  tempo  a  ser  ar- 
mas de  combale.  As  pontas  de  frecha,  os  dardos  e  lanças  de  si- 
lex,  de  quartzo,  de  obsidiana  e  de  outras  rochas  apparecem  com 
profusão  e  sob  formas  diversas  em  toda  a  parte.  Fabricam-se 
punhaes  de  silex  com  admirável  aperfeiçoamento,  e  á  feição  de 
marlellos  e  picaretes,  preparam-se  outras  armas  de  guerra  com 
um  largo  orifício  para  o  encabamento,  terminando  em  gumes, 
pontas,  ou  cabeças  arredondadas,  a  que  os  archeologos  francezes 
chamam  casse-tète,  differenoando-se  dos  machados  polidos,  que 


117 

lambem  julgo  terem  sido  armas  de  guerra,  comquanlo  mais  ge- 
ralmente fossem  instrumentos  de  trabalho,  em  serem  estes  utili- 
sados  somente  pela  extremidade  cortante.  As  armas  de  osso  e  de 
matéria  córnea,  já  usadas  nos  tempos  preneolilhicos,  proseguem 
em  maior  escala.  Emfim,  não  faltam  armas  de  mão  e  de  arre- 
meço  entre  as  hordas  ou  tribus  adversas. 

A  palafitta,  que  só  communicava  com  a  terra  por  uma  ponte 
levadiça  ou  por  navetas  e  pirogas  excavadas  em  madeiros,  era 
ponto  seguro  de  habitação,  mas  que  certamente  não  chegaria 
senão  para  os  mais  privilegiados,  porquanto,  havia  também  gru- 
tas, cavernas  e  habitações  terrestres  subterrâneas  de  lm,50  a 
8  metros  de  diâmetro  e  de  1  a  3  metros  de  profundidade,  que 
em  Portugal  c  cm  varias  terras  de  Hispanha  são  consideradas 
como  celleiros  mouriscos,  e  ainda  outras  vivendas  de  base  circu- 
lar, cujos  pavimenlos  de  terra  batida  ou  calçados  de  pedra,  foram 
verificados  no  monte  Amarello  ao  norte  de  Bensafrim,  assim 
como  devem  ser  achados  n'outras  partes  do  reino,  significando 
construcções  similhantes  ás  que  o  benemérito  explorador  da  Gi- 
tania,  o  sr.  Martins  Sarmenlo,  mui  habilmente  descobriu  nos 
montes  de  Briteiros,  onde  o  seu  nome  illustre  ficará  dignamente 
memorado. 

Os  adestrados  caçadores  d'aquelles  tempos  fizeram-se  guer- 
reiros. As  contendas  eram  decididas  com  o  penetrante  argumento 
da  ponta  de  frecha,  ou  a  golpes  de  armas  contundentes.  Foram 
elles,  portanto,  que  ensinaram  ás  nações  modernas  a  discutirem 
com  armas  na  mão,  e  por  isso  se  pode  affirmar  que  a  força  bruta, 
campeando  ainda  em  meio  das  mais  alevantadas  civilisações 
actuaes,  é  deshonrosa  herança  das  selvagerias  do  passado. 

A  prova  mais  positiva  d'esses  combates,  havidos  entre  os 
homens  da  ultima  idade  da  pedra,  ficou  estampada  nos  seus  pró- 
prios ossos.  São  numerosos  os  que  toem  sido  achados  em  dolmens 
e  cavernas,  contendo  imbebidas  as  frechas  de  silex  que  os  pene- 
traram. O  craneo,  sobretudo,  como  largamente  verificou  o  sábio 
Júlio  Baron,  era  o  alvo  predilecto  do  atirador;  mas  o  dr.  Pru- 
nières  colligiu  outros  muitos  ossos  feridos  pela  terrível  ponla  de 


118 

silex.  E  não  se  diga  que  o  machado  polido  de  pedra  era  simples- 
mente um  instrumento  de  trabalho.  Ahi  está  o  craneo  da  mulher 
de  Cro-Magnon  com  uma  brecha  extensa  e  larga,  aberta  sobre  o 
frontal  esquerdo  por  um  machado  de  pedra,  e  que,  não  chegando 
a  cicatrizar,  lhe  produziu  certamente  a  morte.  O  machado  e  o 
picão  de  pedra  deviam  ter  sido  horríveis  armas  de  combate,  as- 
sim como  alguns  instrumentos  de  osso. 

A  necessidade  do  homem  viver  armado  contra  o  assalto  do 
inimigo  crescia  na  proporção  do  desenvolvimento  da  sua  prospe- 
ridade. Os  cubiçosos  da  riqueza  manifestaram-sc  logo,  uns  pro- 
curando-a  pelo  trabalho,  e  outros  pelo  emprego  da  força,  ata- 
cando a  propriedade  já  constituída.  Do  primeiro  abençoado  grupo 
de  cubiçosos  nasceu  a  industria  e  consequentemente  o  seu  pro- 
gresso; e  do  segundo  surgiu  o  direito  de  conquista  cem  todas 
suas  torpezas.  O  communismo,  por  exemplo,  se  d'este  direito  não 
descende  em  linha  recta,  deve,  pelo  menos,  ter  com  elle  estreito 
parentesco.  Foi  o  direito  invocado  e  exercido  pelo  primeiro  sal- 
teador e  pelo  primeiro  pirata.  Depois,  e  até  hoje,  o  famoso  di- 
reito da  força  ficou  sendo  o  direito  dos  heroes  e  dos  grandes  po- 
tentados, ou  a  negação  de  todos  os  direitos. 

Era  mister  fugir  aos  perigos,  mas  primeiro  que  tudo  achar 
seguros  refúgios.  E  acharam-se! 

Ao  homem  das  idades  da  pedra  attribue-se  a  oceupação  de 
umas  certas  collinas,  ou  rochas,  sobranceiras  aos  valles,  quasi 
cortadas  a  pique,  ou  aprumando  em  rampas  escarpadas  e  abru- 
ptas, apenas  accessiveis  por  um  trilho  estreito  e  fácil  de  ser  cor- 
tado, á  feição  de  fosso,  como  para  impedir  as  invasões.  Não 
havendo  grutas  ou  cavernas  naturaes  n'esses  logares,  que  ser- 
vissem de  abrigo,  como  em  tão  bizarras  circumstancias  poderia 
citar  a  serra  da  Pena  e  o  serro  dos  Soidos  na  freguezia  de  Alte, 
seria  obrigado  a  construir  alguns  abrigos,  ou  cabanas,  como 
houve  no  monte  Amarello,  ao  norte  de  Bensafrim,  onde  ainda 
estão  á  vista  os  seus  assentamentos  de  base  circular.  Estas  pri- 
mitivas fortificações,  conforme  as  condições  do  logar,  eram  ainda 
melhor  defendidas  em  certos  pontos,  sendo  alteadas  com  um 


lií) 

grosso  bordo  de  terra,  principalmente  nos  logares  mais  fracos, 
como  me  parece  poder  exemplificar,  indicando  os  restos  já  mui 
abatidos  e  quasi  desfigurados  d'esses  engenhosos  parapeitos,  que 
notei  haver  no  chamado  serro  das  Alfarrobeiras  sobre  a  margem 
direita  do  rio  de  Almádena,  onde  se  diz  terem  apparecrdo  ma- 
chados polidos  de  pedra  e  alguns  percutores,  mas  que  não  che- 
guei a  ver;  pois  apenas  alli  achei  muitos  escoriaes  metallicos, 
denunciando  antigas  fundições.  E  de  outros  logares  similhantes 
me  deram  noticia  já  depois  de  findas  as  explorações  officiaes,  de 
que  o  governo  me  incumbiu,  citando-se  no  concelho  de  Alcoutim 
uns  serros  na  freguezia  de  Vaqueiros  e  o  legendário  serro  das 
Relíquias  junto  á  margem  direita  da  grande  ribeira  do  Vascão  e 
da  velha  estrada  que  seguia  para  Mertola. 

Faltou-me  o  tempo,  que  estas  investigações  reclamam,  para 
poder  indicar  no  Algarve  outros  muitos  logares,  que  julgo  terem 
sido  refúgios  preparados  pela  natureza  e  aperfeiçoados  pela  arte, 
que  as  populações  antigas  tiveram  de  inventar  para  se  porem  a 
salvo  de  súbitas  investidas  e  poderem  respirar  tranquillas  du- 
rante os  seus  momentos  de  repouso. 

Em  todo  o  reino  haverá  muito  d'isso,  certamente,  mas  só  ha 
de  achar-se,  se  um  dia  se  tomar  a  serio  o  estudo  geral  das  anti- 
guidades d'este  território,  e  se  esse  estudo  for  commettido  a 
homens  de  afiançada  idoneidade  scientifica. 

Além  dos  mencionados  abrigos  alpestres,  o  homem  antigo 
ideou  outro,  mais  seguro,  porventura,  porém  de  tão  arrojado  em- 
prehendimento,  de  tão  audaciosa  execução,  que  até  parece  im- 
possível ter-se  podido  realisar. 

Refiro-me  ás  cidades  lacustres  ou  palafittas,  construídas  em 
meio  dos  lagos,  para  servirem  de  habitação  e  defeza  aos  homens 
que  povoaram  o  globo  terrestre,  e  portanto  ás  diversas  raças  que 
em  epochas  remotíssimas  viviam  em  todo  o  mundo. 

Não  sei  se  no  território  portuguez  houve  palafittas,  do  mesmo 
modo  que  na  Galliza  e  noutras  províncias  da  Hispanha.  Lagos 
e  lagoas  houve,  certamente,  e  alguma  cousa  d'isso  ainda  resta; 
mas  ninguém  ainda  sabe  se  tiveram  habitadores. 


•120 

No  Algarve,  entre  Cacella  c  Monte  Gordo,  existe  uma  lagoa, 
que  muito  desejei  explorar.  Chamam-lhe  a  Lagoa  do  Boinho. 
Mede  1  kilometro  de  extensão  e  500  metros  de  largura.  Em 
muitos  logares  próximos  têem  apparecido  instrumentos  de  pedra 
polida,  e  consta  que  quando  as  aguas  alli  abaixam,  se  observam 
estacas  de  madeira,  comquanto  haja  quem  affirme  que  taes  esta- 
cas são  modernas.  Estas  indicações,  porém,  só  as  obtive  depois 
de  findos  os  trabalhos  de  que  estava  encarregado  e  num  tempo 
em  que  a  lagoa  tinha  muita  agua.  Não  posso,  pois,  affirmar  cousa 
alguma  a  este  respeito;  mas  bom  é  que  estas  indicações  fiquem 
registradas  e  recommendadas  a  futuros  exploradores. 

Fundando-me  na  auetoridade  de  auetores  competentíssimos, 
segui  o  seu  conceito  inscrevendo  as  origens  das  construcções  la- 
custres nos  tempos  neolithicos.  Esta  doutrina,  porém,  tem  ulti- 
mamente tido  impugnadores,  que  pretendem  não  haver  palafittas 
anteriores  á  idade  do  bronze.  Os  seus  fundamentos  são  muitos, 
mas,  a  meu  ver,  de  minguada  força.  Citarei  os  seguintes: 

i.°  Apparecerem  ossos  de  animaes  no  fundo  dos  lagos  e  não 
haver  entre  elles  ossos  humanos. 

2.°  Que  alguns  tumuli  ou  montículos  de  terra  e  pedra,  en- 
contrados na  proximidade  dos  lagos,  contendo  cinzas,  carvões  e 
objectos  metallicos,  mostram  ser  as  sepulturas  dos  homens  da 
idade  do  bronze,  não  podendo  por  isso  attribuir-se  aos  da  ul- 
tima idade  da  pedra. 

3.°  Que  apparecendo  vidros  no  fundo  dos  lagos,  provenientes 
da  fundição  de  metaes,  não  podem  ser  referidos  á  ultima  idade 
da  pedra. 

4.°  Que  os  largos  orifícios  de  varias  armas  de  pedra,  extrahi- 
dos  das  palafittas,  só  podiam  ser  feitos  com  instrumentos  metallicos. 

5.°  Que  a  secção  ou  corte  que  soffreram  as  arvores,  para  se 
transformarem  em  esteios  ou  estacas  nas  palafittas,  só  se  podia 
conseguir  com  instrumentos  metallicos. 

6.°  Que  tendo  apparecido  muitos  brunidores  de  pedra  entre 
outros  instrumentos  de  idêntica  matéria,  na  estação  de  Laybach, 
só  poderiam  servir  para  polirem  o  bronze,  cuja  idade  é  alli  reco- 


121 

nhccida,  por  serem  os  ornatos  dos  vasos  cerâmicos  representados 
por  círculos  concêntricos  e  triângulos. 

Ora,  tendo  eu  inscripto  no  período  neolithico  as  origens  das 
palafittas,  cumpre-me  avaliar  as  precedentes  objecções  com  a 
mais  serena  imparcialidade,  a  fim  de  mostrar  que  não  destroem 
os  fundamentos  e  boas  presumpções  que  parecem  refutal-as. 

Referirei  primeiramente  um  caso  assaz  curioso,  para  mostrar 
que  a  tendência  para  os  lagos  é  tão  anterior  á  idade  do  bronze 
e  da  pedra  polida,  que  ultrapassa  ainda  as  raias  do  grande  pe- 
ríodo paleolithico,  ou  de  todo  o  quaternário,  porque  nasceu  com 
o  precursor  do  homem,  como  em  linguagem  moderníssima  é  appel- 
lidado  o  individuo  do  Thenay,  que  no  mioceno  inferior  preparava 
o  silex  pela  acção  do  fogo  e  pela  percussão,  o  que  no  mioceno 
superior  do  Cantai  lascava  o  silex  pela  percussão,  e  o  que  nos 
terrenos  intermiocenos  e  pliocenos  do  valle  do  Tejo  também 
usava  o  mesmo  processo. 

Este  engenhoso  ribatejano,  que,  no  dizer  do  sr.  de  Mortillet, 
ainda  não  era  o  homem  propriamente  dilo,  mas  o  seu  progenitor, 
se  não  vivia  constantemente  nas  margens  da  grande  bacia  lacu- 
stre miocena,  que  se  tinha  formado  entre  Otta  e  Monte  Redondo,  era 
grande  frequentador  dos  bordos  daquelle  lago  e  com  tal  assidui- 
dade, que  alli  mesmo  assentou  a  sua  officina  de  trabalho,  de  que 
deixou  artefactos  de  silex  c  quartzite,  em  parte  já  mui  apresen- 
táveis, não  obstante  umas  certas  imperfeições  que  Bourgeois  e 
outros  impertinentes  escrupulosos  lhes  notaram. 

Até  hoje  não  se  tem  atinado  com  outro  logar,  que  elle  dei- 
xasse assignalado  com  os  productos  da  sua  industria.  Talvez 
morasse  ahi  para  os  lados  do  Monte  Redondo,  nalgum  abrigo  hoje 
destruido,  ou  se  limitasse  a  viver  ao  ar  livre  do  famoso  clima, 
que  então  permittiu  a  apparição  de  muitos  e  diversos  viventes 
até  então  não  conhecidos,  tanto  nos  mares,  nos  continentes,  como 
nos  lagos  de  agua  doce  4.  O  caso  é  que  a  paragem  predilecta 


1  Veja-se  o  Cours  èlêmenlaire  de  paléonlologie  el  de  gèologie  slraligrapliique  do 
D^Orbig-ny,  tomo  n,  pag\  796  a  800,  1851,  cm  que  são  indicadas  a  fauna  e  a  ílora  dcscri- 
ptas  por  Brogniart. 


i2â 

daquelle  industrial,  era  o  bordo  da  referida  bacia  lacustre,  o  seu 
enlevo  irresistível,  o  seu  paradeiro  mais  certo.  E  não  foi  o  único 
attrahido  pelas  benignidades  do  lago,  d'onde  talvez  tirasse  sabo- 
rosos alimentos,  se  tivermos  em  vista  as  espécies  da  fauna  local 
estudadas  por  Gaudry  e  as  da  flora,  classificadas  por  Heer.  O  ou- 
tro do  Thenay  também  vivia  nas  margens  do  grande  lago  situado 
entre  Beauce  e  Vcndôme.  Foi  alli  que  Bourgeois  lhe  fez  presa 
do  seu  melhor  pecúlio  industrial.  Emfim,  a  tendência  para  os 
lagos  já  contava  immemorial  antiguidade,  quando  as  posteriores 
populações  neolithicas,  ou  da  idade  do  bronze,  entenderam  ser 
melhor  e  mais  seguro  passarem  a  viver  sobre  as  aguas. 

Voltando,  porém,  aos  fundamentos  com  que  se  pretende  pro- 
var, que  foram  os  homens  da  idade  do  bronze  os  primitivos  con- 
structores  e  habitantes  das  palafittas,  occorrem-me  alguns  reparos 
c  mesmo  ponderações,  que  me  parece  nâo  se  poderem  abandonar, 
a  fim  de  que  este  assumpto  tenha  mais  algum  esclarecimento. 

l.°  O  facto  de  não  apparecerem  no  fundo  dos  lagos  ossos 
humanos  misturados  com  os  dos  animaes,  que  serviam  de  ali- 
mentação, prova  que  o  vicio  brutal  da  anthropophagia  não  tivera 
ingresso  entre  os  habitantes  daquellas  insulas  artificiaes;  prova 
que  os  cadáveres  não  eram  lançados  ao  fundo  dos  lagos,  mas 
d'alli  transportados;  não  prova,  porém,  que  fossem  queimados, 
porque  podiam  ter  sido  inhumados. 

2.°  Se  na  proximidade  dos  lagos  têem  apparecido  alguns  tu- 
muli,  ou  montículos  de  terra  e  pedra,  contendo  cinzas,  carvões, 
e  instrumentos  de  bronze,  similhantes  aos  que  se  acham  no  fundo 
lodoso,  parece  provável  que  taes  depósitos  representem  incinera- 
ções correspondentes  a  indivíduos,  que  viveram  durante  a  idade 
do  bronze  em  palafittas  ou  em  habitações  terrestres;  mas  não 
prova  que  esses  indivíduos  não  tivessem  predecessores,  nem  que 
não  haja  outros  depósitos  mortuários,  mais  ou  menos  próximos 
dos  lagos,  pertencentes  á  população  neolithica.  Se  o  facto,  pois, 
de  não  se  terem  descoberto  numerosas  sepulturas  neolithicas  nas 
circumvizinhanças  dos  lagos,  onde  todavia  estão  registrados  al- 
guns dolmens  c  se  têem  achado  varias  inhumações,  leva  a  concluir 


123 

que  os  homens  da  ultima  idade  da  pedra  não  foram  os  fundado- 
res das  mais  antigas  habitações  lacustres,  do  mesmo  principio  se 
poderia  deduzir  que  os  homens  da  idade  do  bronze  só  em  min- 
guado numero  teriam  alli  existido,  sendo  diminutissimos  os  tu- 
fnuli  cinerarios  de  que  ha  noticia  cm  relação  á  grande  população 
lacustre,  que  se  diz  ter  havido  n'aquella  idade.  Redargue-se, 
porém,  a  esta  objecção,  dizendo-se  que  varias  causas  lerão  extin- 
guido os  tumuli  da  idade  do  bronze;  mas  não  se  applica  a 
mesma  doutrina  para  explicar  a  falta,  que  se  nota,  de  sepulturas 
neolithicas,  sendo  estas  muito  mais  antigas  e  portanto  expostas 
ha  mais  tempo  a  todas  as  causas  de  destruição. 

3.°  As  substancias  vítreas,  extrahidas  do  fundo  dos  lagos, 
derivadas  da  fusão  dos  metaes,  podem  pertencer  á  idade  do 
bronze  ou  serem  posteriores.  Foram  certamente  para  alli  trans- 
portadas com  alguma  idéa  de  aproveitamento,  porque  as  fundi- 
ções não  se  podiam  fazer  nas  palafittas.  Não  provam,  porem,  que 
os  fundidores  dos  metaes  foram  os  primeiros  habitantes  das  ca- 
banas lacustres. 

4.°  Com  referencia  aos  artefactos  de  pedra  perforados,  des- 
cobertos nas  palafittas  e  cm  vários  depósitos  terrestres,  corre  a 
mui  singular  presumpção  de  que  todos  devem  pertencer  a  idade 
do  bronze,  ou  á  do  ferro,  dizendo-se  não  se  poder  conceber,  que 
sem  o  emprego  de  instrumentos  metallicos,  exercendo  acção  de 
rotação,  taes  aberturas  se  podessem  conseguir. 

Não  posso  concordar  com  esta  aventurosa  opinião,  contra  a 
qual  reagem  todos  os  ensaios  experimentaes  e  conjunctamente  as 
provas  archeologicas  mais  positivas. 

Faça-se  a  experiência.  Applique-se  em  movimento  de  rotação 
uma  barra  aguçada  de  cobre  ou  de  bronze  sobre  um  instrumento 
de  qualquer  rocha  dura,  por  exemplo,  do  grupo  feldspathico  ou 
de  outras  series  do  mesmo  grau  de  dureza  até  o  ultimo  termo  da 
escala,  que  facilmente  se  reconhecerá  que  o  bronze,  e  muito  me- 
nos o  cobre,  em  vez  de  furar  a  pedra,  será  por  ella  desgastado. 
Os  machados  de  schisto  amphibolico,  de  fibrolite,  de  diorite,  etc, 
que  colligi  no  Algarve,  repellem  o  trabalho  d'esses  dois  metaes. 


124 

A  meu  ver,  nenhuma  substancia  metallica,  anles  de  eslar  em 
uso  o  ferro  temperado,  podia  supprir  a  acção  da  ponta  de  silex, 
assim  como  nenhum  instrumento  cortante,  antes  do  aço,  podia 
competir  com  a  tradicional  faca  de  silex,  de  obsidiana,  ou  de 
quartzo  crystallino. 

Ha  numerosos  artefactos  perforados,  colligidos  em  rigorosas 
condições  neolithicas,  como  em  seus  logares  mostrarei,  taes  como 
amuletos  e  adornos  de  varias  pedras;  e  portanto,  os  instrumentos 
que  produziram  a  perforaçâo,  não  eram  metallicos,  mas  silicio- 
sos.  Podiam  ser  de  silex,  de  agatha  ou  de  calcedonia,  porque 
tudo  isso  havia  nos  depósitos  neolithicos,  e  podiam  mesmo  ser 
auxiliados  com  pontas  de  quartzo  crystallino  ou  opaco,  porque 
também  foram  achadas. 

A  perforaçâo  dos  martcllos  e  picaretes,  a  que  os  archeologos 
francezes  chamam  casse-téte,  devendo  ser  larga  para  o  encaba- 
mento,  obtinha-se  por  outros  processos,  sem  a  intervenção  do 
cobre  ou  do  bronze,  como  vários  esboços  quebrados,  quasi  todos 
de  serpentina,  extrahidos  das  palafittas  da  Suissa,  deixaram  per- 
ceber. Em  geral,  para  a  fabricação  d'estas  armas  empregavam-se 
rochas  brandas,  mas  ao  mesmo  tempo  densas  e  de  muita  tenaci- 
dade, comquanto  algumas  pertençam  ao  grupo  das  rochas  duras. 

Aproveitavam-se  pedras  naturalmente  furadas  e  preparados 
os  furos  por  meio  de  choques  de  percussão,  seriam  aperfeiçoados 
sob  a  acção  da  agua,  com  pedaços  compridos  de  grés  expressa- 
mente talhados  para  poderem  completar  o  preciso  alargamento. 

Quando  não  havia  furo  natural,  o  trabalho  da  perforaçâo  co- 
meçaria por  ser  a  pedra  picada  por  ponções,  formando-se  duas 
cavidades  oppostas,  como  se  acham  em  muitos  percutores  para 
simples  firmeza  dos  dedos,  segundo  se  tem  julgado,  comquanto 
algumas  mostrem  asperezas,  que  antes  deixam  presumir  serem 
produzidas  pela  trituração  de  drogas  mineraes. 

Quem  observar  os  graes  de  pedra  do  dolmen  neolithico  de 
Alcalá,  talvez  os  mais  perfeitos  que  se  têem  achado  em  Portugal, 
e  mais  alguns,  também  neolithicos,  pertencentes  ás  collecções  da 
secção  geológica,  notará  um  trabalho  de  fabricação,  de  todo  o 


1 


125 

ponto  regular,  verdadeiramente  admirável.  Todos  apresentam 
uma  cavidade  mais  ou  menos  funda,  parecendo  ter  sido  torneada, 
mas  que  foi  primeiramente  preparada  por  choques  de  percussão 
e  em  seguida  aperfeiçoada  pelo  altrito  de  areia  molhada  e  posta 
em  rotação  por  um  pilão  de  grés,  por  um  pedaço  de  madeira  ou 
de  osso.  Suppondo-se  agora  que  no  lado  opposto  do  gral  se  fazia 
igual  trabalho,  fácil  será  perceber-se  que  as  duas  cavidades  che- 
gariam a  communicarem-se  por  uma  rotura,  cujos  bordos  iriam 
sendo  cortados  por  escopros,  goivas  e  marlellagens  até  o  plano 
de  contacto  das  duas  cavidades  ganhar  o  diâmetro  de  cada  uma. 

Eis-aqui  como  também  podiam  ser  praticadas  as  aberturas 
nos  outros  instrumentos  de  pedra,  durante  a  ausência  dos  metaes, 
tanto  mais  do  cobre  e  do  bronze,  que  pouco  ou  nada  adiantariam 
aquelle  género  de  trabalho,  em  que  a  paciência  e  perseverança, 
mostrando  maior  tenacidade  do  que  as  rochas  mais  resistentes, 
só  deixaram  de  ser  atacadas  pela  acção  dos  attritos.  Trabalho 
muito  mais  admirável  era,  porém,  o  de  um  vaso  de  calcareo 
branco  de  fina  granulação,  cujos  fragmentos  me  deixaram  dedu- 
zir a  medida  do  diâmetro  do  eixo  vertical,  e  da  ténue  espessura 
de  0m,004,  com  varias  perforações  junto  ao  bordo  e  no  bojo,  sem 
que  comtudo  fosse  mister  empregar  metaes  num  tão  delicado 
lavor. 

5.°  E,  a  meu  ver,  contraproducente  a  prova  que  se  pretende 
dar,  de  que  o  corte  dos  tanchões  sobre  que  assentavam  as  con- 
strucções  lacustres,  só  podia  ser  feito  com  instrumentos  de  cobre 
ou  de  bronze. 

Ponha-se  á  vista  a  serie  mais  completa  dos  instrumentos  cor- 
tantes da  idade  do  bronze  e  a  serie  dos  de  pedra  do  período 
neolithico,  proceda-se  ao  ensaio  da  possança  de  uns  e  de  outros, 
que  facilmente  se  reconhecerá  ser  verdadeira  preoceupação  o  que 
se  pretende  affirmar. 

Note-se  que  a  essência  florestal,  que  mais  predominava  nos 
tempos  neolithicos,  era  do  género  Pinus,  c  que  a  mais  typica  da 
idade  do  bronze  fora  o  Quercus.  Já  se  vô,  que  o  corte  do  carva- 
lho oppõe  maior  resistência  que  o  do  pinheiro. 


120 

Como  poderiam  pois  os  machados  e  escopros  de  bronze  cor- 
tar o  tronco  dos  carvalhos,  e  os  dos  pinheiros  não  poderiam  ser 
cortados  com  os  possantes  machados  de  silex,  de  rochas  quar- 
Izosas,  dioriticas,  serpentinosas,  todas  de  grande  densidade  e  de 
afiladissimos  gumes  cortantes?  Além  d'estes  poderosos  instru- 
mentos, havia  grandes  enxós  de  corte  de  formão  e  escopros  de 
apurado  gume,  que  independentemente  dos  machados,  bastariam 
para  porem  por  terra  uma  floresta,  sulcando  e  minando  em  volta 
redonda  os  troncos  das  arvores. 

Não  colhe,  pois,  o  argumento  enunciado,  de  que  as  palafiltas 
não  podem  pertencer  ao  período  neolilhico,  por  não  haver  então 
instrumentos  metallicos  para  cortarem  a  estacaria.  Nem  está  pro- 
vado, que  os  artefactos  de  madeira  exlrahidos  dos  lagos,  laes 
como  cabos  de  instrumentos,  clavas  de  varias  formas,  vasilhame 
e  pirogas  ou  canoas  exeavadas  em  madeiros,  se  fizessem  com 
instrumentos  metallicos,  quando  tudo  isso  se  podia  fabricar  com 
os  machados,  enxós,  escopros  e  goivas  de  varias  rochas,  com  o 
poderoso  auxilio  de  laminas  cortantes,  de  facas,  serras  e  raspa- 
dores de  silex,  de  crystal  de  rocha,  de  caleedonia,  de  obsidiana 
e  de  quartzo,  e  finalmente  empregando  ainda  desgastadores  de 
rochas  granulosas,  e  polidores  finíssimos. 

E  com  que  instrumentos  metallicos  preparavam  os  homens 
paleolithicos  e  os  da  ultima  idade  da  pedra  os  numerosos  artefa- 
ctos de  osso,  que  são  característicos  dos  seus  tempos,  entre  os 
quaes  ha  manufacturas  verdadeiramente  pasmosas? 

Não  poucas  vezes  a  classificação  de  certas  estações  é  sobre- 
maneira temerária.  Quando  não  ha  bases  sufficientemente  positi- 
vas, o  conceito  conjectural  pouco  adianta,  para  não  dizer  que 
tudo  desfigura. 

Pretendeu-se  classificar  a  estação  de  Laybach  como  perten- 
cente á  idade  do  bronze,  porque  continha  muitos  brunidores  de 
pedra,  que  se  julgou  só  poderem  ter  servido  para  polirem  o 
bronze,  quando  estes  instrumentos  são  frequentes  e  abundantes 
em  depósitos  rigorosamente  neolithicos.  Além  dos  polidores  de 
pedra,  manifestou  aquella  estação  algumas  loucas  com  ornatos 


127 

de  círculos  concêntricos  e  triângulos,  desenhos  que  logo  se  con- 
sideraram typicos  da  idade  do  bronze,  quando  o  celebre  dolmen 
de  Gavr'inis,  que  ainda  não  foi  inscripto  nas  idades  metallicas  *, 
apresenta  gravuras  muito  mais  complicadas  no  lavor,  e  quando 
a  figura  triangular,  como  adiante  mostrarei,  ó  o  typo  da  gravura 
geométrica,  que  orna  as  numerosas  placas  de  schisto  ardosiano, 
assaz  frequentes  nas  estações  neolithicas  do  Algarve,  e  noutras 
de  diversas  províncias  do  reino,  as  quaes,  cousa  notável,  são  ra- 
ríssimas em  monumentos  da  idade  do  bronze. 

Com  taes  classificações  só  ha  a  esperar  uma  inextricável 
confusão ! 

São  numerosíssimas,  é  certo,  as  palafittas  habitadas  na  idade 
do  bronze,  e  sabe-se  que  o  foram,  porque  do  fundo  dos  lagos 
têem  sido  tirados  abundantes  e  variados  artefactos  daquelle  me- 
tal. Mas,  porque  devem  ser  da  idade  do  bronze  aquellas  palafit- 
tas, que,  tendo  já  sido  muito  exploradas,  não  apresentaram  ainda 
um  único  artefacto  metallico,  mas  um  conjuncto  de  característicos 
da  ultima  idade  da  pedra? 

E  mister  advertir,  que  a  Suissa  é  uma  das  regiões  mais  ricas 
de  palafittas  e  que  é  precisamente  alli  que  se  marca  a  estação, 
que  ficou  servindo  de  typo  da  ultima  idade  da  pedra.  Eis  a  razão 
por  que  os  archeologos  francezes  chamaram  epocha  Robenhau- 
siana  ao  período  neolithico. 

Robenhausen,  logarejo  da  communa  de  Welzikon,  perten- 
cente ao  cantão  de  Zurich,  é  um  nome  que  ficou  sendo  celebre 
nos  annaes  da  sciencia  moderna  em  razão  dos  descobrimentos 
que  fez  Messikommer,  habitante  do  logar,  pretendendo  esgotar 
os  alagadiços  que  separam  aquelle  povoado  das  margens  do  lago 
de  Pfaffikon.  As  alluviões  encobriram  alli  uma  opulenta  estação 
ncolithica,  contendo  muitos  instrumentos  de  pedra  polida  e  de 
osso,  abundantes  ossos  de  animaes,  louças,  cereacs  e  tecidos 
carbonisados,  bem  como  numerosos  artefactos  de  madeira  em 
perfeito  estado  de  conservação.  Nenhum  objecto  metallico  era 


Do  Mortillct,  Lc  Prèhislorique,  pag.  60?. 


128 

companheiro  do  famoso  pecúlio  da  ultima  idade  da  pedra,  escru- 
pulosamente estudado  pelo  sábio  Keller,  o  insigne  mestre  dos 
archeologos  suissos.  Foi  o  sr.  G.  de  Mortillet  quem  adoptou  a 
estação  de  Robenhausen  como  typica  da  ultima  idade  da  pedra. 

A  curta  distancia  da  margem  do  lago  de  Zurich,  não  longe 
de  Robenhausen,  sendo  cortado  um  outeiro  ou  montículo  um 
tanto  abatido,  Keller  verificou  alli  os  característicos  de  um  logar 
que  fora  habitado  na  ultima  idade  da  pedra  em  meio  das  aguas 
do  lago,  sendo  as  construcções  firmadas  sobre  estacaria,  cujas 
pontas  estavam  ainda  encravadas  no  lodo  negro  de  que  era  for- 
mado o  próprio  montículo,  onde  promiscuamente  foram  achados 
muitos  fragmentos  de  carvão,  pedaços  de  louça,  ossos  partidos, 
muitos  instrumentos  de  pedra  e  de  osso,  objectos  de  adorno,  te- 
cidos e  cereaes  carbonisados,  pedras  de  moagem,  pão  de  forma 
achatada  e  diversos  fructos  que  ainda  foi  possível  reconhecer. 
Com  todo  este  variado  amontoamento,  que  bem  mostrava  ter  o 
lago  de  Zurich  sido  habitado  na  ultima  idade  da  pedra,  appare- 
ceram  craneos  humanos  e  diz-se  que  alguns  objectos  metallicos, 
não  se  sabendo,  porém,  qual  foi  a  cota  do  montículo  que  conti- 
nha estas  duas  especialidades  tão  pouco  concordantes  entre  si 
em  presença  de  todos  os  mais  critérios,  que  os  sábios  sempre 
inscreveram  no  período  neolilhico. 

A  existência  de  estacas  no  âmago  do  montículo  seria  mais 
que  sufficiente  para  mostrar  que  tudo  aquillo  era  uma  parcella 
do  espaço  que  as  alluviões  tinham  usurpado  ás  aguas  do  lago, 
certamente  muito  mais  amplo  no  tempo  em  que  sobre  a  superfície 
tranquilla  das  suas  aguas  viveu  um  povo  sedentário,  furtando-se 
assim,  antes  ao  ataque  e  á  destruição  de  tribus  invasoras,  do  que 
á  ferocidade  de  uma  fauna,  que  já  havia  perdido  os  seus  mais 
pavorosos  devoradores. 

E,  com  effeito,  um  facto  assaz  singular! 

Se  o  deposito  era  originariamente  neolithico,  não  haveria 
craneos  humanos  immersos  no  lodo  de  um  lago  habitado;  pois 
se  os  indivíduos,  a  quem  pertenciam,  tivesssem  morrido  nas  habi- 
tações, seriam  enterrados  em  cistos,  grutas  ou  dolmens,  como  era 


129 

pratica  invariável  na  ullima  idade  da  pedra.  Se  o  deposito  per- 
tencia á  idade  do  bronze,  os  fallecidos  na  palafitta  não  podiam 
escapar  á  cremação,  nem  as  suas  cinzas  aos  tumuli  de  terra  e 
pedra,  que  a  curtas  distancias  dos  lagos  se  reconheceu  terem 
sido  as  mansões  mortuárias  d'aquelle  tempo,  em  vista  dos  instru- 
mentos metallicos  encontrados  no  âmago  de  taes  monumentos. 
Somente,  porém,  poderiam  pertencer  a  uma  ou  outra  idade,  se 
em  razão  de  lucta  ou  de  desastre  accidental  tivessem  sido  preci- 
pitados no  fundo  do  lago  e  alli  ficado  afundidos. 

Finalmente,  poderiam  provir  de  enterramentos  feitos  nas  tur- 
feiras  muito  posteriormente  á  idade  do  bronze  e  serem  relativa- 
mente modernos;  o  que  não  parece  ser  tão  verosímil,  tendo-se 
em  attenção  a  uniformidade  do  typo,  e  a  deformidade  occipital 
os  assignalar  com  uma  significação  talvez  muito  diversa. 

Ao  certo  nada  se  sabe!  Geralmente,  nem  sempre  se  tem  dado 
a  precisa  attenção  ás  condições  de  situação  em  que  se  acham  os 
objectos  antigos,  e  daqui  resultam  muitas  vezes  graves  erros  de 
classificação. 

Eis-aqui  o  que  pode  ter  suecedido  nos  depósitos  lacustres  da 
Suissa,  tanto  mais  nos  que  já  estão  protegidos  pelas  alluviões  e 
fora  dos  perímetros  inundados. 

Quem  nos  assevera,  que  os  craneos  helvéticos  e  os  artefactos 
metallicos  exhumados  dos  terrenos  marginaes  do  lago  de  Zurich 
não  oceupavam  o  deposito  alluvial  mais  antigo,  o  relativamente 
tais  moderno,  ou  camadas  muito  distantes  entre  si?  Não  conheço 
obra  alguma  em  que  se  tenham  figurado  os  perfis  d'esses  cortes, 
que  tiveram  por  fim  especulativo  a  conquista  e  a  defeza  de  ter- 
renos destinados  ao  lavor  agrícola. 

Poderia  citar  muitos  casos  análogos.  Mesmo  em  Portugal, 
algumas  cavernas,  que  em  grande  parte  manifestaram  critérios 
neolithicos,  continham  pontas  de  frecha  e  de  lança  de  cobre  e  de 
bronze,  e  algumas  ha  n'outras  regiões,  que  até  têem  fornecido 
trlefactos  romanos.  A  conclusão  seria,  pois,  que  as  primeiras  só 
na  idade  do  bronze  foram  utilisadas,  e  que  as  segundas  apenas 
no  terceiro  ou  quarto  século  começaram  a  ser  transformadas 

9 


130 

pelos  conquistadores  do  mundo  em  cryptas  funerárias,  onde  con- 
centravam todas  as  possíveis  memorias  do  passado,  dotando  os 
seus  defuntos  com  os  mais  typicos  instrumentos,  da  idade  do 
bronze  e  da  ultima  idade  da  pedra,  que  podiam  haver  a  mão. 

Sabido  é,  que  nos  tempos  geológicos  o  solo  helvético  esteve 
coberto  de  espessas  geleiras.  Â  vida  humana  seria  então  certa- 
mente incompatível  com  tão  adversas  condições  physicas  e  clima- 
téricas. Com  a  fauna  preglaciaria  dos  grandes  mammiferos  dizem 
que  não  se  encontrou  por  emquanto  n'aquella  região  prova  al- 
guma directa  da  existência  humana,  o  que  tem  levado  alguns  pa~ 
leontologistas  a  julgarem,  que  nem  o  homem  paleolithico  nem  o 
neolithico  alli  chegou  a  viver.  Parece-me  um  tanto  prematura  e 
demasiado  positiva  uma  tal  asserção.  Muito  está  ainda  por  fazer 
em  toda  a  parte.  O  facto  de  não  se  terem  descoberto  ossos  huma- 
nos n'algumas  cavernas  em  que  abundam  os  dos  grandes  viventes 
dos  tempos  quaternários,  nada  prova.  Nem  todas  as  cavernas 
terão  sido  exploradas,  e  nem  todas  foram  aproveitadas  pelo 
homem.  Schmerling  só  encontrou  na  Bélgica  três  ou  quatro  ca- 
vernas ossiferas,  tendo  explorado  quarenta  e  oito,  e  o  sábio  Lund, 
tendo  feito  o  reconhecimento  de  mais  de  oitocentas  no  Brazil, 
apenas  em  seis  descobriu  ossos  humanos  *  1 

Mas  o  manto  crystallino  de  gelos  com  que  os  Alpes  cobriram 
o  solo  em  que  viveu  a  fauna  quaternária  da  Suissa  desappareceu. 
Pouco  ao  meu  intento  convém  agora  invocar  as  causas  d'esse 
grandioso  phenomeno.  Entretanto  direi  apenas,  muito  de  passa- 
gem, estar  paleontologicamente  provado  pelas  cotas  de  nivel  em 
que  hoje  se  observam  vários  molluscos  fosseis,  que  viveram  sob 
o  domínio  do  mar,  que  os  Alpes  accusam  por  este  modo  um  abai- 
xamento de  700  metros  em  relação  ao  nivel  do  mar,  e  áquelle 
que  attingiram  quando  as  geleiras  occuparam  as  cordilheiras  dos 
Vosges  e  tiveram  a  sua  máxima  extensão2.  D'esse  abaixamento 


1  Veja-se  com  attenção  o  que  a  este  respeito  pondera  o  sábio  Beudant  no  seu  Cours 
ètèmenlaire  de  géologie,  pag\  257 —  1865. 

2  Alcide  d'0rbigny,  no  seu  Cours  de  palèonlologie  et  de  gèologie,  tomo  n,  pag\  938, 
avalia  em  mais  1:000  metros  a  elevação  dos  Alpes  quando  as  geleiras  attingiram  a  sua 
maior  extensão;  vide  o  Syslème  de  la  chaine  pri?icipale  des  Alpes, por  Elie  de  Beaumont. 


131 

resultou  necessariamente  uma  proporcional  elevação  de  tempera- 
tura, que  extinguiu  as  geleiras  dosVosges  e  d'ellas  libertou  tam- 
bém o  solo  subalpino  da  Suissa.  O  derretimento  de  tão  enormes 
montanhas  de  gelo,  constituindo  uma  epocha  diluviai,  occupou 
depois  as  depressões  do  solo  e  formou  os  numerosos  lagos 
d'aquella  região.  Vieram  a  seu  tempo  as  alluviões  conquistando 
lentamente  aos  lagos  os  grandes  espaços  do  seu  espraiamento  e 
nelles  creando  o  novo  solo,  que  um  dia  tinha  de  ser  enlevo  do 
mundo  e  pátria  de  illustres  sábios.  Abençoadas  alluviões ! 

Digam  o  que  disserem,  os  da  idade  do  bronze,  os  assadores 
de  carne  humana,  não  foram  os  primeiros  que  pisaram  os  torrões 
enxutos  do  novo  solo  alluvial  suisso. 

Note-se  bem.  Os  homens  que  trouxeram  o  bronze,  e  que  se 
diz  terem  tido  por  pátria  a  Ásia  meridional,  accrescenta-se  que 
foram  também  portadores  de  um  culto  consagrado  ao  astro  da 
noite,  acompanhado  da  superstição,  que  os  impedia  de  attenta- 
rem  contra  as  melindrosas  immunidades  da  lebre,  em  razão  de 
umas  velhas  tradições  e  de  umas  subtis  analogias  que  descobri- 
ram (feliz  descoberta!)  entre  a  lua  e  a  lebre!  A  lua  era  a  magica 
lanterna  com  que  o  céu  alumiava  a  terra,  ao  passo  que  a  lebre 
era  ao  mesmo  tempo  o  symbolo  da  vigilância  nocturna,  e,  ao  que 
parece,  tinha  ainda  com  a  lua  umas  outras  mysteriosas  relações 
de  congruidade,  que  não  tratei  de  averiguar ...  O  caso  é,  que  o 
homem  da  religião  do  bronze  achou  ser  cousa  muito  mais  corrente 
conformar-se  com  a  pratica  de  o  reduzirem  a  cinzas  do  que  pro- 
var carne  de  lebre.  A  isso  é  que  elle  nunca  se  atreveu !  O  seu 
antecessor,  o  da  idade  da  pedra,  e  com  isto  não  quero  dizer  que 
foi  seu  ascendente,  não  levava  tão  longe  os  escrúpulos.  Comia  de 
tudo,  e  com  devoradora  sofreguidão,  a  ponto  de  reduzir  os  dentes 
a  um  completo  estado  de  arrazamento.  Elles  ahi  estão  appare- 
cendo,  e  vejam-se  bem,  que  parece  terem  devorado  pedras  de 
amolar.  Quantos  gastronomos  desejariam  hoje  mesmo  poder  dispor 
da  sua  ucharia  culinária!  Em  summa,  até  carne  de  lebre  comia! 
E  não  ha  que  duvidar,  porque  nas  grutas  suissas  de  Thayngen, 
em  Schaffhausen,  os  ossos  da  lebre,  animalejo  mui  conhecido 


132 

desde  os  tempos  prepaleolithicos,  foram  achados  com  uma  fauna 
completamente  da  idade  da  pedra,  onde  o  fanático  palafittico  da 
idade  do  bronze  nunca  se  animaria  a  assomar-se,  havendo-se 
alli  perpetrado  um  cruento  sacrilégio.  Tinha-se  comido  lebre  lá 
dentro  . . .  Não  podia  entrar ! 

Prova-se,  portanto,  que  na  idade  da  pedra  já  havia  homens 
em  Schaffhausen,  que  comiam  lebres  e  muitas  cousas  mais:  logo, 
o  homem  da  idade  do  bronze  não  foi  o  primeiro  habitante  da 
Suissa. 

E  ainda  se  dá  noticia  de  outra  gente,  a  da  estação  de  Lay- 
bach,  gente,  que  só  se  recommendou  á  posteridade  pelos  seus 
instrumentos  de  pedra  lascada  e  por  outros  de  pedra  polida,  em 
que  figura  um  bom  machado  de  serpentina,  e  outro  de  rocha  ba- 
sáltica. 

Os  sábios,  em  vista  de  taes  característicos,  não  ousaram  in- 
screver os  extinctos  habitantes  de  Laybach  nas  idades  metalli- 
cas.  Se  me  dão  pois  licença,  que  também  assim  o  julgue,  mais 
esta  prova  aqui  fica,  de  que  o  homem  da  idade  do  bronze  teve 
quem  o  precedesse  na  grande  região  das  palafittas. 

Ha  mais,  muito  mais  ainda.  Volto,  porém,  a  um  assumpto 
em  que  já  toquei,  e  me  fez  scismar,  confesso!  Não  lhe  posso  re- 
sistir, embora  me  chamem  repetido  e  até  fastidioso. 

Refiro-me  aos  craneos  e  esqueletos  d'aquella  região  lacustre, 
porque,  como  acabo  de  dizer,  fizeram-me  scismar,  e  não  era  caso 
para  menos.  Vou  fallar  d'elles  ainda  uma  vez,  comquanlo  o  me- 
lhor fique  por  dizer,  como  certamente  fica!  São  mais  umas  pa- 
lavras. 

Disse  eu,  partindo  do  principio,  ou,  antes,  da  conclusão  dos 
que  pretendem  ter  sido  a  Suissa  originariamente  povoada  na 
idade  do  bronze  pelos  constructores  das  palafittas,  que  aquellas 
relíquias  etimológicas,  se  pertenciam  a  esse  tempo,  só  por  um 
desastre  fatalissimo  poderiam  ainda  hoje  existir. 

Que  gente  seria  pois  essa,  que  tão  milagrosamente  escapou 
ao  brazeiro  fumegante  dos  fundidores  do  bronze? 

Do  inventario  osteologico  consta  que  todos  os  craneos  eram 


133 

rigorosamente  dolichocephalos,  e  com  grande  saliência  no  occipi- 
tal. Não  se  percam  de  vista  estes  dois  factos ! 

Todos  sabem  hoje,  que  o  Índice  cephalico  dolicocephalo,  ve- 
rificado em  craneos  prehistoricos,  representa  o  typo  elhnico,  que 
desde  os  tempos  paleolithicos  mais  antigos  tinha  vivido  na  Eu- 
ropa, typo  que  no  período  neolithico  apparece  representado  pelos 
troglodytas  de  Cro-Magnon,  assim  como  por  outros  muitos,  e  que 
nunca  totalmente  se  perdeu,  ou  desfigurou  a  ponto  de  que  não 
se  ache  ainda  hoje  nas  sociedades  viventes. 

Com  a  pedra  polida  appareceu  o  typo  brachycephalo,  cujo 
cruzamento  com  o  que  já  existia,  produziu  variedades,  que  Paulo 
Broca  teve  de  repartir  em  grupos  distinctos,  designando  para 
cada  grupo  os  limites  cephalicos  correspondentes. 

Portanto,  estando  já  provado  que  a  Suissa  teve  habitantes 
na  idade  da  pedra,  com  que  acertado  fundamento  podem  ser 
excluídos  da  raça  primordial  os  craneos  helvéticos  d'aquellas 
turfeiras  ou  estações  lacustres,  para  se  apresentarem  como  ge- 
nuínos representantes  da  idade  do  bronze? 

O  typo  dolichocephalo  primitivo  actuou  com  tal  tenacidade, 
que  em  algumas  zonas  geographicas  se  conservou  refractário  ao 
cruzamento  com  a  raça  brachycephala,  que  só  appareceu  na  Eu- 
ropa no  período  neolithico,  e  tanto  assim  é,  que  nos  monumentos 
neolithicos  do  Algarve,  sem  ser  preciso  procural-os  mais  longe, 
o  typo  dolichocephalo  tem  um  predomínio  absoluto. 

Insisto.  Não  sei  em  que  situação  e  em  que  condições  de  con- 
sociabilidade  com  outros  critérios  foram  encontrados  os  craneos, 
todos  dolichocephalos,  nas  estações  lacustres  da  Suissa.  Das  nar- 
rativas escriptas  não  se  conclue  cousa  alguma. 

Entretanto  dá-se  um  facto  de  observação,  já  muito  commen- 
tado,  que  parece  mostrar  não  serem  as  palafittas  suissas  absolu- 
tamente synchronicas,  ao  passo  que  muitas  estão,  pelo  inventario 
dos  seus  conteúdos,  perfeitamente  consideradas  como  pertencen- 
tes á  idade  do  bronze,  ou  como  amplamente  habitadas  nesse 
tempo. 

Em  nenhuma  das  palafittas  capituladas  como  sendo  da  idade 


134 

do  bronze  na  dilatada  zona  que  circumda  os  Alpes,  se  tem  ainda 
achado  renovação  de  estacaria;  o  que  bem  persuade  que  a  sua 
conservação  acompanhou  todo  o  período  d'aquellas  habitações  in- 
suladas, isto  é,  pôde  conservar-se  durante  toda  a  idade  do  bronze. 

Não  suecedeu,  porém,  assim  na  celebre  estação  de  Roben- 
hausen,  onde  a  primitiva  estacaria  teve  duas  renovações  sobre- 
postas e  separadas  por  outros  tantos  depósitos  de  avolumadas 
turfeiras.  Este  facto  é  muito  significativo,  embora  se  tenha  pre- 
tendido attribuir  ás  condições  de  um  meio  eminentemente  des- 
truidor; o  que  não  passa  de  ser  uma  concepção  arrojadamente 
hypothetica  e  por  emquanto  problemática,  por  isso  que  tae$  con- 
dições de  destruição  não  estão  demonstradas. 

Se  a  conjectura  nestes  casos  é  admissível,  porque  não  po- 
derá com  preferencia  explicar-se  a  necessidade  de  renovar  mais 
duas  vezes  a  primeira  estacaria,  attribuindo-se  áquella  extincta 
palafitta  uma  antiguidade  muito  maior  do  que  a  de  toda  a  idade 
do  bronze,  tanto  mais  sendo  aquelle  deposito  o  prototypo  das 
estações  neolilhicas? 

Quaes  são  as  provas  que  a  estação  de  Robenhausen  tem  dado 
de  pertencer  á  idade  do  bronze  ? 

Que  razões  fundamentaes  excluem  o  homem  neolithico  de  ter 
podido  ser  o  primeiro  construetor  de  habitações  lacustres?  Quem 
primeiro  do  que  elle,  teria  necessidade  de  procurar  a  sua  segu- 
rança no  isolamento  dos  lagos,  logo  que  invadiu  territórios  em 
que  achou  outra  raça  diversa,  e  porventura  o  mais  perigoso  an- 
tagonismo? 

Tendo-se  em  vista  o  facto  da  renovação  da  estacaria  numa 
estação  lacustre  capituladamente  da  ultima  idade  da  pedra,  toda 
a  conclusão  de  prioridade  attribuida  a  idade  do  bronze  é  con- 
traproducente e  sáe  das  regras  preceituadas  pela  critica  archeo- 
logica. 

Terminarei  este  assumpto  com  mais  uma  conjectura,  que  pa- 
rece estar  pedindo  cabimento  n'este  remate.  Venham  pela  ultima 
vez  a  uma  vistoria  os  craneos,  que  escaparam  á  fogueira  impla- 
cável d'esses  homens,  que  reduziam  a  cinzas  e  carvões  as  carnes 


135 

e  os  ossos  dos  seus  similhantes.  Já  se  sabe  que  são  dolichocepha- 
los,  e  tão  puros  como  os  que  povoaram  a  Europa  desde  os  pri- 
mitivos tempos  quaternários,  para  que  não  seja  mister  forçada- 
mente filial-os  na  raça  da  idade  do  bronze,  de  que  todavia  não 
deve  haver  documentos  osteologicos,  affirmando-se  que  n'essa 
idade  eram  queimados  todos  os  cadáveres. 

Como,  porém,  explicar  a  grande  saliência  occipital,  que  em 
todos  aquelles  craneos  é  uniforme?  Ninguém  affirmará  que  seja 
um  característico  craneano  da  raça  dolichocepbala.  E,  sem  duvida, 
uma  deformação  adquirida  no  exercicio  de  um  trabalho,  em  que 
a  cabeça  tinha  de  soffrer  a  pressão  de  pesados  materiaes  de 
transporte,  como  bem  podiam  ter  sido  os  troncos  das  arvores, 
cortados  nas  florestas  para  servirem  de  esteios  ás  habitações  la- 
custres e  de  jangadas  para  o  encravamento  dos  tanchões,  que  em 
algumas  palafittas  eram  contados  por  dezenas  de  milhares. 

E  é  o  mesmo  característico  de  muitos  craneos,  que  desco- 
bri nas  minas  de  algumas  granjas  romanas,  ou  colónias  agrí- 
colas, villee,  cujos  serviçaes,  reduzidos  ás  condições  de  escra- 
vos, eram  obrigados  a  todos  os  trabalhos  violentos;  pois,  em 
regra  geral,  não  estando  ainda  ossificadas  as  suturas  do  craneo 
durante  a  idade  vigorosa  do  homem,  que  tem  por  habito  carregar 
á  cabeça,  a  pressão  exercida  sobre  a  crista  temporal  promove 
um  abatimento,  de  que  resulta  a  saliência,  por  vezes  muito  proe- 
minente, do  osso  occipital. 

Todo  este  conjuncto  de  circumstancias  me  permitte  pois  pre- 
sumir, que  o  homem  neolithico  foi  na  Europa  o  primitivo  con- 
structor  e  o  primeiro  habitante  de  palafittas,  assim  como  em  seu 
competente  logar  mostrarei,  que  o  culto  consagrado  á  lua  já  tinha 
sectários  na  ultima  idade  da  pedra.  Aqui  n'esta  modesta  cban- 
cellaria  não  ha  duvida  em  se  lhe  passar  carta  de  engenheiro  hy- 
draulico,  e  mais  adiante  se  verá,  que  era  muito  mais  do  que  isso, 
porque  também  foi  architecto,  grandemente  industrial  e  artista. 

São,  com  effeito,  admiráveis  os  commettimentos  que  o  homem 
neolithico  poz  por  obra !  Accusam-no  de  não  ter  sido  artista, 
como  foram  os  dolichocephalos  dos  últimos  tempos  geológicos, 


130 

que  se  entrelinham  em  gravar  sobre  ossos  e  pedras  os  indiví- 
duos mais  typicos  da  fauna  e  da  flora  dos  seus  dias;  mas  não  é 
positivamente  verdadeira  csia  aceusação.  Também  foi  gravador. 
Em  seu  competente  logar  mostrarei  as  obras  que  elle  traçou  com 
um  simples  buril  de  silex.  Entretanto,  para  se  formar  approxi- 
mada  idéa  do  estado  do  seu  progresso,  é  mister  consideral-o  es- 
sencialmente industrial. 

A  agricultura  foi  uma  das  suas  oceupações.  Revolvendo  a 
terra  com  esgalhos  de  veado  de  certo  modo  preparados,  semeava 
e  colhia  diversos  trigos  e  cevadas,  e  cultivava  também  o  linho, 
não  o  Linum  usitatissimum,  que  ao  apontar  a  epocha  da  fruetifi- 
cação  alegra  primeiramente  os  campos  com  suas  bellas  corollas 
azuladas,  mas  um  outro  linho,  o  Linum  angustifolium,  planta  in- 
dígena de  vistosas  flores  amarellas,  que  em  todo  este  paiz  e  n'ou- 
tros  da  Europa  é  vulgarissima.  O  linho  de  folhas  estreitas,  o  es- 
parto (Stipa  tenacíssima),  os  filamentos  que  se  tiravam  da  casca 
das  tílias  (Tilia  grandiflora  e  Tilia  parvifolia) ,  assim  como  outros 
vegetaes  fibrosos,  aproveitava  o  homem  para  fazer  vários  tecidos, 
cordéis  e  cordas.  Conseguindo  recolher  em  seus  graneis  as  espi- 
gas do  trigo  e  da  cevada,  onde  também  accumulava  outros  fru- 
ctos,  que  a  natureza  espontaneamente  lhe  offerecia,  taes  como 
avellãs  (Corylus  avellana),  glandes  de  sobreiro  (Quer cus  robur), 
pinhões  bravos  (Pinus  sylvestris),  muitos  dos  géneros  Pyrus,  Pru- 
nus  e  Cerasus,  assim  como  outros  diversos.  Os  que  obrigavam  a 
maior  trabalho,  eram  os  cereaes  até  serem  transformados  numa 
espécie  de  pão  ázymo,  achatado,  de  forma  circular  e  do  diâmetro 
de  uns  10  centímetros,  que  se  cozia,  ou  antes  assava  sobre  calhaus 
levados  a  uma  alta  temperatura  pela  acção  do  fogo,  e  que  por 
vezes  lhe  deixavam  na  soleira  a  impressão  da  sua  convexidade. 

Para  moer  o  trigo  e  a  cevada,  havia  pedras  planas  que  se 
ajustavam  pela  superfície,  e  outras  concavas  para  não  deixarem 
escapar  os  grãos  ao  triturador  e  ao  pilão  de  moagem.  D'estas 
pedras  encontrei  muitas  no  Algarve,  pela  maior  parte  de  calcareo 
conchilifero  e  da  foyaite  de  Monchique,  as  quaes  se  podem  ver 
nas  collecções,  que  deixei  depositadas  no  museu  que  fundei  em 


137 

1880,  assim  como  nas  que  posteriormente  lenho  feito.  Este  pro- 
cesso rudimentar  era  porém  muito  imperfeito,  e  por  isso  alguns 
fragmentos  de  pão,  achados  cm  varias  estações,  manifestaram 
grãos  ainda  inteiros. 

Assim,  pois,  esse  tão  grosseiro  alimento,  imposto  á  mastica- 
ção,  seria  um  dos  que  contribuíram  para  o  arrazamento,  que  é 
typico  nas  dentições  d'aquelle  período  da  existência  humana.  En- 
tretanto, para  se  chegar  a  este  resultado  pratico,  foi  mister  instau- 
rar diversas  industrias.  O  moleiro,  o  padeiro  e  o  forneiro,  quando 
queiram  procurar  a  origem  das  suas  profissões,  achal-a-hão 
n'aquelles  processos  de  inexcedivel  rudeza,  que  então  constituíam 
invenções  da  mais  subida  utilidade. 

O  homem  neolithico,  a  quem  sem  fundamento  plausível  se 
chegou  a  attribuir  o  vicio  da  anthropophagia,  desenvolveu  extra- 
ordinária actividade  em  procurar  todos  os  possíveis  meios  de  ali- 
mentação. A  grande  quantidade  de  ossos  de  vários  animaes,  que 
nas  cavernas  e  n'outros  logares  se  tem  achado  accumulados, 
mostra  que  o  boi,  o  veado,  o  cavallo,  o  javali,  o  carneiro,  a  ca- 
bra, o  coelho  e  as  aves  forneciam  em  grande  parte  os  mais  habi- 
tuaes , alimentos.  E  não  era  elle  somente  agricultor  e  caçador. 
Não  lhe  escaparia  porventura  a  industria  da  pesca;  pois  appare- 
cem  uns  instrumentos  de  armadura  de  veado,  similhantes  a  ou- 
tros dos  últimos  tempos  geológicos,  feitos  da  matéria  córnea  do 
rangifer,  farpados  num  ou  em  dois  lados,  á  feição  de  barbas  de 
anzol,  que,  não  terminando  em  ponta,  parece  não  terem  sido  har- 
pões  de  arremeço,  mas  simplesmente  instrumentos  de  pesca. 
Dentes  de  peixe  achei  eu  no  deposito  de  Aljezur.  Além  d'isto,  o 
que  não  soffre  duvida  alguma  é  que  os  molluscos  maritimos,  flu- 
viaes  e  terrestres  eram  procurados  então  com  activa  diligencia; 
pois  tenho  achado  no  Algarve  amontoamentos  de  varias  conchas 
perto  de  alguns  depósitos  mortuários  e  mesmo  no  interior  das 
cryptas  e  arredores  de  vários  dolmem  cobertos. 

Na  Dinamarca,  na  Irlanda,  na  Suécia,  na  França,  na  Sarde- 
nha, e  até  no  Japão  e  na  America,  são  frequentes  os  grandes  de- 
pósitos de  conchas  nas  praias  do  litoral  maritimo  e  nas  margens 


Í38 

de  alguns  rios.  A  esses  depósitos,  em  que  se  acham  promiscua- 
mente  cinzas,  carvões,  ossos  de  animaes,  instrumentos  grosseiros 
de  silex  c  fragmentos  de  louças,  chamaram  os  dinamarquezes 
Kjoekkenmoeddings,  que  quer  dizer  despojos  ou  restos  de  refeições. 
Em  Portugal  também  foram  verificados  em  Muge,  sobre  a  mar- 
gem esquerda  do  Tejo,  e  no  cabeço  da  Arruda1,  pontos  um  tanto 
mais  ribatejanos  que  marítimos,  mas  contendo  enterramentos,  do 
mesmo  modo  que  os  sambaquis  do  Brazil,  em  que  abunda  o  gé- 
nero Ostrea,  e  que  geralmente  estão  dispostos  no  alinhamento 
das  praias. 

No  Algarve,  as  conchas  por  mim  colligidas  nos  dolmens  co- 
bertos são  dos  géneros  Triton,  Purpura,  Murex,  Cassis,  Trochus, 
Patella,  Haliotis,  Lutraria,  Vénus ,  Pullastra,  Donax,  Carditim, 
Ostrea,  Mytilus,  Pectuncidus,  juntamente  com  os  molluscos  terres- 
tres Helix  adspersa,  Helix  láctea,  Helix  nemoralis,  Helix  pisa- 
ria, etc. 

Já  se  vê  portanto,  que  os  molluscos  contribuíam  amplamente 
para  as  necessidades  da  alimentação. 

A  domesticação  da  vacca,  da  cabra  e  da  ovelha  produziu 
outros  alimentos,  que  bem  parece  terem  sido  utilisados.  Não  só 
o  leite  puro  seria  aproveitado,  como  com  elle  se  preparariam 
coalhadas  para  serem  comidas  em  fresco,  ou  curadas  ao  ar  para 
produzirem  o  queijo,  que  mui  provavelmente  se  guardaria  entre 
as  provisões  de  reserva.  Para  estas  preparações  seriam  porven- 
tura destinados  uns  largos  pratos  de  barro  de  bordos  altos  e 
fundo  ligeiramente  concavo,  todos  furados  á  feição  de  crivo,  em 
que  o  leite  coagulado  daria  escoamento  aos  soros,  podendo  tam- 
bém presumir- se  que  taes  vasilhas,  similhantes  aos  modernos 
passadores  de  uso  commum,  cujos  fragmentos  tenho  encontrado 
em  diversos  dolmens  cobertos,  servissem  ainda  para  a  fabricação 
de  uma  bebida  fermentada,  que  se  julga  ter-se  feito  com  fram- 
boezas  (Rubus  idceus),  amoras  de  silva  (Rubus  fruticosus)  e  com 


'  Estão  magistralmente  descriptos  pelo  sr.  dr.  Pereira  da  Costa  n'uma  importante 
memoria  intitulada  Da  existência  do  homem  em  epochas  remotas  no  valle  do  Tejo  — 1865. 


139 

outros  íructos,  cujas  grainhas  e  resíduos,  formando  empastamen- 
tos compactos,  se  têem  achado  em  estações  neolithicas. 

Já  me  referi  a  um  delicado  vaso  de  calcareo  branco  fino* 
cujos  fragmentos  achei  no  dolmen  de  Alcalá,  com  orifícios  junto 
ao  bordo  e  alguns  no  bojo,  mostrando  assim  que  devera  estar 
suspenso  e  dar  passagem  a  algum  liquido.  Reunidos  os  fragmen- 
tos, deixaram  approximadamente  calcular  o  diâmetro  interno  em 
0m,116,  a  altura  do  eixo  vertical  em  0m,60  e  a  espessura  em 
0m,004.  A  ter-se  achado  inteiro,  deveria  considerar-se  como 
sendo  um  dos  artefactos  de  mais  difficil  e  apurado  lavor  d'aquelles 
tempos  e  que  só  seria  empregado  em  usos  mais  reservados.  Ou- 
tros artefactos  de  madeira  de  pinho  extrahidos  das  palafittas  são 
atlribuidos  a  preparação  de  lacticínios.  Emfim,  dispondo  de  tan- 
tos meios  de  alimentação,  o  homem  da  ultima  idade  da  pedra 
não  precisava  cevar  o  seu  já  bem  soccorrido  appetite  no  repu- 
gnantíssimo vicio  da  anthropophagia,  inteiramente  contrario  ás 
crenças  que  lhe  fortaleciam  o  espirito  e  ás  praticas  de  veneração 
e  respeito  com  que  honrava  as  relíquias  mortaes  dos  seus  simi- 
Ihantes.  O  seu  grau  de  [civilisação  era  já  então  muito  elevado, 
para  não  poder  descer  á  brutal  rudeza  das  míseras  tribus,  que 
ainda  hoje,  por  uma  deplorável  aberração  do  próprio  instincto 
humano,  mutuamente  se  devoram,  ficando  muito  abaixo  dos  mais 
monstruosos  irracionaes. 

O  homem  neolithico  pode  apontar-se  como  tendo  sido  o 
grande  instaurador  da  vida  laboriosa.  Não  conhecendo  os  metaes, 
a  pedra  era,  principalmente,  a  matéria  prima  de  que  se  servia 
para  fabricar  instrumentos  de  trabalho  e  armas  de  guerra.  Para 
estas  manufacturas  tinha  o  bom  tacto  de  conhecer  as  rochas,  que 
devia  preferir.  O  silex,  já  então  tradicional,  por  ser  a  pedra  pri- 
vilegiada de  que  se  serviram  todas  as  gerações  precedentes,  era 
avidamente  procurado,  mas  nem  sempre  se  encontrava  á  super- 
fície do  solo.  Nenhuma  rocha,  com  excepção  da  obsidiana,  podia 
suppril-o  nas  suas  principaes  applicações,  e  portanto  o  homem, 
que  a  todos  os  trabalhos  se  arrojava  com  animo  destemido,  em- 
prehendeu  uma  nova  industria,  a  industria  do  mineiro,  para 


140 

explorar  as  formações  do  silex  no  âmago  da  terra,  guiado  talvez 
por  descobrimentos,  que  já  tivesse  fortuitamente  feito  em  taes 
condições  quando  excavava  grutas  e  habitações  subterrâneas  para 
seu  abrigo. 

O  explorador,  munido  de  instrumentos  de  pedra,  como  se- 
riam os  machados  e  enxós,  e  de  esgalhos  de  veado,  de  que  tam- 
bém se  servia  nos  trabalhos  agrícolas,  abria  poços  mais  ou  me- 
nos profundos  e  galerias  adjacentes  até  achar  o  seu  desejado 
thesouro.  Principalmente  na  Inglaterra  e  na  Bélgica,  hão  sido 
descobertas  muitas  d'essas  minas,  cujos  característicos  de  explo- 
ração neolithica  são  affirmados  pela  presença  de  louças  próprias 
daquelle  período,  associadas  a  ossos  de  animaes  e  a  instrumen- 
tos de  trabalho. 

Custa  a  conceber  como  se  chegou  a  abrir  poços  até  13  me- 
tros de  profundidade  sobre  7  a  20  de  diâmetro,  e  como  poderam 
ser  extrahidas  as  terras  que  enchiam  aquelles  espaços ! 

Destacadas  as  massas  de  silex  á  força  de  choques  de  percus- 
são, muitos  instrumentos  saíam  logo  esboçados  da  mina;  mas, 
em  geral,  os  grandes  núcleos  eram  transportados  para  logares 
próximos  de  boas  nascentes  de  agua,  ou  marginaes  de  rios  e  ri- 
beiras, e  alli  se  fixavam  as  officinas  dos  manipuladores,  sendo 
mui  provável  que  nellas  residissem  sob  alguns  abrigos  de.con- 
strucção.  São  numerosas  essas  officinas  ou  estações  de  fabricação 
de  instrumentos  de  trabalho  e  de  armas  de  guerra  já  descobertas 
em  diversas  regiões. 

Na  Hungria,  onde  mais  abundam  os  jazigos  de  obsidiana,  era 
esta  espécie  de  vidro  vulcânico  a  matéria  prima  que  substituía  o 
silex  para  a  fabricação  de  facas,  de  laminas  cortantes,  de  pontas 
de  frecha  e  de  outros  instrumentos  diversos,  entre  os  quaes  se 
toem  achado  em  muitas  das  suas  já  reconhecidas  officinas,  obje- 
ctos de  uma  fabricação  primorosa,  com  que  os  sábios  d'aquella 
nação  têem  enriquecido  os  seus  preciosos  museus  *. 

No  Algarve,  talvez  em  razão  da  rapidez  com  que  me  cumpria 


A  Hungria  era  1875  já  tinha  dezoito  museus. 


141 

fazer  o  reconhecimento  das  antiguidades  locaes  para  as  indicar 
na  carta  archeologica,  nâo  cheguei  a  descobrir  officinas  de  fabri- 
cação de  instrumentos  de  pedra  propriamente  ditas ;  mas  tenho 
inteira  certeza  de  que  as  houve  e  que  podem  ainda  ser  desco- 
bertas, porque  em  diversos  Jogares  achei  instrumentos  esboçados, 
como  adiante  mostrarei,  e  além  d'isto  devo  presumir,  que  uma 
grande  parte  dos  que  colligi,  pertencendo  a  diversas  rochas  lo- 
caes, alli  mesmo  seriam  manufacturados,  não  querendo  assim 
affirmar  que  entre  elles  não  haja  alguns  importados  de  diversas 
regiões,  como  com  effeito  julgo  haver. 

A  população  neolithica,  que  senhoreou  a  zona  meridional 
d'este  paiz,  não  pode  ser  caracterisada  com  todos  os  critérios 
typicos  d'esse  período,  verificados  em  diversas  regiões  geogra- 
phicas,  ou  porque  não  foram  usados  nesta  extrema  terra  do 
occidente,  ou  porque  a  minha  inaptidão  não  me  permittiu  des- 
cobril-os. 

Não  trato,  pois,  aqui  de  enumerar  esses  critérios  geraes, 
concernentes  á  ultima  idade  da  pedra,  deduzidos  dos  descobri- 
mentos effeituados  nas  nações  europêas  e  mesmo  noutras  regiões 
do  globo.  O  meu  compromisso  é  sobremodo  restricto;  não  passa 
para  o  norte  da  cordilheira  de  montanhas,  que  divide  o  Algarve 
do  Alemtejo;  mas,  ainda  assim,  quanto  a  descobertas,  ver-se-ha 
que  o  Algarve  não  ficou  muito  áquem  das  regiões,  que  melhor 
exploradas  hão  sido  por  homens  de  superior  sabedoria,  com 
quem  todavia  não  posso  comparar  os  meus  minguados  recursos. 

Tal  é  a  riqueza  archeologica  d'este  solo  abençoado! 

Para  mostrar  o  progresso  da  vida  neolithica  neste  tracto  de 
terra,  chamado  actualmente  Algarve,  onde  a  etimologia,  que  se 
diz  ser  typica  d'esses  tempos  remotíssimos,  conseguiu  conservar 
o  seu  perfil,  bastar-me-ha  enumerar,  sobre  o  que  já  fica  expen- 
dido, o  resto  dos  seus  lavores,  tanto  mais  admiráveis,  porque 
partem,  já  se  vê,  de  uma  raça  inferior,  cujos  descendentes,  ape- 
sar dos  seus  craneos  dolichocephalos  e  dos  seus  índices  cephali- 
cos  pouco  acreditados  nos  arraiaes  da  sciencia,  foram  acompa- 
nhando o  progresso  das  civilisações  actuaes. 


142 


Em  vez  porém  de  enumerar  iodos  os  typos  da  industria 
neolithica,  parece-me  preferível  exemplificar  em  estampas  e  des- 
crever ordinalmente  os  que  descobri  nas  estações  dolmenico-tu- 
mulares  d'esta  região,  fazendo  ponto  de  partida  de  Aljezur. 


V 


SUMMARIO 

Os  monumentos.  —Antas  ou  dolmens  sob  iumuli  com  galerias  cobertas.  —  Sua  distribui- 
ção geographica.  —  Falta  que  faz  o  museu  archeologico  cio  Algarve,  reorganisado 
com  os  últimos  monumentos.  —  Estação  mortuária  de  Aljezur. —  Planta  e  perfis.— 
Descripção.  —  Habitações  subterrâneas  adjacentes.  —  Ossos  humanos  que  continha 
o  deposito.  — Escassos  característicos  paleontologicos. —  Rochas  utilisadas  em  toda 
a  região.— Instrumentos  e  utensílios  de  trabalho.— Armas  de  caça  e  de  guerra.— 
Placas  de  schisto  com  gravuras.  —  Amuletos,  contas  e  alfinetes  de  osso.  — Urnas 
funerárias  e  vasos  de  suspensão.  — Monte  Amarei! o.—  Dolmen  coberto  não  explo- 
rado.—Artefactos  alli  achados.  —  Vestígios  de  habitações  terrestres.  —  Carência  de 
explorações  entre  o  Monte  Amarello  e  Aljezur  e  entre  Aljezur  e  o  rio  Odeceixe.  — 
Serro  Grande.  —  Dolmen  coberto  destruído.—  0  que  ainda  manifestou.  — Alcalá.— 
Dolmen  coberto  sob  Iumuli.  —  Razões  por  que  a  planta  geral  da  necrópole  de  Al- 
calá  passa  a  ter  cabimento  no  tomo  11.  —  Planta  da  primeira  exploração.  —  Instru- 
mentos de  formas  inéditas. —  Estampas  figurando  os  caracteristicos  principaes.— 
Planta  e  productos  da  segunda  exploração.  — Graes  de  pedra  e  tintas  mineraes. — 
Vasos  crivados  de  orifícios.— Placa  de  schisto.  —  Contas  de  calaíte,  de  schisto  e 
serpentina.  — Varias  louças.  — Palmeirinha,  Cerca  Nova  e  outros  sitios  próximos 
com  muitos  instrumentos  neolithicos.  — Monte  Canellas,  mostrando  ser  sede  de 
vários  monumentos.— Instrumentos  de  pedra  alli  achados.— Monte  da  Rocha  (La- 
meira) com  um  dolmen  destruído.— Objectos  que  continha.  —  Serro  das  Pedras.— 
Dolmen  destruido.  —  Desenho  das  ruinas  e  dos  objectos  d'ellas  extrahidos.  —  Mo- 
numento da  Nora.— (Advertência  a  futuros  exploradores.)  —  Planta  e  perfil.— 
Descreve-se  o  monumento  e  o  que  continha. — Monumento  da  Marcella.— Planta.— 
Estado  dos  ossos.  —  Instrumentos  de  silex  e  de  outras  pedras.  —  Tintas  mine- 
raes.—Louças.— Cacella.— Monumento  descoberto  ao  norte  da  igreja.  —  Objectos 
d'elle  extrahidos.  —  Planta.  —  Estações  da  Torre  dos  Frades.  —  Como  foram  desco- 
bertas e  o  que  continham.  — Dois  craneos  dolichocephalos  inteiros. —Cerâmica.— 
Vários  caracteristicos. —Castro  Marim.  —  Dolmen  coberto,  destruído.  — Seus  cara- 
cterísticos.—  Serro  do  Castello.—  Monumento  aberto,  parcialmente  destruído.— 
O  que  ainda  manifestou.—  Vaqueiros.  —  Instrumentos  de  pedra  alli  achados.  —  Con- 
siderações geraes. 

N'um  capitulo  anterior  mostrei  nâo  haver  antas  ou  dolmens  ap- 
parentes  no  território  do  Algarve,  mas  que  mui  presumptivamente 
devem  ter  existido  no  cabo  de  S.  Vicente,  em  Monchique  e  nos 
sitios  denominados  Ponta  do  Altar,  Antas  de  Albufeira,  e  Antas 
da  Luz,  perlo  de  Tavira. 


144 

O  sitio  das  Antas  de  Albufeira  nâo  vae,  porém,  marcado  na 
carta  paleoethnologica,  porque  só  depois  de  impressa  me  foi  in- 
dicado, como  já  preveni. 

Seguindo  a  mesma  ordem  geopraphica,  descreverei  agora  as 
estações  e  antas  ou  dolmens  sob  tumuli  com  galerias  cobertas,  que 
encontrei  em  Aljezur,  Monte  Amarello,  Serro  Grande,  Alcalá, 
Monte  Canellas,  Monte  da  Rocha,  Serro  da  Pedra,  Nora,  Mar- 
cella,  Cacella,  Torre  dos  Frades,  Castro  Marim  e  no  serro  do 
Castello. 

A  linha  que  passa  pelos  pontos  acima  designados  guarnece 
todo  o  litoral  marítimo  do  sul,  avança  para  o  norte  na  secção 
occidental  até  Aljezur,  e  na  oriental,  chegando  á  Torre  dos  Fra- 
des, segue  também  para  o  norte  até  o  serro  do  Castello  em  Al- 
mada do  Ouro,  approximadamente  no  parallelo  do  rio  Guadiana, 
imprimindo  nesta  zona  meridional  do  paiz  uma  typica  feição  es- 
pecialmente dolmenico-tumular. 

Foi  precisamente  a  este  resultado  pratico,  que  pretendi  che- 
gar, quando  propuz  ao  governo  uma  exploração  complementar 
para  o  preenchimento  das  lacunas  que  notei  haver  na  ethnogra- 
phia  neolithica  d'esta  região. 

Não  havia  então  conhecimento  das  importantíssimas  estações 
de  Aljezur  e  da  Torre  dos  Frades,  nem  das  que  ficaram  por  ex- 
plorar no  Monte  Amarello,  no  Monte  Canellas  e  junto  ao  novo 
ramal  de  Cacella. 

Faltavam,  pois,  as  extremidades  da  linha  e  estes  últimos  três 
pontos  intermédios,  como  faltam  ainda  numerosas  estações,  que 
certamente  haveria  descoberto,  se  estes  trabalhos  não  tivessem 
sempre  andado  subordinados  ao  entorpecimento  dos  prasos  irre- 
vogáveis. 

Alguma  cousa,  emfim,  consegui,  embora  pouco,  relativamente 
ao  muito  a  que  podéra  ter  chegado,  se  na  occasião  em  que  se 
dispendiam  na  estrada  de  Tavira  para  a  freguezia  serrana  de 
Martim  Longo  uns  20:000^000  réis  por  mez,  para  depois 
se  abandonar  a  menos  de  meia  distancia,  se  tivesse  deduzido 
uma  decima  parte  d^essa  verba  para  que  a  exploração  archeolo- 


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115 

gica  do  Algarve,  se  fizesse  com  mais  delido  exame  c  maior  lar- 
gueza. 

Ainda  assim,  com  esse  pouco  já  feito,  pode  formar-se  appro- 
ximada  idéa  do  que  fora  esta  derradeira  parcella  geographica  do 
continente  europeu  no  immenso  período  que  abrange  a  ultima 
idade  da  pedra,  a  partir  dos  tempos  geológicos  para  os  tempos 
actuaeSj  no  seu  período  de  transição  para  a  primeira  idade  dos  me- 
taes,  na  idade  do  bronze  e  na  primeira  idade  do  (erro;  o  que  sub- 
sequentemente representava  na  transição  dos  tempos  prehistoricos 
para  os  tempos  históricos,  e  finalmente  quaes  foram  e  a  que  ponto 
de  civilisação  cbegaram  as  sociedades  históricas,  que  dominaram 
este  território  até  á  instituição  da  nacionalidade  portugueza. 

Começarei  portanto  pela  ordem  que  segui  na  carta  paleo- 
ethnologica,  sentindo  porém,  que  o  museu  archeologico  do  Al- 
garve, especialmente  por  mim  organisado  para  a  comprovação 
directa  da  mesma  carta,  esteja  ha  tantos  annos  (desde  agosto  de 
1881!)  tão  deploravelmente  escondido  e  inutilisado  nas  arreca- 
dações da  academia  de  bellas  artes*,  em  vez  de  se  manter  e  fa- 
zer-se  prosperar  para  poder  ser  útil  á  sciencia  e  honroso  para  o 
paiz,  porque  rigorosamente  archeologico  não  ha  outro. 

Aljezur.  —  A  estação  de  Aljezur  servirá  de  ponto  de  partida 
para  todas  as  mais  do  Algarve  e  de  ligação  com  as  estações  syn- 
chronicas  já  conhecidas  ao  norte  e  nordeste  daquella  villa  em 
outras  províncias  do  reino.  A  sua  manifestação  foi  verdadeira- 
mente casual,  mas  de  grandíssima  importância.  Bem  a  presenti 
eu  quando  á  minha  mão  chegaram  vários  instrumentos  de  pedra 
alli  achados,  assim  como  presumo  estarem  ainda  por  descobrir 
naquelle  tracto  de  terra,  ao  norte,  leste  e  ao  sul,  outras  estações 
não  menos  importantes,  que  não  ousei  indicar  na  carta  por  não 
es  lar  auetorisado  a  compro val-as. 

No  flanco  direito,  e  a  curta  distancia  da  igreja  da  Senhora 


1  Um  dia  se  arrependerão;  mas  quando  talvez  já  não  haja  quem  saiba  reorganisar 
esse  museu,  que  tudo  me  deve,  porque  só  eu  conheço  as  condições  em  que  achei  os 
seus  padrões  monumentaes. 
10 


146 

da  Alva,  mandou  o  sr.  Josó  da  Cosia  Serrão,  administrador  do 
concelho  de  Aljezur,  meu  antigo  amigo  e  correspondente,  fazer 
arrancamento  de  material  para  uma  obra  que  tinha  em  constru- 
cção.  Notando  que  muitas  pedras  excediam  o  plano  do  terreno 
adjacente  áquelle  templo,  e  desejando  ao  mesmo  tempo  deixal-o 
com  melhor  nivelamento,  preferiu  tirar  primeiramente  as  mais 
salientes,  e  foi  então  que  verificou  pertencerem  a  uma  construcção 
subterrânea,  que  logo  tratou  de  examinar,  achando  um  deposito 
com  muitos  ossos  humanos,  numerosos  instrumentos  de  pedra  e 
outros  objectos,  que  cuidadosamente  colligiu  e  mui  obsequiosa- 
mente me  remetteu  para  a  minha  collecção  de  antiguidades. 

Levei  ao  conhecimento  do  governo  o  descobrimento,  lem- 
brando a  conveniência  de  ser  aquelle  deposito  explorado  em 
devida  regra,  assim  como  indiquei  outros  logares  pelos  já  co- 
nhecidos característicos  que  os  recommendavam,  a  fim  de  se 
supprirem  varias  lacunas  em  que  laborava  a  carta  prehistorica  e 
a  obra  descriptiva  correspondente,  e  ordenada  a  exploração  com- 
plementar que  tinha  proposto,  uma  serie  de  valiosas  descobertas 
consegui  reunir  ás  que  antecedentemente  havia  feito. 

Quasi  em  frente  da  porta  lateral  que  a  igreja  matriz  da  Se- 
nhora da  Alva  aponta  para  o  norte,  fazendo  partir  uma  linha  de 
15  metros  do  angulo  extremo  da  primeira  pilastra,  ao  poente,  e 
outra  de  14  melros  do  angulo  extremo  da  que  lhe  fica  ao  na- 
scente, o  ponto  em  que  se  encontram  as  duas  linhas  marca  o  cen- 
tro de  um  deposito  mortuário  de  todo  o  ponto  singular  pela  no- 
vidade da  sua  excepcional  configuração.  Foi  este  deposito  aberto 
por  excavação  no  carbonífero  inferior,  que  constitue  a  formação 
geológica  dominante  ao  sul  da  margem  esquerda  do  rio  de  Alje- 
zur, sendo  apenas  a  curtos  espaços  interrompida  por  algumas 
afflorações  do  terciário  marino. 

Mostra  a  planta  da  excavação,  estampa  A,  fig.  a,  uma  figura 
irregular,  formada  por  seis  curvas  ligadas  entre  si  á  feição  de 
hemicyclos.  As  cordas  correspondentes  a  estas  curvas  variam 
desde  lm,70  a  2m,30,  variando  lambem  de  lm,05  a  lm,30  as 
perpendiculares  levantadas  ao  meio  d'essas  cordas,  que,  com  di- 


\\1 

versas  grandezas,  se  ligam,  fechando  um  espaço  polygonal  in- 
scripto  no  perímetro  geral.  Além  das  ditas  curvas,  ha  vestígios  de 
outras,  parecendo  terem  pertencido  a  duas  fileiras  de  arcos  de 
circulo,  que  seguiam  obliquamente  no  sentido  de  nór-noroeste. 

O  perfil,  ou  corte,  fig.  13,  indica,  porém,  que  a  excavação  foi 
ordenada  por  uma  serie  de  planos  horisontaes  com  diversas  lar- 
guras, dispostos  á  simiíhança  de  escada,  tendo  cada  um  0m,2Q 
de  altura  até  o  mais  inferior,  cuja  profundidade,  em  relação  ao 
mais  elevado,  é  de  lm,iO,  medindo  a  extensão  geral  da  linha, 
em  que  correm  os  planos  ainda  existentes,  9m,80. 

Não  ha  vestígios  de  galeria  de  entrada,  faltam  igualmente  os 
do  tecto  ou  cobertura  que  fechou  aquelle  espaço,  cm  que  vários 
diâmetros  se  cruzam  com  6  e  mais  metros  de  comprimento; 
não  ha,  emfim,  o  mínimo  indicio  appareníe  do  tumulus  ou  mon- 
tículo, que  necessariamente  existiu,  cobrindo  e  resguardando 
aquella  um  tanto  complicada  mansão,  consagrada  ao  abrigo  dos 
mortos;  o  que  todavia  bem  pode  explicar-se,  sabendo-se  que 
todos  os  terrenos  altos,  adjacentes  ao  plano  em  que  o  benemé- 
rito bispo  D.  Francisco  Gomes  de  Avellar  mandou  construir  a 
nova  igreja  de  Aljezur,  foram  cortados  e  nivelados  para  se  abri- 
rem arruamentos  destinados  ás  famílias,  que  na  villa  antiga  re- 
sidiam nos  sítios  mais  insalubres. 

Não  podia,  pois,  escapar  a  estação  tumuks,  que  a  tão  curta 
distancia  ficava  da  igreja,  dando-sc  ao  mesmo  tempo  a  circum- 
stancia  de  ter  sido  construída  a  denominada  Estalagem  da  igreja 
nova,  indicada  pela  planta  na  contiguidade  e  mesmo  sobre  uma 
parte  do  deposito  mortuário.  A  prova,  pois,  de  que  o  terreno  que 
circumdava  a  nova  matriz  era  mais  elevado  e  foi  abatido,  de- 
monstra-se  á  simples  vista,  observando-se  os  cortes  de  nove  co- 
vões exeavados  na  rocha  e  figurados  na  mesma  estampa  A,  que 
o  povo  geralmente  julga  terem  sido  celleiros  antigos,  mas  que 
podem  ter  primitivamente  servido  de  habitação,  entre  os  quaes 
alguns  achei  com  bem  poucos  centímetros  de  profundidade, 
quando  a  dos  outros,  indicados  na  carta  prehistorica,  medeia 
entro  lm,50  e  7  metros,  como  são  os  do  castello  de  Silves. 


148 

A  estação  mortuária  de  Aljezur  já  eslava  portanto  cortada  e 
desfigurada,  quando  em  1881  o  sr.  Costa  Serrão  a  mandou  ex- 
cavar;  mas,  pelas  informações  que  obtive  quando  alli  cheguei, 
presumo  que  os  dois  planos  inferiores  nunca  tinham  sido  invadi- 
dos, porém  simplesmente  entulhados  quando  se  nivelou  o  terreno 
para  a  construcção  da  igreja  e  de  varias  casas;  pois  foi  precisa- 
mente n'esses  planos,  que  o  sr.  Serrão  achou  os  numerosos  obje- 
ctos com  que  mui  obsequiosamente  engrandeceu  a  minha  colle- 
cção  de  antiguidades. 

Faltam  algumas  noticias  relativamente  ás  condições  de  col- 
locação  e  da  relação  em  que  estavam  os  ossos  humanos  com  os 
artefactos  que  os  acompanhavam.  Os  operários  confundiram  tudo, 
levando  a  sua  grosseira  bruteza  a  quebrarem  com  as  enxadas 
cinco  craneos  que  viram  encostados  ao  hemicyclo  marcado  na 
planta  com  a  letra  a,  e  a  espalharem  os  ossos,  que  dizem  ter 
visto  amontoados  em  frente  de  cada  craneo.  Sendo,  porém,  mi- 
nuciosamente inquiridos,  affirmam,  que  os  craneos  eram  muito  com- 
pridos e  descahidos  para  traz,  o  que  bem  deixa  presumir  que  per- 
tenciam a  indivíduos  da  velha  raça  dolichocephala,  alli  sepultados 
com  o  corpo  dobrado  pelas  articulações  dos  fémures,  apoiando  a 
cabeça  sobre  os  joelhos,  como  estava  em  muita  pratica  nos  dol- 
mens,  nos  cistos  e  noutras  sepulturas  da  ultima  idade  da  pedra. 
Era  pois  a  mesma  forma  de  enterramento  que  descreve  o  sr.  G. 
de  Mortillel,  dizendo: 

«Le  corps  y  était  déposé  aceroupi,  la  tête  inclinée  sur  les 
genoux  repliés. » l 

O  sr.  Costa  Serrão  não  explorou  completamente  aquelle  in- 
teressante deposito,  porque,  vendo  reduzidos  a  fragmentos  os 
craneos  que  pretendia  tirar  inteiros  para  me  offerecer,  sentiu-se 
desgostoso  e  mandou  entulhar  toda  a  exeavação,  receiando  novos 
estragos  antes  da  minha  chegada.  Coube-me,  pois,  a  exploração 
completa,  em  que  fui  muito  auxiliado  com  a  vigilância  e  assíduos 
cuidados  do  meu  intelligente  amigo  o  rev.d0  padre  Nunes  da  Glo- 


Le  Préhisloríque,  pag\  597. 


U9 

ria,  que  de  tudo  tomou  nota  nos  esboços  que  levantou  com  inex- 
cedivel  exactidão. 

Os  entulhos  foram  de  novo  tirados  c  escolhidos  por  uma  fi- 
leira de  mulheres  para  que  nada  escapasse. 

Gruparam-se  os  ossos  humanos  pela  maior  parte  já  destruí- 
dos, podendo  ainda  assim  calcular-se  não  representarem  menos 
de  trinta  pessoas.  Havia  poucos  ossos  de  animaes,  mas  entre 
elles  alguns  dentes  de  um  squaloide  terciário  extincto  do  género 
Carcharodon,  que  posteriormente  foram  também  observados  na 
grande  caverna  da  Sinceira,  que  vae  indicada  na  carta;  o  que 
leva  a  presumir,  que  não  deixaria  aquella  caverna  de  ser  fre- 
quentada pelos  indivíduos  que  associaram  aquelles  dentes,  que 
bem  podem  ter  servido  de  instrumentos  de  trabalho,  aos  outros 
objectos  que  possuíram  e  com  que  foram  sepultados. 

De  silex  descobri  ainda  algumas  pontas  de  frecha  e  uma  de 
lança,  algumas  facas  e  serras,  juntamente  com  dois  núcleos  de 
crystal  de  rocha.  Conservava-se  intacto  um  empilhamento  de  ma- 
chados polidos  de  schisto  amphibolico  junto  ao  hemicyclo  do 
plano  inferior,  marcado  na  planta  com  a  letra  a,  achando-se  alli 
também  três  esboços  preparados  para  machados,  dois  percutores, 
um  desgastador  de  grés  vermelho,  umas  cabeças  de  alfinetes  de 
osso,  uma  placa  de  schisto  com  gravuras  e  vários  pedaços  de 
louça  destruída. 

Tudo  isto,  porém,  era  muito  pouco  em  relação  aos  numerosos 
e  interessantes  objectos,  que  o  sr.  Costa  Serrão  já  me  havia  an- 
tecedentemente offerecido,  e  por  isso  vou  dividir  em  grupos  todo 
o  pecúlio  extrahido  d'aquelle  deposito  para  melhor  idéa  se  for- 
mar das  suas  especialidades. 

Ossos  humanos.  —  Não  me  foi  possível  recompor  um  único 
craneo  por  serem  numerosíssimos  e  de  pequenas  dimensões  os 
fragmentos  que  cheguei  a  reunir.  O  maior,  que  já  o  sr.  Serrão 
me  havia  remettido,  ainda  assim  não  permitte  seguras  conclu- 
sões: é  um  osso  frontal,  completamente  destacado  dos  outros 
ossos  pela  satura  fronto-parietal  até  o  ponto  bregmatico,  onde  a 


150 

sua  espessara  mede  0m,006.  Toda  a  região  supraciliar *,  abran- 
gendo a  glabella  e  o  ophryon,  é  mui  lo  proeminente,  ao  passo  que 
na  zona  immeclialamente  superior  chega  a  ser  quasi  nulla  a  sa- 
liência das  bossas  frontaes.  A  arcada  orbitaria,  em  melhor  estado 
de  conservação,  ainda  assim  não  attinge  a  sutura  fronto-malar 
externa  nem  o  dacryon,  apenas  permitte  poder  avaliar-se,  por 
approximação,  em  0m,036  o  seu  diâmetro  transversal.  Pode,  po- 
rém, determinar-se  o  diâmetro  frontal  minimo,  que  mede  0ni,094, 
tomado  entre  os  dois  pontos  mais  próximos  da  crista  temporal; 
mas  como  faltam  os  precisos  característicos  osteologicos  para  se 
saber  se  o  craneo  representa  um  individuo  do  sexo  masculino  ou 
feminino,  é  muito  insufficiente  esta  medida  para  poder  por  si  só 
denunciar  uma  raça  tvpica. 

Na  hypothese,  porém,  de  que  haja  pertencido  a  um  individuo 
do  sexo  masculino,  corresponderia  ao  typo  Tasmaniano  (94,0), 
approximadamente  ao  dos  Esquimaus  (94,1)  e  ao  dos  negros  de 
Africa  (94,2);  mas,  reunidos  os  fragmentos  maxillares  e  mandi- 
bulares,  todos  attestam  o  mais  perfeito  orthognatismo  nos  sepul- 
tados em  Aljezur;  a  perforação  nas  cavidades  inferiores  dos 
humeros,  a  configuração  approximadamente  platycnemica  mani- 
festada pela  secção  transversal  praticada  sobre  os  três  quintos 
superiores  das  tíbias,  e  o  desgastamento  dentário  atacando  os 
próprios  incisivos,  são  característicos  de  raças  brancas,  verifica- 
dos em  cavernas,  em  dolmens  e  neutros  jazigos  do  período  neo- 
lithico. 


1  Refere  o  sr.  G.  de  Mortillet,  que  na  collccção  de  craneos  de  criminosos,  que  figu- 
rou em  1878  em  Paris  na  exposição  de  seiencias  antliropologicas,  o  sr.  Bordier,  professor 
da  escola  de  anthropologia,  observou  caracteres  assaz  similhantes  aos  da  raça  de  Nean- 
dcrtlial,  sendo  em  todos  constante  o  grande  desenvolvimento  das  arcadas  supraci liares; 
o  que  o  levou  a  considerar  essa  raça  como  dominada  pela  violência  e  ferocidade  do 
caracter.  Se  assim  é,  os  sepultados  no  deposito  de  Aljezur  seriam  representantes  da 
mesma  raça,  porque  em  todos  os  fragmentos  de  arcadas  supraciliares  é  igualmente 
constante  a  proeminência,  a  partir  do  ponto  nazal. 

Felizmente,  quando  estive  em  Aljezur,  ou  já  não  havia  gente  de  tal  raça,  ou  a  ci- 
vilisação  local  tinha  conseguido  disfarçal-a;  pois  a  todos  os  indivíduos  fiquei  devedor 
de  mui  attencioso  recebimento.  Entretanto,  não  me  occorreu  n'aquclla  occasião  inve- 
stigar se  também  haveria  o  mesmo  característico  de  ferocidade  nos  que  esmagaram  os 
cinco  craneos  do  deposito 


151 

O  estado  dos  outros  ossos  nfio  pcrmitte  estudo  algum  pro- 
veitoso, a  meu  ver:  entretanto  estão  colligidos  muitíssimos  para 
a  seu  tempo  se  poderem  offerecer  ao  exame  das  pessoas  compe*- 
tentes.  Todas  as  duvidas,  emfim,  teriam  cessado,  se  não  tivessem 
sido  barbaramente  destruídos  os  cinco  craneos,  que  em  plena 
sociedade  mortuária,  guarneciam  um  dos  hemicyclos  da  estação 
de  Aljezur,  singularissima  construcção  que  constitue  um  estylo 
único. 

Paleointologia  animal.  —  É  pobríssimo  este  grupo.  No  depo- 
sito apenas  appareceram  alguns  dentes  de  um  individuo  do  gé- 
nero Equm,  que,  comtudo,  podem  ter  sido  alli  introduzidos  com 
os  entulhos,  mais  dois  pequenos  dentes  cuneiformes,  sendo  um 
d'elles  serrilhado  nas  extremidades  lateraes,  os  quaes  represento 
na  estampa  D,  sob  os  n.os  15  e  16,  e  alguns  de  Carcharodon  me- 
galodon,  reunidos  ao  empilhamento  dos  machados  de  pedra,  que 
já  indiquei  ter  exlrahido  do  logar  que  na  estampa  A  vae  mar- 
cado com  a  letra  a.  Estes  últimos  foram  sem  duvida  intencional- 
mente alli  depositados.  Na  referida  estampa  D,  sob  os  n.os  17  e 
18  figuro  os  maiores. 

Estes  dentes  do  grande  squaloide  extincto  perderam  quasi 
completamente  o  revestimento  rijissimo  do  seu  natural  esmalte  e 
com  elle  a  fina  denticulação,  que  guarnecia  todo  o  perímetro  dos 
bordos  lateraes  até  o  vértice ;  o  que  parece  resultante  de  uma 
decomposição,  que  se  operou  em  ramificações  tenuíssimas,  simi- 
lhando  o  caprichoso  lavor  das  infiltrações  dendriticas. 

Julgo  terem  sido  aquelles  dentes  empregados  como  instru- 
mentos de  trabalho.  Poderiam  ter  servido  de  serras  para  corta- 
rem ossos,  e  de  excellentes  polidores  para  artefactos  da  mesma 
substancia;  pois  ha  algumas  pedras  duras  que  não  lhes  riscam 
o  esmalte.  E  o  próprio  estado  em  que  os  achei,  que  me  permitte 
attribuir-lhes  aquellas  applicações. 

O  que  na  planta  D  vae  indicado  com  o  n.°  17  perdeu  com-' 
pletamente  todos  os  vestígios  da  denticulação  pela  acção  da  ser- 
ragem, assim  como  suecedeu  ao  do  n.°  18,  que  ainda  foi  apro- 


152 

veilado  para  polidor,  sendo-lhe  excavados  uns  enlalhos  lateraes 
para  mor  segurança  dos  dedos. 

Verifica-se  um  tanto  melhor  esta  applicação  noutros  exem- 
plares não  desenhados,  pertencentes  á  collecção,  em  que  o  es- 
malte da  face  convexa  mostra  ter  sido  gasto  na  espessura,  com- 
quanto  não  se  lhe  descubram  estrias,  como  certamente  não 
poderiam  produzil-as  quaesquer  artefactos  de  osso  que  fossem 
lustrados  por  um  tão  resistente  polidor.  O  dente  lateralmente 
serrilhado  '(fig.  16)  não  tem  o  mínimo  indicio  de  trabalho,  mas 
é  de  crer  que  estivesse  reservado  para  servir  de  serra l. 

Não  foi  somente  a  estação  de  Aljezur  que  forneceu  dentes 
de  Carcharodon,  os  dois  mais  perfeitos,  ambos  com  signaes  de 
trabalho,  que  achei  nos  dolmens  cobertos,  foram  extrahidos  do 
monumento  da  Marcella,  como  adiante  se  verá. 

Não  posso  estabelecer  como  principio  genérico,  que  foram 
os  dentes  serrilhados  de  Carcharodon,  que  suscitaram  a  idéa  de 
transformar  laminas  e  facas  de  silex  em  instrumentos  de  serra- 
gem, porque  algumas  regiões  haverá  em  que  laes  dentes  não 
existam  e  em  que  comtudo  sejam  frequentes  as  serras  de  silex. 
Entretanto,  em  referencia  ao  deposito  de  Aljezur,  dá-se  um  caso 
assaz  singular,  permittindo  suppor-se  que  as  serras  de  silex  mais 
perfeitas  tiveram  por  modelo  as  arestas  do  possante  dente  de 
Carcharodon.  Na  estampa  B,  a  fig.  n.°  7  representa  a  dupla  serra 
mais  perfeita  que  tenho  visto.  O  seu  denteado  fino  e  regular  imita 
perfeitamente  o  do  referido  dente. 


1  São  fosseis  todos  os  dentes  figurados  na  estampa  D,  sob  os  n.os  15  a  18. 
0  dente  n.°  15  é  do  género  Galeus,  o  n.°  16  do  género  Hemiprislis  (talvez  do  Ilemi- 
prislis  serra,  Agass.)  e  os  de  n.0s  17  e  18,  comquanto  á  primeira  vista  pareçam  do  género 
Carcharias,  é  preciso  advertir  que  perderam  a  sua  máxima  largura  natural  e  a  serri- 
lha lateral,  de  que  comtudo  conservam  algum  vestígio,  poderão  mais  provavelmente 
ser  do  género  Carcharodon.  Os  que,  sem  duvida,  representam  o  grande  squaloide  ter- 
ciário Carcharodon  megalodon!  Agass.,  são  os  dois  que  descobri  no  dolmen  coberto  do 
sitio  da  Nora,  pertencentes  ao  museu  do  Algarve,  onde  actualmente  jazem  escondidos 
com  o  próprio  museu.  Este  assumpto,  porém,  pôde  ser  mais  de  espaço  verificado,  con- 
frontando-se  os  ditos  dentes  com  as  estampas  da  grande  obra  de  Luiz  Agassiz,  Recher- 
ches  sur  les  poissons  fossiles  (1833  1843),  tomo  m,  pag.  247  e  304,  e  o  Alias,  para  o  gé- 
nero Hemiprislis,  tabeliã  27,  fig.  18  a  30;  para  o  género  Galeus,  tabeliã  E,  n.°  5;  para 
o  género  .Carcharias,  tabeliã  30,  fig.  3  a  7,  c  para  o  género  Carcharodon.  tomo  m- 
pag.  247,  e  Alias,  tabeliã  28. 


153 

Todas  as  pessoas,  que  por  curiosidade  tiverem  colligido 
dentes  de  Carcharodon  em  bom  estado  de  conservação,  podem 
experimentar  a  poderosa  acção  de  que  são  susceptíveis,  appli-» 
cando-os,  como  serras,  ao  osso,  ao  marfim  c  até  mesmo  a  pe- 
dras, que  não  sejam  de  excessiva  dureza.  Fiz  eu  a  experiência, 
serrando  com  um  d'esses  dentes  uma  lamina  de  mármore  granu- 
lar branco ;  notei  que  com  difficuldade  se  faria  assignalar  num 
dente  de  javali,  e  que  não  chega  a  riscar  o  rijíssimo  porphyro 
verde  antigo. 

Poderiam  pois  aquelles  dentes  ser  procurados  nos  terrenos 
terciários  marinos,  que  affloram  na  margem  direita  do  rio  de  Al- 
jezur no  contacto  do  carbonífero  inferior  e  do  terciário  lacustre 
superior,  ou  mesmo  nas  manchas  do  terciário  marino  ao  sul  do 
castello,  na  margem  opposta,  mas  com  maior  probabilidade  se- 
riam achados  na  próxima  caverna  da  Sinceira,  em  que  foram  vis- 
tos e  colligidos  alguns  pelo  sr.  Costa  Serrão;  e  porque  não  seria 
fácil  talvez  acharem-se  com  a  precisa  abundância  para  a  serra- 
gem dos  ossos,  a  que  o  homem  neolithico  dava  diversos  aprovei- 
tamentos, á  imitação  do  poderoso  denteado  que  os  guarnece, 
transformaria  elle  em  serras  utilíssimas,  por  meio  de  contínuos  e 
certeiros  choques  de  percussão,  ou  talvez  antes  pela  acção  da 
pressão,  algumas  laminas  e  facas  de  silex,  como  eu  mesmo  ainda 
achei  no  deposito  mortuário,  além  das  que  o  sr.  Serrão  me  tinha 
remettido,  as  quaes  indico  na  estampa  B,  sob  n.08  2  a  11,  e  com 
muita  particularidade  a  de  n.°  7,  acima  indicada. 

Ainda  é  possível  que  a  taes  dentes,  achados  na  estação  de 
Aljezur  e  no  dohnen  coberto  da  Nora,  se  ligasse  algum  precon- 
ceito de  virtude  maravilhosa;  pois  ha  indivíduos  que  ainda  actual- 
mente os  guardam  como  preservativo  contra  certas  doenças,  so- 
bretudo quando  a  mais  lamentável  enfermidade  de  taes  supersti- 
ciosos reside  no  entendimento. 

Como  exemplo  de  ossos  serrados  figuro  na  estampa  D,  com 
os  n.os  1  a  3,  umas  cabeças  de  alfinetes  de  osso,  que  serviriam 
de  ornato  e  para  prenderem  os  cabellos,  ao  que  parece  mui  bem 
cuidados  das  mulheres,  já  então  iniciadas  nos  segredos  da  galan- 


teria  e  da  scducção.  Aproveitando -se  ossos  medullares  delgados 
para  serem  atravessados  pelos  espigões,  tiveram  de  ser  serrados. 
O  de  n.°  2  era,  porém,  um  alfinete  solido,  de  uma  só  peça,  cuja 
cabeça  mostra  ter  tido  um  sulco  em  espiral,  produzido  pela  ser- 
ragem. 

Às  diversas  aspirações  a  que  o  homem  neolithico  inclinava  o 
seu  espirito  e  as  aptidões  já  mui  desenvolvidas  com  que  implan- 
tou uma  civilisação,  que  ficou  sendo  tão  característica,  que  não 
pode  confundir-se  com  o  apoucado  modo  de  existir  dos  que  o 
precederam  nos  tempos  geológicos,  obrigaram-n'o  a  prover-se  de 
instrumentos  de  trabalho.  Conheceu  elle  todas  as  formas  dos 
quatro  grupos  quaternários,  parecendo  ter  também  conhecido  as 
que  se  dão  como  typicas  do  mioceno  inferior  do  Thenay,  do  mio- 
ceno  superior  do  Cantai  e  do  post-mioceno  e  plioceno  do  valle 
do  Tejo;  pois  todas  essas  formas,  mais  ou  menos  modificadas, 
se  acham  no  inventario  geral  da  sua  industria  manufactora  da 
pedra  lascada  e  polida,  tanto  mais  querendo-se  procurar  nas  es- 
pessas camadas  de  lascas  de  pedra,  que  cobrem  o  pavimento  de 
alguns  depósitos  mortuários. 

Se  o  systema  de  ordenação  que  estabeleci  para  os  caracte- 
rísticos neolithicos  não  me  obrigasse  a  collocal-os  num  rigoroso 
seguimento  geographico,  fácil  seria,  embora  com  algumas  lacu- 
nas, compor  a  serie  geral  das  formas  mais  typicas  nos  tempos 
geológicos,  recorrendo  apenas  aos  objectos  por  mim  colligidos 
no  Algarve. 

A  forma  triangular  de  algumas  lascas  de  silex  terciário  do 
Moustier  e  das  margens  da  grande  bacia  lacustre  do  Tejo,  acha-se 
em  calhaus  rolados  nas  proximidades  de  ribeiras  e  até  com  ân- 
gulos muito  bem  definidos  em  terrenos  enxutos;  e  tão  conhecida 
era  essa  forma  nos  tempos  neolithicos,  que  mui  copiosamente  foi 
adoptada  em  diversos  instrumentos,  em  amuletos  e  até  na  gra- 
vura das  placas  de  schisto,  a  que  já  me  referi,  e  de  que  em  seu 
logar  tratarei  mais  especialmente. 

A  forma  amygdaloide  do  instrumento  lypico  de  silex  lascado 


Ki5 

da  primeira  epocha  quaternária,  achado  nas  alluviôes  de  Sainl- 
Acheul,  e  reproduzida  na  estação  de  Moustier,  pertencente  á  se- 
gunda epocha,  acha-se  em  vários  instrumentos  polidos  de  pedra- 
da minha  collecção  depositada  no  museu  do  Algarve. 

Cito  um  do  serro  do  Haver,  freguezia  de  Bensafrim  (es- 
tampa iv,  n.°  1),  outro  do  monte  de  Roma,  perto  de  Silves  (es- 
tampa xiii,  n.°  3)  e  três  de  rocha  quartzosa  da  estação  da  Torre 
dos  Frades,  perto  de  Cacella  (estampa  xxm,  n.°  2). 

Na  terceira  epocha  quaternária,  caracterisada  pela  industria 
da  estação  de  Solutré,  é  typico  um  instrumento  pontagudo  de  si- 
lex,  da  íorma  de  cutelo,  rematado  inferiormente  em  cabo  para 
poder  ser  empunhado.  O  sr.  de  Mortillet  figura  alguns  d'estes 
instrumentos  no  seu  Musée  Prèliistorique.  Com  maiores  dimensões, 
porém  não  terminada  em  ponta,  apparece  esta  forma  em  muitos 
calhaus  de  ribeira,  pela  maior  parte  não  preparados,  mas  inten- 
cionalmente colligidos,  porque  alguns,  já  com  o  cabo  mui  bem 
lavrado  a  choques  de  percussão,  foram  com  elles  achados  no  dal- 
men  coberto  de  Alcalá  e  noutros  logares. 

Muitos  objectos,  emfim,  da  ultima  epocha  quaternária,  taes 
como  laminas  cortantes,  buris,  graes  de  pedra  para  moagem  de 
tintas,  pingentes  perforados,  e  ainda  outros,  appareceram  exem- 
plificados nos  dolmens  cobertos  neolithicos  do  Algarve,  como 
adiante  se  verá. 

Por  isso,  pois,  repito,  que,  para  serem  preparados  tão  diver- 
sos artefactos,  era  mister  haver  apropriados  instrumentos  para  o 
trabalho,  mas  primeiro  que  tudo  matéria  prima  para  serem  ma- 
nufacturados. 

Rochas  utilisadas.  —  A  principal  substancia,  de  que  care- 
cia a  industria  neolithica,  era  a  pedra.  Não  faltava  esta  riqueza 
em  parte  alguma.  No  Algarve  muitas  rochas  são  representadas 
por  variadíssimos  artefactos,  que  em  grande  numero  julgo  terem 
sido  fabricados  nos  logares  da  sua  manifestação.  Ha  porém  mui- 
tos, que,  estando  totalmente  revestidos  de  patina,  não  podem  ser 
classificados,  e  outros,  cuja  classificação  por  simples  inspecção 


156 

não  é  fácil  afiançar.  Por  estas  circumstaneias  tenho  de  omitlir  a 
designação  de  muitas  rochas,  preferindo  não  conhecel-as  a  ter 
de  praticar  destruições  parciaes  nos  instrumentos  para  se  pode- 
rem determinar  sob  o  ponto  de  vista  mineralógico.  Não  posso 
portanto  affirmar  que  todos  pertençam  a  rochas  existentes  no 
Algarve.  Alguns  haverá  mui  provavelmente  recebidos  por  impor- 
tação de  outras  regiões,  como  com  algum  fundamento  devo  pre- 
sumir. 

O  silex,  sobre  diversos  aspectos,  conforme  os  jazigos  geoló- 
gicos e  condições  da  sua  proveniência,  disseminou-se  em  toda 
esta  província  com  muitos  e  bellos  artefactos  produzidos  pela 
percussão;  taes  são  as  facas,  com  preciosos  exemplares,  as  lami- 
nas cortantes,  as  serras,  e  umas  lascas  pontagudas,  que  pode- 
riam ter  servido  de  furadores  e  buris.  São  numerosas  as  pontas 
de  frecha  e  mui  variadas  as  suas  formas,  havendo  entre  ellas  ty- 
pos  capituladamente  únicos.  Do  mesmo  modo  são  um  tanto  exce- 
pcionaes  as  pontas  triangulares  de  lanças,  que  descobri  em  di- 
versas estações;  pois  não  ha  noticia  d'ellas  noutros  paizes.  Ha 
também  vários  núcleos,  achados  com  os  instrumentos.  Machados, 
picaretes  e  punhaes  não  têem  por  emquanto  apparecido. 

A  calcedonia  parece  ser  tão  rara  no  Algarve,  que  só  uma  pe- 
quena faca  d'esta  substancia  siliciosa  achei  no  dolmen  coberto  de 
Alcalá. 

O  quartzo  e  quartzite  apparecem  com  frequência  nos  depósi- 
tos mortuários.  Do  quartzo  crystallino  e  do  opaco  ha  núcleos  e 
bellas  pontas  de  frecha,  como  fragmentos  de  facas.  De  quartzo 
ferruginoso l  obtive  em  Castro  Marim  um  perfeito  machado  todo 
polido.  De  quartzite1  tenho  na  minha  nova  collecção  um  machado 
que  obtive  em  Monte  Canellas,  na  freguezia  da  Mexilhoeira 
Grande.  Obtive  também  em  Sellanitos,  concelho  de  Villa  do  Bis- 
po, um  machado  polido  de  quartzite  com  manchas  dendriticas 
de  manganez  l. 

O  cryslal  de  rocha  foi  mui  cuidadosamente  procurado  e  utili- 


Verificados  pelo  sr.  xVlfredo  Bensaude,  exímio  mincralogista, 


157 

sado.  Em  algumas  estações  acliam-se  os  cryslaes  sem  trabalho, 
mas  as  de  Aljezur,  da  Nora  e  da  Marcella  forneceram  excellenles 
núcleos,  sendo  mais  notável  os  da  Nora  pela  sua  grandeza  e  pela 
particularidade  assaz  graciosa  de  se  terem  consolidado  sobre  uma 
crystallisaçFio  de  rútilo  do  systema  prismático,  á  feição  de  feixes 
de  agulhas.  Os  núcleos  d'estas  estações  produziram  muitas  la- 
minas de  afilado  corte. 

Os  schistos  forneceram  numerosíssimos  artefactos;  machados, 
enxós,  escopros,  ponteiros,  brunidores,  trituradores,  pilões  e  pla- 
cas. Os  mais  importantes  são  de  schisio  amphibolico,  e  acham-se 
em  toda  a  província.  Em  Alportel,  ao  norte  de  S.  Braz,  desco- 
briu-se  um  famoso  polidor  de  schisto  crystallino  aphanitico l ;  em 
Pego  de  Boi,  a  3  kilometros  de  Loulé,  achou  João  Nunes  de  Fa- 
ria, em  sepultura,  na  quinta  do  Váo,  um  pequeno  machado  de 
schisto  dioritico  *,  já  depois  de  estar  prompta  a  carta  prehistorica, 
e  por  isso  não  vae  n'ella  indicado  o  dito  logar.  Do  sitio  da  Gasga, 
freguezia  da  Mexilhoeira  Grande,  remetteu-me  o  distincto  prior 
Nunes  da  Gloria  uma  perfeita  goiva  de  schisto  actinolithico  apha- 
nitico i,  e  na  Torre  dos  Frades,  perto  de  Cacella,  me  foi  offerecido 
um  machado  de  schisto  talcoso.  De  schsito  ardosiano  ha  numerosas 
placas  com  gravuras  geométricas. 

A  amphibolite  é  representada  por  uma  goiva,  que  o  rev.d0  Nu- 
nes da  Gloria  achou  no  sitio  da  Cavoada,  contiguo  á  aldeia  da 
Mexilhoeira  Grande,  e  juntou  aos  muitos  instrumentos  de  pedra 
com  que  engrandeceu  as  minhas  collecções. 

A  lydite  contribuiu  com  um  excellente  machado2  em  Aljezur, 
e  uma  perfeitíssima  enxó  toda  polida  e  lustrada,  descoberta  no 
sitio  das  Vendas  Novas,  entre  Tavira  e  Villa  Real,  existente  na 
minha  collecção  não  depositada  no  museu. 

A  fibrolite  deu  três  instrumentos  á  collecção  geral,  um  ma- 
chado do  sitio  do  Quintão,  concelho  de  Lagoa,  outro  mui  perfeito 


1  Verificados  pelo  sr.  Alfredo  Bensíiude. 

2  Foi  o  sr.  Nery  Delgado  quem  reconheceu  ser  de  lydite  o  dito  machado.  Eu  não 
conheci  a  rocha. 


158 

achado  cm  Cacella,  c  uma  pequenina  enxó  descoberta  em  Va- 
queiros, cujas  dimensões  persuadem,  que  apenas  leria  sido  obje- 
cto de  consagração  funerária. 

De  basalto  ha  vários  instrumentos,  principalmente  percutores, 
assim  como  de  diorites  de  grande  rijeza. 

De  serpentina  ha  uma  enxó  e  uma  conta,  provenientes  do  dol- 
men  coberto  de  Alcalá,  e  um  polidor  da  forma  de  machado,  que 
o  sr.  Teixeira  de  Aragão  obteve  ha  muitos  annos  na  quinta  das 
Antas,  perto  de  Tavira. 

A  foyaite,  rocha  eruptiva  de  Monchique,  foi  muito  aprovei- 
tada para  desgastadores,  mós  e  pilões  de  moagem.  Ha  muitos 
exemplares  nas  minhas  collecções. 

Para  pedras  de  moagem  aproveitou-se  também  o  calcareo 
conchilifero  e  um  grés  quartzoso. 

De  grés  fino  e  grés  vermelho  ha  vários  instrumentos;  de  rocha 
feldspathica  appareceu  em  Alvor  um  pingente  polido  e  perforado 
numa  extremidade,  pertencente  á  minha  collecção;  de  steatite 
recebi  da  estação  de  Aljezur  uma  grande  conta  quasi  cylindrica; 
de  aragonite  appareceram  muitos  discos  delgados,  circulares  e 
furados  no  centro,  parecendo  marcas  de  osso,  e  de  uma  substan- 
cia  verdosa,  que  os  archeologos  têem  denominado  calaite,  desco- 
bri muitas  contas  furadas  por  pontas  de  silex,  subslancia  a  que 
o  sr.  A.  Bensaude  dá  o  nome  de  ribeirite,  por  terem  taes  contas 
sido  achadas  por  Carlos  Ribeiro  no  dolmen  de  Montabrão,  as 
quaes  descreveu  na  sua  memoria  publicada  em  1880  (pag.  53), 
intitulada  Noticia  de  algumas  estações  e  monumentos  prehisto- 
ricos. 

Além  de  muitas  outras  rochas,  que  poderia  citar  como  tendo 
sido  utilisadas  para  a  fabricação  de  vários  artefactos,  indicarei 
o  cinabrio,  que  achei  no  dolmen  coberto  da  Marcella,  acompa- 
nhado da  hematite  vermelha,  e  a  limonite,  que  descobri  na  es- 
tação da  Torre  dos  Frades,  como  para  mostrar  que  estas  sub- 
stancias mineraes  eram  intencionalmente  colligidas  para  serem 
raspadas,  trituradas  e  moidas  para  se  prepararem  tintas. 

Não  faltou  portanto  matéria  prima  para  acudir  a  todas  as 


159 


necessidades  da  mais  íypica  industria  neolithica.  As  seguintes 
estampas  mostrarão  os  productos  que  caracterisam  a  zona  do 


Algarve. 


Instrumentos  c  utensílios  de  trabalho 


Percutores.  —  Todos  os  instrumentos  destacados  dos  seus 
núcleos  foram  preparados  por  choques  de  percussão.  Consequen- 
temente, para  se  poderem  applicar  aos  núcleos  esses  choques 
intencionaes,  deve  ter  havido  apropriados  instrumentos.  Houve-os 
com  effeito,  e  os  mais  antigos  parece  terem  sido  simplices  ca- 
lhaus rolados,  de  praia  ou  ribeira,  de  rija  consistência,  como  são 
os  de  silex,  de  quartzo,  e  de  diversas  rochas  eruptivas,  princi- 
palmente. 

Mas  para  se  empregarem  choques  regulares  e  certeiros,  não 
podiam  servir  calhaus  rolados;  era  mister  havel-os  com  arestas 
e  ângulos  salientes,  e  assim  foram  talhados.  Os  ângulos,  porém, 
com  a  continuidade  do  trabalho,  foram-se  abatendo,  a  ponto  de 
ficarem  reduzidos  os  instrumentos  a  uma  forma  approximada- 
mente  espheroidal,  e  portanto  sem  préstimo  algum.  N'este  caso 
tinham  de  ser  rejeitados  e  substituídos. 

Eis-aqui,  talvez,  o  principal  motivo  por  que  se  encontram 
avulso  e  com  frequência,  em  certos  logares,  muitos  d'esses  es- 
pheroides,  que  ainda  ha  poucos  annos  eram  considerados  como 
armas  de  arremeço.  Ora,  os  calhaus  rejeitados,  tendo  servido  de 
percutirem  outras  pedras,  conservam  superficialmente  uma  cri- 
vagem  mais  ou  menos  áspera,  proveniente  da  perda  de  pequenas 
lascas,  que  as  pedras  percutidas  lhes  fizeram  saltar. 

E  este  o  seu  principal  característico,  e  só  deixa  de  ser  geral 
nos  percutores  que  foram  primeiramente  machados,  os  quaes 
logo  cá  primeira  vista  se  reconhecem  por  conservarem  quasi  sem- 
pre uma  zona  totalmente  polida.  O  percutor,  em  sumiria,  era  pre- 
parador fundamental  da  maioria  dos  instrumentos,  o  primordial 
e  famoso  instrumento  de  trabalho. 

São  numerosos,  de  diversas  rochas  e  de  varias  formas,  os 
percutores  que  colligi  nas  estações  neolithicas  do  Algarve.  Tenho 


160 

muitos  depositados  no  museu *  e  outros  pertencem  á  ultima  col- 
lecção  que  organisei.  Nem  todos  podem  ser  figurados  em  estam- 
pas e  descriptos  n'este  livro.  O  leitor  não  me  perdoaria  que  de 
tal  arte  abusasse  da  sua  benevolência.  Alguns,  porém,  descreve- 
rei, e  registro  desde  já  um,  que  existia  na  estação  de  Aljezur. 

E  um  denso  calhau  lenticular  do  grupo  dioritico,  cujos  lados 
convexos,  parcialmente  rolados,  limitam-lhe  a  espessura  de  0m,039 
a  0m,045,  formando  duas  ásperas  facetas  decrescentes,  que  um 
grosso  bordo  terminal  impede  de  convergirem.  Mede  de  altura 
0m,069  e  de  largura  0m,082<  Pertenceu,  portanto,  a  um  dos  indi- 
víduos, que  tiveram  honrada  sepultura  n'aquella  mansão  mor- 
tuária. 

Referindo-me  ainda  aos  percutores  espheroidaes,  que  a  gente 
do  campo  acha  algumas  vezes  envoltos  na  terra,  corre  a  tradição 
de  serem  as  pedras  com  que  os  mouros  se  defendiam  do  alto  das 
ameias  dos  seus  castellos  quando  eram  acommettidos.  Em  Fran- 
ça, segundo  parece,  deve  haver  uma  lenda  similhante,  pois  ainda 
ha  poucos  annos  o  sábio  De  Caumont  considerava  estes  instru- 
mentos como  tendo  sido  pi  erres  de  fronde. 

Finalmente,  fallando  de  pedras  espheroidaes,  vem  um  tanto 
a  propósito  noticiar  também  o  appareci mento  de  umas  espheras 
de  pedra,  que  têem  sido  observadas  em  alguns  depósitos  neoli- 
thicos.  Estas  espheras,  pela  maior  parte  de  calcareo,  e  geral- 
mente de  superfície  mui  lisa,  variam  de  grandeza  desde  3  até 
30  centímetros  de  diâmetro. 

A  brandura  da  rocha  e  a  grandeza  das  maiores  repellem  a 
idéa  de  que  tivessem  sido  instrumentos  de  trabalho,  ao  passo  que 


1  Se  uma  força  superior  me  impedir  de  reorganisar  o  museu  do  Algarve,  grande 
perigo  correm  os  percutores  de  serem  considerados  como  inúteis  calhaus  de  ribeira  e 
assim  condemnados,  com  outros  objectos  não  melhor  conhecidos,  ao  desprezo  dos  sá- 
bios, que  projectam  ha  muitos  annos  reunir  e  misturar  tudo  que  é  antigo,  para  funda- 
rem um  museu  nacional,  que  absorva,  embrulhe  e  desfigure  nos  seus  enredados  laby- 
rinthos  o  museu  do  Algarve,  para  d'este  modo  m'o  poderem  dolosamente  usurpar, 
conspurcando-lhe  toda  a  feição  local  e  destituindo-o  de  toda  a  significação,  que  só  o 
seu  conjuncto  pode  manifestar  aos  que  formam  alguma  idéa  do  que  deve  ser  um  mu- 
seu archeologico. 


10 1 

as  menores  deixam  presumir,  que  poderiam  ler  servido  n'um  qual- 
quer jogo.  Tenho  algumas  d'estas  espheras.  No  dolmen  coberto 
de  Alcalá  achei  uma  de  grande  peso  e  de  volume  não  inferior 
áquella,  mui  conhecida,  existente  no  museu  Maynense,  com  que 
o  capitão  mor  de  Faro  costumava  recrear-se  nos  seus  momentos  de 
ócio,  e  por  isso  a  de  Alcalá  poderia  ter  servido  para  brinquedo  dos 
construetores  do  monumento,  em  que  ha  monolithos  de  2m,30  de 
altura  sobre  lm,60  de  largura,  e  ossos  que  aceusam  extraordiná- 
ria força  muscular,  mui  similhantes  aos  da  gruta  de  Cro-Magnon. 

Não  insisto,  porém,  n'esta  mui  vaga  e  pouco  verosímil  con- 
jectura, que  só  de  passagem  se  pode  emittir;  pois  a  forma  es- 
pherica  poderia  ter  tido  uma  significação  symbolica;  poderia  re- 
presentar uma  idéa,  uma  concepção  supersticiosa,  o  simulacro 
de  um  culto;  e  não  ouso  suppor  que  alludiria  á  forma  do  globo, 
por  não  poder  attribuir  aos  homens  da  ultima  idade  da  pedra  o 
conhecimento,  que  não  podiam  ter,  da  configuração  da  terra.  Po- 
deria comtudo  representar  outro  astro,  talvez  a  lua,  que  mui  cla- 
ramente apparece  esculpida  nuns  cones  de  calcareo  branco,  que 
Carlos  Ribeiro  achou  numa  estação  prehistorica  em  Cintra,  no 
sitio  do  Monge,  a  que  dá  o  nome  de  massas  ou  clavas  (salvo  se- 
ja!), e  que  estavam  associados  a  uns  cylindros  do  mesmo  calca- 
reo, cuja  significação,  completamente  desconhecida,  não  ouso 
aventurar  ao  tirocínio  conjectural. 

Não  posso,  pois,  attribuir  ás  espheras,  aos  cones  e  cylindros 
a  que  me  refiro  applicação  alguma  de  trabalho,  porque  nem  os 
objectos  dão  mostras  de  uso,  nem  a  isso  se  prestaria  a  natureza 
da  pedra,  que  me  parece  ser  um  calcareo  branco  marmóreo  de 
granulação  um  tanto  crystallina. 

Núcleos.  —  Com  esta  nomenclatura  íeem  sido  grupados  uns 
certos  fragmentos  de  rochas  duras,  principalmente  de  silex,  de 
quartzo,  de  crystal  de  rocha,  que  apresentam  uma  superfície  lon- 
gitudinalmente sulcada  em  um  ou  mais  pontos,  mostrando  terem 
fornecido  tantas  laminas  cortantes  quantos  são  os  sulcos,  pela 
applicação  de  choques  de  percutor, 
li 


162 

Variam  de  forma  c  grandeza,  se  a  região  em  que  se  acham 
é  mais  ou  menos  abundante  de  rochas  apropriadas  á  manufactura 
de  laminas  cortantes,  de  facas  e  ponteiros,  ou  furadores.  Na  Hun- 
gria e  na  Grécia,  onde  abunda  a  obsidiaria,  o  maior  numero  de 
núcleos  é  destacado  d'essa  rocha  vitrosa,  cujas  lascas  não  são 
menos  afiladas  de  corte,  que  as  do  crystal  de  rocha. 

O  deposito  de  Aljezur  manifestou  um  pequeno  núcleo  de  si- 
lex.  donde  saíram  muitas  lascas  cortantes,  e  os  dois  de  crvslal 
de  rocha,  figurados  na  estampa  D,  sob  os  n.os  14  e  15.  O  pri- 
meiro crystal  forneceu  quatro  estreitas  laminas  cortantes  e  passou 
a  ser  objecto  de  ornato,  sendo  na  base  betumado  numa  peça  es- 
tranha em  que  haveria  algum  orifício  para  se  trazer  suspenso,  ou 
n'um  cabo  para  se  empregar  como  instrumento  cortante  na  extre- 
midade lascada.  O  outro  apenas  forneceu  três  lascas  e  não  con- 
serva indícios  de  haver  sido  encabado. 

Não  se  tem  por  emquanto  descoberto  em  Aljezur  estação  al- 
guma de  trabalho,  ou  logar  de  officina,  em  que  se  tivessem  fa- 
bricado instrumentos  de  pedra,  e  por  isso  os  núcleos  são  pouco 
numerosos;  entretanto,  dão  sufficiente  presumpção  de  que  alli 
mesmo  havia  artífices  que  sabiam  preparal-os. 

Facas. —A  estampa  B,  fig.  1,  2  e  3,  representa  os  dois 
principaes  typos  de  facas  de  silex  da  estação  tumulus  de  Aljezur. 

As  facas  mais  typicas  são  geralmente  estreitas  e  de  vários 
comprimentos,  tendo  uma  face  lisa  e  um  tanto  curva,  em  razão 
da  fractura  conchoidal,  própria  da  natureza  da  rocha,  e  outra 
opposta  com  uma  ou  duas  arestas  longitudinaes,  dividindo-a  em 
dois  ou  três  planos. 

As  fig.  n.os  1  e  2  indicam  as  que  toem  a  face  superior  divi- 
dida em  três  planos,  e  as  fig.  n.os  3  e  11  as  que  apenas  têem 
dois,  formando  a  secção  transversal  d'estas  um  prisma  e  a  d'aquel- 
las  um  prisma  troncado.  A  faca  de  silex  propriamente  dita, 
assim  como  a  de  quartzo,  de  obsidiana,  ou  de  calcedonia,  tem 
gumes  cortantes  lateraes,  afilados  e  sem  retoques.  Quando  as 
arestas  do  corte  mostram  algumas  cavidades  distribuídas  com 


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irregularidade,  devem  considcrar-se  como  estragos  provenientes 
do  uso;  se  porem  as  cavidades  tomam  um  aspecto  regular  e  se- 
guido, ou  apenas  occnpam  uma  parte  da  aresta,  a  faca  foi  inten- 
cionalmente retocada  para  produzir  denticularão  c  servir  de 
serra. 

A  faca  n.°  1  mostra  pequenos  estragos  no  corte  e  mede 
0m,230  de  comprimento  sobre  0m,025  de  largura  máxima.  A  de 
n.°  2  também  tem  ligeiros  estragos  nas  arestas,  mas  inferior- 
mente mostra  uma  parte  denticulada.  É  um  bom  exemplar  com 
0m,204  de  comprimento  e  0m,019  de  largura,  tomada  junto  aos 
denticulos.  Além  d'estas,  tenho  outras  muitas  e  excellentes  facas 
da  mesma  estação,  que  reservo  para  apresentar,  se  o  museu  che- 
gar a  ser  reorganisado,  como  já  devera  estar. 

Laminas  cortantes.  —  Sob  esta  epigraphe  incluo  as  laminas 
destacadas  dos  planos  em  que  ficou  dividida  a  face  superior  das 
facas  no  acto  de  ser  percutido  o  núcleo;  os  fragmentos  de  facas 
que  ficaram  com  um  gume  cortante,  e  todas  as  lascas  extrahidas 
de  núcleos  de  rochas  duras,  quer  tenham  uma  ou  mais  arestas 
afiladas,  mas  que  se  reconheça  haverem  sido  assim  talhadas  in- 
tencionalmente c  mostrem  algum  característico  de  aulhenticidade 
que  as  livre  de  se  confundirem  com  lascas  accidenlalmente  pro- 
duzidas, ou  preparadas  por  contrafacção. 

A  estampa  C,  sob  o  n.°  5,  figura  uma  lamina  cortante,  que 
visivelmente  é  fragmento  de  faca,  das  que  toem  a  face  superior 
dividida  em  três  planos,  destacado  por  uma  fractura  diagonal, 
ficando  assim  com  um  só  corte. 

Sendo  estes  instrumentos  mui  vulgares  cm  diversas  estacões 
neolithicas,  a  sua  forma  suscitou  a  alguns  archeologos  a  idéa  de 
que  tivessem  sido  usados  como  frechas  de  corte  transversal  Esta 
forma  tem,  porém,  muitas  variantes,  que  podem  ser  separadas, 
posto  que  um  tanto  arbitrariamente,  em  dois  grupos  distinctos, 
ficando  um  representando  as  laminas  cortantes  e  o  outro  as  fre- 
chas de  corte  horisontal. 

Tanto  uns  como  outros  instrumentos  parece,  com  effeito,  te- 


104 

rem  tido  muito  uso.  As  laminas  cortantes  dariam  poderoso  auxilio 
ás  facas  de  silex,  cortando  com  mais  firmeza  uns  certos  objectos, 
que  poriam  as  facas  em  risco  de  se  fracturarem,  e  mais  especial- 
mente seriam  empregadas  no  corte  das  pelles  dos  animaes,  se- 
parando cordões  e  correias  para  diversas  applicações;  para  ta- 
lharem os  primitivos  vestuários  de  pelles,  que  a  arte  do  tecelão, 
embora  já  adiantada,  não  podia  ainda  completamente  supprir,  e 
para  outros  muitos  misteres  de  uso  quotidiano.  Adiante  direi  o 
que  julgo  relativamente  ás  frechas  de  corte  transversal. 

Entretanto,  considero  a  referida  fig.  n.°  5  da  estampa  C 
como  representando  uma  simples  lamina  cortante  das  mais  typi- 
cas,  de  que  se  servira  a  gente  que  ficou  sepultada  na  estação  tu- 
mular de  Aljezur.  Muitas  mais,  que  podem  ser  incluídas  neste 
grupo,  forneceram  outras  estações,  e  por  isso  se  prjde  dizer,  que 
estes  utilissimos  instrumentos  tiveram  uso  geral  em  todo  este 
tracto  territorial,  que  serve  de  limite  sul-occidentel  ao  continente 
europeu. 

Serras  de  silex. — A  serra  de  silex  é  um  instrumento  de 
trabalho,  denteado  por  acção  da  pressão,  ou  por  contínuos  cho- 
ques de  percutor  anguloso,  applicados  ás  arestas  cortantes  de 
uma  lamina  ou  de  uma  faca.  Ha  laminas  e  facas  denteadas  numa 
só  aresta,  produzindo  a  simples  serra,  e  outras  denteadas  em 
duas  arestas,  dando  em  resultado  uma  dupla  serra. 

Este  instrumento,  segundo  julgo,  não  surgiu  de  uma  inven- 
ção original,  mas  de  um  caso  fortuito,  que  necessariamente  seria 
frequente.  A  acção  do  trabalho  devia  produzir  nos  gumes  das 
laminas  e  das  facas  repetidas  mossas,  mais  ou  menos  próximas 
umas  das  outras,  e  querendo-se  assim  mesmo  empregar  os  gu- 
mes, facilmente  se  reconheceria  o  resultado  da  serragem.  Este 
conhecimento  pratico  levaria  naturalmente  o  operador  a  regulari- 
sar  aquelle  género  de  corte  denteado,  abrindo  novos  sulcos  nas 
arestas  obliteradas,  do  mesmo  modo  que  para  cortar  saberia  es- 
colher o  gume  mais  afilado,  e  entendendo  que  os  gumes  dentea- 
dos podiam  exercer  uma  acção  mais  expedita  e  vigorosa,  a  nc- 


165 

cessidade  o  obrigaria  a  transformar  cm  serras  as  laminas  c  facas 
cujos  cortes  já  não  podiam  servir. 

As  facas  n.os  1  e  2,  representadas  na  estampa  B,  exemplifi- 
cam os  estragos  parciaes  que  soffreram  os  seus  gumes  cortantes, 
e  as  de  n.os  3,  6,  8  c  11  mostram  de  um  modo  incontestável 
terem  as  suas  arestas  sido  retocadas  por  um  instrumento  con- 
tundente, que  lhes  produziu  a  forte  ondulação,  assaz  visivel, 
que  era  suficiente  para  poderem  cortar  a  madeira  e  o  osso  sem 
grande  dificuldade.  As  fig.  9  e  10  são  fragmentos,  ou  antes  du- 
plas serras  de  pequenas  dimensões,  e  a  fig.  5  ó  um  fragmento 
de  faca,  similhante  ao  de  n.°  C  da  estampa  C,  que  indico  com  a 
mesma  forma  das  frechas  de  corte  transversal,  para  mostrar  que 
foi  mui  intencionalmente  preparada  em  três  lados  para  exercer 
acção  de  serragem,  e  que  por  isso  repelle  qualquer  outra  pre- 
sumptiva  applicação. 

Já  me  referi  ao  facto  de  terem  sido  achados  na  estação  de 
Aljezur  uns  dentes  fosseis  de  Carcharodon,  estando  alguns,  que 
represento  na  estampa  D,  com  a  serrilha  do  bordo  inteiramente 
obliterada  pela  acção  da  serragem,  e  também  já  me  referi  á  du- 
pla serra  n.°  7,  figurada  na  estampa  B.  A  denticulação  regular, 
uniforme  e  perfeitíssima  d'esta  interessante  serra,  só  se  acha 
idêntica  nos  dentes  de  Carcharodon  em  melhor  estado  de  conser- 
vação, que  provadamente  estiveram  á  vista  do  engenhoso  imita- 
dor. Compare-se  esta  serra  com  um  d'esses  dentes,  que  só  assim 
se  perceberá  que  lhe  serviram  de  modelo. 

As  serras,  em  razão  da  continuidade  do  trabalho,  não  podiam 
deixar  de  perder  a  sua  primeira  denticulação,  e  por  isso  algumas 
foram  retocadas  muitas  vezes  até  o  ponto  de  ficarem  inutilisadas, 
attingindo  demasiada  espessura,  e  estreitando  proporcionalmente. 
Assim  achei  muitas  que  conservo  nas  minhas  collecções,  tanto 
nas  que  depositei  no  museu,  como  na  ultima  que  organisei  e  re- 
servo em  meu  poder,  esperando  a  possibilidade  de  reorganisar  o 
dito  museu  com  toda  a  amplitude  que  lhe  podem  dar  os  meus 
últimos  descobrimentos. 

Até  ha  pouco  tempo  não  eram  nomeados  estes  instrumentos. 


100 

Julgava-se  que  seriam  facas  obliteradas,  e  por  isso  com  ellas 
eram  indifferentemente  misturados.  E  pois  mister  que  constituam 
hoje  um  grupo  especial  e  independente,  porque  já  não  pode 
haver  confusão  entre  a  faca  e  a  serra. 

A  serra  é  portanto  um  instrumento  de  trabalho  muito  mais 
antigo  do  que  os  actuacs  mestres  serradores  terão  julgado.  Ha 
pois  muitas  dezenas  de  séculos,  que  a  serra  teve  ingresso  na  of- 
íicina  do  artífice. 

Furador.  —  O  furador  é  um  instrumento,  geralmente  de  silex 
lascado,  mais  ou  menos  longo  e  espesso,  terminado  em  ponta. 
Servia  para  abrir  orifícios  em  pedra  e  noutras  substancias,  e 
também  de  buril,  se  era  mister  applicar-se  á  gravura.  O  homem 
paleolithico  dos  últimos  tempos  geológicos  foi  o  operário  que 
mais  habilmente  manejou  o  furador,  abrindo  orifícios  em  pedra, 
em  cryslaes,  em  conchas,  em  vértebras  de  peixes,  em  osso  e  em 
dentes  caninos  de  lobo,  de  leão,  de  rapoza,  de  lince,  de  urso, 
de  veado  e  de  boi,  e  quem  melhor  também  o  empregou  como 
buril,  gravando  em  pedra,  e  mais  especialmente  em  ossos  de 
rangifer  (Cervus  tarandus),  os  animaes  mais  typicos  da  fauna  do 
seu  tempo,  assim  como  varias  espécies  da  flora  então  existente. 
A  agulha  de  osso,  admiravelmente  bem  feita,  é  um  dos  productos 
artísticos  d'aquella  epocha. 

O  homem  neolithico,  separado  dos  tempos  geológicos  por 
uma  epocha  de  transição  immensamente  duradoura,  também  nos 
seus  mui  variados  trabalhos  empregou  o  furador  e  o  buril,  abrindo 
orifícios  em  pedra,  em  osso,  em  âmbar  e  gravando  tanto  em  pe- 
dra e  em  osso,  como  em  louça. 

Algumas  aguçadas  pontas  de  silex,  encontradas  na  estação 
de  Aljezur  e  em  mais  algumas,  parece  terem  tido  taes  applica- 
ções.  O  maior  e  mais  custoso  trabalho  de  perforação  é  o  que 
representam  as  numerosas  contas,  que  abundam  em  algumas  esta- 
ções da  ultima  idade  da  pedra,  e  mesmo  alguns  pingentes, 


167 

Desengrossador.  —  Em  nomenclatura  archeologica  nenliuin 
instrumento  tem  por  emquanto  recebido  esta  designação.  Recebe-a 
porém  agora  aquelle  a  que,  em  meu  entender,  se  tem  muito  im- 
propriamente dado  o  nome  de  polidor.  O  esboço  de  um  artefacto 
de  pedra,  preparado  por  choques  de  percussão1,  para  poder  ser 
polido  ou  brunido,  tinha  primeiramente  de  perder  todas  as  esca- 
brosidades resultantes  da  acção  do  percutor,  sendo  portanto  des- 
engrossadas  e  completamente  abatidas. 

Para  se  obter  este  resultado,  os  esboços  eram  amolados  em 
pedras  de  grés  sobre  areia  molhada  até  perderem  todas  as  as- 
perezas resultantes  do  lascamento  do  percutor.  Era,  pois,  pela 
acção  do  attrito,  que  ficava  definida  a  sua  forma  c  afilado  o  gume 
dos  que  se  destinavam  a  ser  instrumentos  cortantes. 

Nem  todos,  porém,  eram  totalmente  subordinados  a  este 
aperfeiçoamento;  pois  alguns  apparecem  só  parcialmente  assim 
trabalhados.  A  operação  do  desengrossamento  era  em  geral  feita 
nas  próprias  rochas  de  grés,  e  por  isso  algumas  ainda  em  vários 
paizes  são  reconhecidas  pelas  suas  cavidades  longitudinaes  pa- 
rallelas  ou  um  tanto  divergentes,  como  tendo  sido  ulilisadas  pelos 
fabricantes  de  instrumentos  de  pedra. 

Além  das  pedras  fixas  havia  outras  moveis,  geralmente  de 
grés,  que  se  distinguem  facilmente  dos  percutores  em  terem  a 
sua  superfície  dividida  em  planos  bastante  lisos,  as  quaes  incluo 
neste  género  de  desengrossadores.  No  museu  do  Algarve  algu- 
mas de  varias  formas  assim  ha,  tanto  de  grés  vermelho  como  de 
foyaite.  Depois  da  referida  operação,  poucos  instrumentos  de  pe- 
dra se  acham  rigorosamente  lustrados  pelo  polidor  ou  brunidor. 
Entre  outros  citarei  uma  perfeitíssima  enxó  de  lydite  achada  no 

I sitio  das  Vendas  Novas,  perto  de  Cacella. 
No  numero,  porém,  dos  desengrossadores  citarei  aqui  um, 
que  na  estação  de  Aljezur  estava  associado  a  um  empilhamento 
de  enxós  e  machados,  que  descobri  no  ponto  a,  marcado  na 
planta  A.  E  de  grés  vermelho,  atravessado  por  uma  incrustação 
ou  veio  de  quartzo,  cuja  superfície  parcialmente  lisa,  mostra  ter 
exercido  um  attrito  intencional,  que  não  pode  confundir-se  com 


168 

o  poído  Ja  rolagem.  Não  foi,  pois,  empregado  como  percutor  em 
razão  da  sua  branda  contextura,  e  porque  em  parle  alguma  da 
sua  superfície  se  acha  picado.  Não  o  figuro  em  estampa,  mas 
pode  avaliar-se-lhe  mentalmente  o  volume,  sabendo-se  que  os 
seus  dois  maiores  diâmetros,  cruzando-se,  medem  0m,052  e 
0R,,053.  Como  este,  appareceram  outros  em  condições  similhan- 
tes,  associados  a  instrumentos  de  pedra  lascada  e  polida  e  a  lou- 
ças da  mais  rude  fabricação. 

Raspador.  —  Este  instrumento,  muito  vulgar  na  segunda  e  na 
terceira  epocha  quaternária,  assim  como  em  numerosas  estações 
neolilhicas,  comquanto  geralmente  pouco  se  afaste  de  uma  figura 
que  tivesse  sido  parcialmente  determinada  por  dois  terços  de  cir- 
culo, tem  muitas  variantes,  sendo  porém  quasi  sempre  retocada 
por  ligeiros  choques  de  percutor  toda  a  aresta,  que  é  arqueada 
no  seu  contorno. 

No  grupo  das  variantes  talvez  possam  ser  incluídas  algumas 
lascas  de  pedra,  achadas  em  poucos  depósitos  mortuários  da  ul- 
tima idade  da  pedra,  explorados  n'esia  província;  mas  rigorosa- 
mente a  forma  que  passa  por  ser  typica,  não  a  descobri  em  mo- 
numento algum.  Poderá  ainda  achar-se;  entretanto,  é  mister  ac- 
cusar  a  sua  falta  n'esta  região,  onde  também  não  ha  ver  vários 
instrumentos  vulgarissimos  noutros  paizes. 

Os  archeologos  francezes  chamam  grattoirs  a  estes  instru- 
mentos, attribuindo-lhes  assim  a  idéa  de  terem  sido  raspadores; 
mas,  se  eram  raspadores,  que  applicação  poderiam  ter  na  limitada 
industria  da  segunda  epocha  quaternária?  Para  rasparem  outros 
artefactos  de  silex  não  prestavam  e  a  manufactura  do  osso,  que 
só  começou  a  manifestar-se  na  terceira  epocha.  ainda  não  existia. 
Serviriam,  pois,  para  prepararem  pelles  de  animaes,  para  a  ser- 
ragem e  limpeza  de  algum  objecto  de  madeira,  ou  para  outro 
qualquer  trabalho  hoje  desconhecido. 

Admittindo,  porém,  que  naquella  plena  epocha  glaciaria,  em 
que  o  homem  deixou  tantos  vesúgios  de  habitação  nas  caver- 
nas, os  raspadores  tivessem  servido  para  preparar  as  pelles  dos 


ICO 

animaes,  a  fim  de  serem  transformadas  cm  vestuário,  primeiro 
que  tudo  ha  de  entender-se,  que  tinham  de  ser  capturados,  e, 
portanto,  o  homem  era  caçador;  mas  os  instrumentos  de  pedra, 
que  são  typicos  d'essa  epocha,  eram  os  taes  raspadores  e  outros 
da  forma  de  pontas  de  frecha:  eram,  consequentemente,  os  úni- 
cos, que  podiam  ser  utilisados  como  armas  de  arremeço ,  o  que 
deixa  immediatamente  presumir,  que  o  arco  já  era  usado.  Falta 
simplesmente  achar-se  a  corda  para  o  arco.  Das  floras  fosseis  de 
Heer  e  de  Schimper,  que  tantas  vezes  tenho  admirado,  não  pa- 
rece poder  deduzir-se.  Emfim,  para  que  o  supposto  arco  não 
fique  desencordoado,  poderá  presumir-se  que  as  próprias  pelles 
forneceriam  a  corda;  e  concebidas  as  cousas  com  toda  esta  au- 
dácia própria  de  quem  tem  de  recorrer  á  fértil  fonte  das  conje- 
cturas para  querer  explicar  o  que  não  sabe  nem  deve  affirmar, 
antes  de  abandonar  o  labyrintho  das  hypotheses,  seja-lhe  licito 
ainda  imaginar,  que  as  chamadas  pontas  mousterianas  não  seriam 
simplesmente  instrumentos  de  mão,  mas  terríveis  e  mortíferas 
armas  penetrantes  de  arremeço,  e  que  os  taes  chamados  grattoirs 
não  só  raspariam  e  cortariam  as  pelles  dos  animaes  mortos,  como 
a  pelle  e  os  músculos  dos  que  fugiam  á  perseguição  do  homem, 
sendo-lhes  apontados  ás  pernas,  para  assim  ficarem  accessiveis 
aos  golpes  de  um  robusto  pau  de  teixo,  de  vidoeiro  ou  de  choupo 
dos  que  lhes  cubicavam  a  carne  para  se  alimentarem,  os  múscu- 
los para  supprirem  as  deficiências  de  uma  flora  siberiana  mal 
provida  de  espécies  filamentosas,  e  as  pelles  para  se  cobrirem  e 
poderem  resistir  ao  rigor  dos  gelos. 

Tudo  isto,  pois,  não  passa  de  ser  mui  temerariamente  engen- 
drado nos  vastos  domínios  da  imaginação;  mas,  ainda  assim, 
voltarei  a  este  assumpto  quando  pouco  adiante  descrever  as  ar- 
mas reconhecidamente  de  arremeço. 

Brunidor,  polidor  ou  alisador.  —  A  industria  paleoethnolo- 
gica  mostra  numerosas  provas  do  apuro  a  que  chegaram  muitos 
dos  seus  produetos  de  pedra,  de  osso,  marfim  e  âmbar.  A  bru- 
nidura  em  certos  artefactos  não  é  invenção  de  modernos  artífices, 


170 

não  é  descobrimento  que  preconise  o  progresso  das  sociedades 
históricas  mais  adiantadas;  não  é  invento  romano,  nem  ensina- 
mento da  arte  hellenica;  é  mais  antiga  que  tudo  isso,  porque 
ainda  não  cabe  a  honra  da  sua  manifestação  aos  homens  da  pri- 
meira idade  do  ferro,  aos  da  idade  do  bronze,  aos  da  ultima 
idade  da  pedra.  Vae  mais  longe ;  ultrapassa  as  raias  dos  tempos 
actuaes  e  arvora  as  provas  dos  seus  primórdios  em  plenos  tem- 
pos geológicos!  O  homem  paleolithico  não  era  um  homem  polido, 
certamente,  mas  já  sabia  polir.  Era  o  que,  similhantemente,  di- 
zia Horácio  a  respeito  da  pedra  de  amolar,  que,  não  tendo  a 
virtude  de  cortar,  dá  corte  ao  ferro. 

Foi  o  homem  quaternário  o  inventor  do  processo  de  dar  lus- 
tre á  pedra  e  ao  osso.  Pode,  emfim,  dizer-se,  que  esta  invenção 
caracterisa  a  transição  dos  tempos  geológicos  para  os  tempos 
actuaes,  ou  post-quaternarios,  e  que  é,  portanto,  pre-neolilhica, 
tendo  por  seus  typos  principaes  perfeitas  agulhas  de  osso,  ossos 
e  pedras  com  admiráveis  gravuras,  sendo  tudo  isso  geralmente 
brunido.  Houve,  pois,  instrumentos  destinados  a  brunirem  varias 
manufacturas,  e  não  poucos  achei  em  algumas  estações  neolithi- 
cas,  uns  que  deixei  depositados  no  museu,  quando  o  organisei, 
e  outros  que  conservo  nas  collecções,  que  posteriormente  consegui 
fazer. 

Já  inclui  no  grupo  dos  desengrossadores  o  instrumento  de 
grés  vermelho,  que  existia  na  estação  tumular  de  Aljezur;  citei 
igualmente  os  dentes  de  Carcharodon,  que  vão  figurados  na  es- 
tampa D,  sob  os  n.os  18  e  19,  e  ainda  me  referi  a  outros  da  mesma 
estação,  existentes  nas  minhas  collecções,  com  evidentes  signaes 
de  terem  sido  lustradores  ou  polidores,  mui  provavelmente  de 
artefactos  de  osso,  tendo  em  attenção  o  lustre  fino  esem  estrias, 
com  sensível  diminuição  da  espessura  do  esmalte  natural,  que 
com  effeito  n'elles  se  verifica  á  simples  vista.  Os  dentes  de  Car- 
charodon foram,  pois,  algumas  vezes  utilisados,  em  razão  do  seu 
resistente  e  fino  esmalte,  como  brunidores  ou  polidores. 

Alguns  calhaus  de  ribeira  se  acham  nas  estações  mortuárias, 
tendo  por  único  indicio  de  trabalho  uma  parte  da  sua  superfície 


171 

mais  lustrada  do  que  o  resto,  e  por  vezes  essa  parle  lustrada  com 
ligeiro  abatimento,  que  bem  se  pode  julgar  proveniente  de  um 
aturado  uso. 

Muitos  machados  de  pedras  rijas,  ou  de  contextura  fina  e 
compacta,  cujo  gume  cortante  parece  ter  sido  primeiramente  obli- 
terado, foram  preparados  para  brunidores.  Em  Aljezur  nenhum 
achei  d'este  género,  mas  em  seus  logares  citarei  os  que  colligi, 
apontando  desde  já  como  exemplo,  para  se  poder  observar,  mo- 
delado no  museu,  um  excellente  polidor  de  serpentina,  que  o 
sr.  Teixeira  de  Aragão  obteve  na  quinta  das  Antas,  perto  de  Ta- 
vira. 

Ha  lambem  polidores  ou  brunidores  que  apenas  mostram 
uma  pequena  faceia  muito  lustrada  e  sem  mais  signal  algum  de 
trabalho.  Tenho  um  d'este  género,  muito  perfeito,  achado  pelo 
sr.  Serrão  no  deposito  mortuário  de  Aljezur.  Tem  a  forma  de 
uma  enxó  de  pequeníssimas  dimensões.  Mede  no  comprimento 
0m,032,  na  extremidade  mais  larga  em  que  se  formou  a  faceta 
0m,012,  não  sendo  a  sua  máxima  espessura  superior  a  0m,005. 
A  faceta,  no  seu  chanfro  diagonal,  mede  apenas  0m,002. 

Já  se  vê,  que  serviria  para  brunir  artefactos  delicados,  mui 
provavelmente  de  osso,  como  poderiam  ter  sido  os  alfinetes  de 
segurar  os  cabellos,  figurados  na  estampa  D,  sob  os  n.os  1  a  3, 
e  as  mui  significativas  agulhas  \  a  que  já  me  referi,  e  que  os 
srs.  G.  de  Mortillet  e  Adriano  de  Mortillet  representam  com  os 
n.os  43,  170  a  174  na  sua  famosa  obra  intitulada  Mtisée  préhis- 
tôrique,  as  quaes  teem  sido  achadas  em  idênticas  condições  syn- 
chronicas  em  muitas  estações  da  França,  da  Bélgica,  de  Inglaterra 
e  da  Hispanha. 


1  As  agulhas  de  osso,  encontradas  em  muitas  estações  palcolithicas  dos  últimos 
tempos  quaternários,  suscitam  vários  conceitos,  que  levam  o  observador  a  umas  con- 
clusões, embora  um  tanto  arriscadas,  ainda  assim  assaz  verosimeis. 

As  agulhas  mais  delgadas,  cujo  fundo  ou  orifício  pouco  excede  0in,00l  de  diâ- 
metro, persuadem  que  o  fio,  com  que  eram  destinadas  a  coser,  devia  ter  uma  gros- 
sura proporcional:  portanto,  seriam  para  este  fim  aproveitados  só  os  músculos  mais 
ténues  dos  animaes  ou  algum  vegetal  filamentoso.  Se  a  flora  synchronica  na  parte  que 
tem  sido  magistralmente  estudada,  não  permitte  acertar-se  com  uma  espécie,  que  po- 


172 

Passarei  agora  a  enumerar  c  descrever  a  famofea  collecção 
geral  dos  instrumentos  de  pedra  com  gume  cortante  e  parcial- 
mente polidos,  que  estavam  acompanhando  as  relíquias  humanas 
em  amonloamentos  separados,  nos  planos  inferiores  do  deposito 
de  Aljezur. 

Os  chamados  instrumentos  polidos  de  pedra  não  são  privati- 
vos de  paiz  algum;  acham-se  espalhados  e  dispersos  na  maioria 
das  grandes  divisões  geographicas  do  globo;  o  que  prova  que  o 
globo  era  quasi  todo  habitado  na  ultima  idade  da  pedra. 

Em  toda  a  parte,  salvo  raras  excepções,  apparecem  certos 
artefactos  communs ;  alguns  ha,  porém,  que  somente  se  acham 
localisados  em  determinados  paizss.  Este  facto  reclama  desde  já 
uma  reservada  attenção,  porque  pode  no  futuro  contribuir  para 
a  solução  de  um  problema  propriamente  ethnographico,  propor- 
cionando algumas  elucidações  concernentes  á  distribuição  geo- 
graphica  dos  diversos  typos  ethnicos,  que  fortifiquem,  modifi- 


desse  ter  fornecido  fibras  ou  filamentos  de  susceptível  preparação  para  tecidos  e  costu- 
ras, não  se  segue  que  não  a  houvesse;  entretanto,  não  faltavam  os  músculos  dos  animaes, 
que  o  homem,  já  então  essencialmente  caçador,  atacava  e  abatia  para  a  sua  alimentação. 
As  tiras  de  pelle  mais  estreitas,  que  as  laminas  de  silex  podiam  cortar,  não  passariam, 
porem,  pelo  fundo  de  taes  agulhas;  seriam  porventura  aproveitadas  na  feitura  do  ves 
tuario  de  pelles,  para  que  bastava  haver  aguçados  ponções  de  osso,  que  abrissem  ori- 
fícios para  por  elles  se  fazerem  passar,  como  ainda  se  vê  nas  polainas  e  outras  pelles, 
.com  que  os  pastores  se  defendem  das  asperezas  dos  matos,  e  até  em  varias  obras  de 
correeiro 

Tarcce-me,  ainda  assim,  que  na  ultima  phase  do  decrescimento  das  geleiras,  po- 
deria ter  surgido  uma  flora  pbancrogamica  na  grande  área  da  sua  completa  extineção 
nos  tempos  geológicos,  que  fornecesse  alguma  substancia  filamentosa,  de  que  se  ser- 
vissem os  engenhosos  fabricantes  de  tão  perfeitas  agulhas  para  fazerem  algum  tecido 
destinado  ao  seu  vestuário,  e  consequentemente  filamentos  para  o  poderem  coser;  pois, 
fora  d'este  presupposto  não  se  concebe  que  applicação  podessem  ter  tido  taes  agulhas. 

Julgo  ao  mesmo  tempo,  que  o  vestuário  de  pelles  deve  ter  precedido  qualquer 
outro,  mas  que  não  carecia  de  agulhas  para  se  ageitar  a  cada  individuo.  As  estações 
preneolithicas  abundam  em  lascas  cortantes,  em  raspadores,  em  furadores  de  silex,  e 
em  ponções  rijíssimos  de  osso.  Nada,  pois,  faltava.  As  agulhas  eram  desnecessárias  para 
este  género  de  vestuário,  e  se  os  mais  ténues  músculos,  como  é  provável,  não  cabiam 
em  tão  apertado  orifício,  haveria  certamente  um  filamento  qualquer  que  lhe  fosse  ada- 
ptado. 0  que  não  parece  duvidoso  é  que  a  continua  acção  de  um  clima  aspérrimo  quasi 
polar  obrigaria  aquelles  míseros  viventes  a  munirem-se  de  um  qualquer  vestuário.  Esta 
necessidade  deduz-se  naturalmente,  sabendo-se  que  a  temperatura  era  então  8  a  10  graus 
inferior  á  da  média  actual  no  centro  da  Europa. 


ALJESUR 


Est.  C 


&,H.^  &.d4>o'% 


e^tux^' 


/■tfhaqraphici   da  Imprertsa.  JVa.Ct.im.a.1. 


quem,  ou  destruam  as  lheorias  e  os  theoremas,  que  ahi  estão  cor- 
rendo, com  força  de  lei,  nos  vastos  arraiaes  da  biologia. 

Outro  caso,  que  suscita  ao  mesmo  tempo  sérios  reparos,  sem' 
que  ninguém  o  tenha  ainda  rigorosamente  discutido,  é  appare- 
cerem  artefactos  do  mesmo  typo  em  varias  regiões  da  terra,  e 
todos  nas  mesmas  condições  de  synchronismo,  umas  vezes  re- 
presentando em  cada  paiz  somente  as  rochas  locaes,  e  outras 
vezes  manifestando  substancias  mineralógicas  exóticas,  perten- 
centes a  territórios  relativamente  longínquos.  No  primeiro  caso  foi 
a  forma  typica  que  se  transmittiu  e  no  segundo  foi  o  próprio  ar- 
tefacto; o  que,  de  feito,  persuade  a  existência  de  algum  meio  de 
transmissão. 

No  Algarve,  os  instrumentos  de  pedra  representam  na  sua 
maioria  rochas  locaes,  havendo  entre  elles  alguns  de  outras  ro- 
chas não  agora  verificadas  na  região.  Os  que  são  parcial  ou  to- 
talmente polidos,  e  em  geral  com  um  só  gume  cortante,  consti- 
tuem quatro  géneros  principaes,  machado,  enxó,  escopro  e  goiva. 

Sob  a  nomenclatura  de  machado  se  tem  confundido  a  enxó  e 
o  escopro,  que  vou  separar  com  a  indicação  dos  seus  caracterí- 
sticos principaes  è  ao  mesmo  tempo  figurar  na  estampa  C. 

O  machado  de  pedra  varia  muito  de  forma  e  dimensões  em 
todo  o  Algarve.  A  collecção  geral,  ordenada  geographicamente, 
é  numerosa  e  muito  importante.  Em  relação  a  Aljezur  divido  este 
género  em  dois  grupos  distinctos. 

Machados  de  pedra.  1.°  grupo  —  Os  machados  d'este  grupo 
são  porventura  os  mais  regulares  e  aperfeiçoados.  Os  caracterí- 
sticos principaes,  que  os  distinguem  dos  outros,  são:  secção 
transversal  elliptica  e  a  longitudinal  terminada  em  angulo  agudo 
de  lados  curvilíneos;  duas  facetas  oppostas,  convergindo  e  deter- 
minando o  gume  cortante,  mais  ou  menos  arqueado;  extremidade 
inferior  approximadamente  arredondada  ou  convexa;  desengros- 
samento  geral  pelo  attrito ;  toda,  ou  quasi  toda  a  superfície,  com 
excepção  das  facetas,  manifestando  aspecto  de  crivagem  fina  ou 
grosseira;  rochas  diversas,  predominando  em  vários  logares  o 


'       174 

schisto  amphibolico;  diíTcrcntcs  dimensões,  subordinadas  ao  typo 
geral,  com  variantes  cxcepcionaes. 

A  estampa  G,  fig.  4,  representa  um  exemplar  d^ste  grupo, 
dos  que  descobriu  e  meoffereceu  o  sr.  Cosia  Serrão.  São  oito 
os  que  continha  o  deposito  de  Aljezur.  O  maior  mede  0m,136  de 
comprimento,  0m,060  de  máxima  largura  e  0m,041  na  maior  es- 
pessura. O  que  figuro  na  estampa  tem  0ra,090  de  comprimento, 
0m,48  de  máxima  largura  e  0m,040  de  espessura.  O  menor  mede 
de  comprimento  0m,087,  de  largura  máxima  Oin,04(5  e  na  maior 
espessura  0m,035.  A  escabrosidade  superficial  d'estes  instrumen- 
tos deixa  perceber,  que  seria  intencionalmente  produzida  para 
com  mais  segurança  adherir  ao^encabamento. 

2.°  grupo.  —  Secção  transversal  approximadamente  quadran- 
gular, resultante  de  dois  planos  parallelos  junto  ás  facetas  do 
gume  cortante  e  de  outros  dois  mais  estreitos,  oppostos  e  per- 
pendiculares aos  primeiros,  formando  ângulos  abatidos;  os  pla- 
nos mais  largos  total  ou  parcialmente  desengrossados  pelo  attrito 
com  gradual  decrescimento  até  convergirem  num  corte  arqueado 
e  os  menos  largos  geralmente  toscos,  havendo-os  também  com- 
pletamente polidos;  extremidade  inferior  quasi  sempre  estreita, 
decrescente  e  mal  acabada;  espessura  robusta.  Ha  uma  variante, 
com  os  quatro  ângulos  rectos,  cuja  secção  transversal  produz  um 
rectângulo. 

Na  collecção  que  o  sr.  Co^ta  Serrão  me  offereceu,  vieram 
dezenove  excellentes  exemplares  d'este  grupo  e  na  exploração, 
que  fiz  em  junho  de  1882  ainda  achei  mais  seis.  O  maior  d'estes 
machados  mede  de  comprimento  0m,220,  na  máxima  largura 
0m,070,  na  extremidade  inferior  0m,029  e  na  maior  espessura 
0m,038.  O  menor  tem  de  comprimento  0m,107,  de  largura  0m,059 
na  extremidade  inferior  0m,030  e  na  maior  espessura  0m,030. 

Além  dos  que  toem  os  ângulos  abatidos  ou  rectos,  ha  n'este 
grupo  outras  variantes  de  fácil  reconhecimento,  que  para  fugir  a 
escusadas  prolixidades  não  descrevo. 


175 

Enxós  de  pedra.  Esboços.  — Os  homens,  que  na  ultima  idade 
da  pedra  viveram  nos  campos  em  que  actualmente  existe  a  villa 
de  Aljezur,  na  sua  singularissima  estação-tumidus,  deixaram  prova 
evidente  de  saberem  fabricar  instrumentos  de  pedra.  Lá  estava 
sepultado  um  com  três  esboços  em  via  de  preparação,  que  a 
morte  lhe  impediu  de  concluir.  São  uns  calhaus  rolados  de  schisto 
amphibolico,  procurados  mui  provavelmente  nas  margens  do  rio, 
das  ribeiras  próximas  ou  na  praia  marítima,  lascados  a  choques 
de  percutor  inteiramente  numa  face  e  parcialmente  na  outra. 
Todos  três  ficaram  talhados  com  a  forma  intencional,  assaz  perce- 
ptível, que  o  preparador  lhes  quiz  dar.  Com  mais  alguns  reto- 
ques, o  maior  ficaria  completamente  esboçado  para  poder  ser 
levado  á  pedra  de  amolar. 

Quem  observar  com  attenção  os  typos  das  enxós  de  pedra 
de  Aljezur,  sem  a  minima  hesitação  reconhecerá  logo,  que  era 
um  d'esses  instrumentos  que  se  pretendia  conseguir. 

Um  dos  esboços  mostra,  porém,  a  particularidade,  que  o  dis- 
tingue dos  outros,  de  ter  um  cabo  ou  punho  mui  bem  determi- 
nado para  se  poder  segurar  com  firmeza,  e  porque  na  extremi- 
dade larga  a  faceta  do  corte  foi  talhada  no  lado  opposto  ao  con- 
vexo, a  intenção  do  artífice  foi  certamente  ensaiar  uma  nova  forma 
de  enxó  de  mão,  cujas  dimensões  deviam  ficar  reduzidas  a  0m,157 
de  comprimento,  a  0m,094  na  extremidade  cortante,  a  0m,037 
na  do  cabo,  e  a  uns  0m,015  na  menor  espessura  junto  á  faceta. 

As  enxós  de  pedra,  como  indica  a  fig.  n.°  1  da  estampa  C, 
não  têem  cabo  ou  punho  formado  na  própria  pedra;  mas  devera 
tel-o  esta,  porque  está  perfeitamente  configurado,  como  também 
o  achei  nos  esboços  de  uns  outros  instrumentos,  que  designo  com 
o  nome  de  cutelos. 

Os  outros  dois  esboços,  cuja  forma  está  mui  bem  figurada, 
deviam  ser  ainda  mais  trabalhados  pelo  percutor  para  se  pode- 
rem desengrossar  em  pedras  de  grés;  mas,  apesar  disso,  perce- 
be-se  distinctamente  haverem  sido  talhados  para  enxós. 

N'estes,  não  ha  signal  de  punho;  os  bordos  laleraes  estão 
apontados  e  a  superfície  rolada  mui  engenhosamente  aproveitada 


176 

para  ser  o  lado  concavo  no  mais  estreito  e  o  convexo  no  mais 
largo,  o  qual  mede  0m,132  de  comprimento,  0m,094  de  largura 
destinada  ao  gume  cortante,  0m,052  na  mais  estreita  e  0m,023 
de  espessura  junto  á  extremidade  larga,  em  que  a  faceta  do  corte 
não  chegou  a  ser  lascada,  ao  passo  que  na  opposta  parece  haver 
já  um  corte  esboçado.  Finalmente,  o  mais  estreito  mede  0m,145 
de  comprimento,  assim  como  0m,055  na  maior  largura,  0m,022 
na  maior  espessura,  tomadas  estas  medidas  junto  á  faceta  já  las- 
cada para  o  corte. 

Não  é  possível  reproduzir  em  estampas  todos  os  instrumen- 
tos, e  por  isso  é  mister  que  appareçam  e  tenham  publica  expo- 
sição no  museu  a  que  pertencem,  porque  só  assim  poderão  ser 
úteis  ao  estudo.  Não  se  comprehende,  pois,  que  tendo  o  museu 
do  Algarve  sido  instituído  para  a  comprovação  da  carta  archeo- 
logica,  esteja  desde  1881  arrecadado,  quando  todas  as  razões 
de  conveniência  publica  e  scientifica  estão  aconselhando  a  sua 
reorganisação  na  cidade  de  Faro,  com  os  muitos  e  importantes 
descobrimentos  realisados  nestes  últimos  annos. 

Para  se  formar  approximada  idéa  da  utilidade  de  tal  reorga- 
nisação, bastaria  tomar-se  nota  dòs  famosos  grupos  de  instru- 
mentos achados  em  Aljezur  e  noutros  muitos  logares,  para  se 
reconhecer  a  falta  que  fazem  no  museu.  Os  que  vou  descrever 
pertencem  ás  minhas  novas  collecções,  e  certamente  não  os  re- 
unirei ás  que  deixei  depositadas,  emquanto  o  museu  não  tiver  o 
destino  que  deve  ter. 

Enxós  de  pedra.  —  Para  que  hei  de  eu  improvisar  uma  defi- 
nição, que  distinga  o  machado  da  enxó  de  pedra,  se  já  está  feita 
por  mão  de  mestre  abalisado,  que  veiu  acabar  com  as  confusões 
e  preconceitos  em  que  laboravam  muitos  entendimentos,  aliás 
eminentes,  em  meio  do  grande  arraial  da  sciencia  moderna?  Me- 
lhor é  reproduzir,  que  plagiar,  e  por  isso  reproduzo  aqui  a  pala- 
vra do  sr.  Gabriel  de  Morlillet,  um  dos  maiores  athletas  da  sa- 
bedoria moderna. 

Ás  enxós,  que  até  agora  ninguém  distinguia  dos  machados, 


177 

dá  o  sr.  de  Morlillet  o  nome  de  herminettes,  e  diz:  «Les  hermi- 
nettes  sont  três  voisines  des  haches;  si  voisines  qu'on  les  a  sou- 
vent  confondues  ensemble.  La  hache  a  les  deux  faces  du  tran- 
chant tout  à  fait  semblables,  dans  Fherminette,  au  contraire,  ces 
faces  sont  différentes.  Généralement,  il  y  en  a  une  parfaitement 
plate,  1'autre  éiant  plus  au  moins  bombé  et  courbe.  II  est  pour- 
tant  une  autre  variété  d'herminette  qu'il  est  important  de  signa- 
ler.  Les  deux  faces  sont  plates,  mais  Finférieure  est  en  retrait 
sous  la  supérieure  et  reliée  à  elle  par  un  petit  plan  oblique.  Cest 
ce  qu'on  nomme  les  herminettes  à  biseau  *. 

«Les  herminettes  à  face  inférieure  plate  et  à  dos  bombé  sont 
surtout  françaises,  suisses  et  même  espagnoles.  . . 

«Les  herminettes  à  biseau  se  rencontrent  en  Portugal.  Elles 
sont  souvent  arquées  dans  leur  longueur.  Cest  pourtant  la  Fin- 
lande  qui  est  leur  pays  par  excellence.  De  là  elles  déscendent 
dans  la  Grande-Russie,  en  se  modifiant  un  peu.  Parfois  le  biseau 
du  bas  n'existe  plus,  c'est  le  poli  general  qui  forme  le  tranchant, 
une  face  de  1'outil  étant  verticale  et  1'autre  oblique.  Dans  le  gou- 
vernement  d'01onetz  les  herminettes  varient  entre  33  et  240  mil- 
limètres  de  longueur. » 

No  Musée  préhistorique,  planta  li,  repete  o  sr.  de  Mortillet 
os  característicos,  que  separam  do  grupo  geral  dos  machados  as 
enxós  de  pedra  (herminettes),  dizendo:  «Les  herminettes  ou  do- 
loires ...  ont  leur  tranchant  forme  par  un  plan  complòtement 
plat  sur  une  des  faces  et  un  plan  bombé  sur  1'autre.  Les  haches 
emmanchées  ont  leur  tranchant  parallòle  au  manche,  tandis  que 
les  herminettes  ont  le  leur  perpendiculaire. » 

Na  dita  planta  li,  sob  o  n.°  470,  representa  o  perfil  de  uma 
enxó,  que  achei  no  dolmen  coberto  da  Marcella  (freguezia  de  Ca- 
cella),  de  que  tirou  um  esboço  no  museu  do  Algarve  em  1880. 
e  descreve-o  assim: 

Herminette,  plaque  arquée  de  diorite,  figurée  de  profil,  pour 
montrer  le  Iranchant  oblique.  Les  deux  faces  sont  reclangulaires. 


Musée  préhistorique,  n0'-  4G8  à  473. 
12 


178 

Tumulus  de  Marcclla,  Algarve  (Portugal).  Récoltes  Estacio  da 
Veiga  (Musée  delle  Belle-Arti,  Lisbonne).» 

Apurando  c  resumindo  cuidadosamente  os  característicos  dis- 
tinctos  d'esle  género  de  instrumentos,  acha-se:  1.°,  o  gume  cor- 
tante, no  typo  mais  geral,  tem  uma  faceta  chata,  amolada  á  si- 
milhança  das  enxós  de  ferro,  e  a  outra  mais  ou  menos  arqueada 
e  curva;  2.°,  o  gume  cortante  é  produzido  por  duas  facetas  cha- 
tas, sendo  a  inferior  retrahida  em  relação  á  superior,  a  que  se 
liga  por  um  pequeno  plano  obliquo. 

Tendo  á  vista  vinte  e  cinco  enxós  de  pedra  da  estação-tamu- 
hs  de  Aljezur,  parece-me  poder  dividil-as  nos  grupos  seguintes: 

1.°  grupo.  —  Placas  de  schisto  amphibolico  de  faces  mais  ou 
menos  largas  e  oppostas,  approximadamente  planas;  bordos  la- 
teraes  angulosos,  convergindo  para  a  extremidade  inferior,  geral- 
mente estreita;  faceta  diagonal,  amolada  á  feição  das  enxós,  for- 
mões e  outros  ferros  de  carpinteiro,  tão  somente  no  plano  ante- 
rior, formando  gume  cortante  arqueado  com  o  plano  posterior. 
São  sensivelmente  curvas  para  o  lado  da  faceta  em  maior  ou 
menor  grau. 

Na  minha  collecção  de  Aljezur  já  havia  dez  exemplares  antes 
de  descobrir  mais  quatro  na  exploração  do  deposito.  O  maior 
mede  0m,266  de  comprimento,  na  largura  do  corte  0m,062,  na 
extremidade  estreita  0m,019,  de  espessura  junto  á  faceia  0m,007 
e  de  espessura  máxima  0m,020.  O  menor  tem  0m,003  na  faceta 
do  corte,  na  largura  junto  ao  corte  0m,049  e  na  extremidade  in- 
ferior 0m,025,  sendo  a  sua  máxima  espessura  de  0m,013.  O  des- 
engrossamento  na  face  externa  é  feito  á  similhança  de  faceta 

com  0m,034  de  largura. 

■ 

Variante  do  1 .°  grupo.  —  Placa  rolada,  com  uma  face  plana 
e  outra  convexa;  bordos  lateraes  abatidos;  gume  cortante  pouco 
arqueado,  formado  por  duas  estreitas  facetas  obliquas;  sem  ou- 
tro algum  trabalho.  Mede  0m,145  de  comprimento,  0m,065  de 
largura  no  córle  e  0m,50  na  extremidade  inferior.  Sendo  de 


179 

schisto  pouco  duro,  deixa  presumir  que  fosse  um  simples  instru- 
mento funerário,  cx  voto.  No  gume  não  ha  signal  de  uso.  É  assaz 
excepcional. 

2.°  grupo.  —  As  enxós  d'este  segundo  grupo  são  de  forma 
curvilínea  como  as  do  primeiro;  também  têem  as  faces  mais  ou 
menos  planas  e  mais  ou  menos  polidas;  differem  porém,  das  ou- 
tras em  decrescerem  gradualmente  para  a  extremidade  mais  larga 
até  formarem  um  gume  cortante  arqueado  sem  signal  de  facetas 
obliquas.  Na  minha  collecção  de  Aljezur  ha  três  exemplares  e 
achei  mais  dois  na  exploração  que  fiz.  O  maior  tem  0m,262  de 
comprimento,  0m,Q14  de  largura  junto  ao  corte,  0m,019  na  extre- 
midade inferior  e  na  sua  espessura  quasi  geralmente  0m,024,  ao 
passo  que  nos  outros  exemplares  decresce  mui  sensivelmente 
para  as  extremidades  em  razão  da  curva  descripta  pela  face  pos- 
terior ser  maior  do  que  na  anterior.  Os  outros  exemplares  não 
attingem  tão  desenvolvidas  dimensões. 

3.°  grupo.  —  As  enxós  d'este  grupo  têem  as  duas  faces  quasi 
planas,  bordos  lateraes  angulosos  ou  ligeiramente  abatidos  e  o 
gume  cortante  formado  por  desengrossamento  gradual  nos  dois 
lados,  sendo  num  d'elles  um  tanto  maior  que  no  outro.  Ha  só 
dois  exemplares  d'este  typo  na  minha  collecção.  O  maior  mede 
0m,250  de  comprimento,  0m,058  de  largura  junto  ao  corte,  0ra,04G 
na  extremidade  estreita,  e  0m,18  na  maior  espessura.  O  menor 
tem  0m,142  de  comprimento,  0m,036  de  largura  junto  ao  corte, 
de  largura  máxima  0m,05G,  de  espessura  0m,026,  e  termina  em 
ponta  lascada. 

4.°  grupo.  —  Distinguem-se  os  exemplares  d'esle  grupo  em 
formarem  uma  ellipse  na  sua  secção  transversal  e  por  serem  con- 
vexas as  suas  duas  faces.  O  maior  tem  num  lado  a  faceta  do 
corte  um  tanto  arqueada,  e  comquanto  lhe  falte  uma  grande 
lasca  no  lado  contrario,  percebe-se  que  também  teve  um  desen- 
grossamento decrescente  até  á  arcadura  do  gume.  O  maior  mede 


180 

de  comprimento  0m,220,  de  largura  junto  ao  corte  0m,080,  na 
extremidade  inferior  0m,025,  e  0m,023  de  espessura.  Ha  outro 
exemplar  em  que  a  faceta  do  gume  cortante  é  pouco  assignalada. 
Tem  este  de  comprimento  0m,156,  de  largura  Qm,055,  na  extre- 
midade inferior  0m,025  e  de  espessura  0m,023. 

As  differenças  acima  indicadas,  que  notei  haver  na  collecçâo 
geral  dos  chamados  instrumentos  polidos  de  pedra,  me  levaram 
a  formar  os  quatro  grupos  precedentes  e  em  cada  um  d'elles  a 
indicar  os  característicos  que  os  distinguem. 

Ainda  ha  pouco  tempo,  todo  o  instrumento  de  pedra  com  um 
gume  cortante  era  geralmente  denominado  machado;  não  se  lhe 
dava  outra  designação;  e  comtudo  é  mui  provável,  que  as  gran- 
des collecções  existentes  nos  museus  abundem  em  géneros  di- 
versos. 

Só  a  collecçâo  de  Aljezur  fornece  quatro  géneros  n'esta  classe 
de  instrumentos  de  pedra  polida,  havendo  alguns,  como  se  aca- 
bou de  ver  em  relação  ao  género  enxó,  que  se  subdividem  em 
grupos  distinctos,  ou  sub-generos,  o  que  também  suecede  com 
os  machados  propriamente  ditos,  os  quaes  envolvem  differenças 
tão  sensíveis,  que  obrigam  igualmente  a  varias  subdivisões. 

Resta-me  descrever  o  escopro  e  a  goiva. 

Escopro.  —  O  escopro,  parecendo  á  primeira  vista  uma  va- 
riedade do  machado,  é  todavia  um  instrumento  diverso,  que  teve, 
mui  provavelmente,  applicações  especiaes  em  certos  trabalhos. 
Ha  o  escopro  simples  e  o  duplo  escopro.  Para  se  ter  approximada 
idéa  do  escopro  de  pedra,  bastará  conhecerem-se  as  varias  formas 
dos  escopros  de  ferro  actualmente  usados  em  varias  officinas.  Figu- 
rando na  estampa  C,  sob  os  n.os  2  e  2'  um  duplo  escopro,  formar- 
se-ha  idéa  do  que  pode  ser  o  de  um  só  corte,  comquanto  algu- 
mas variantes  haja  nesse  grupo.  O  n.°  2  representa  o  plano  que 
passa  pelos  gumes  cortantes  em  toda  a  sua  largura,  e  o  n.°  2'  a 
configuração  do  instrumento  observado  nos  seus  planos  lateraes. 

As  facetas  que  produzem  os  gumes  cortantes  á  feição  dos 
machados  polidos,  foram  desengrossadas  pelo  attrito  em  pedra 


181 

de  grés  até  convergirem  symelricamente  em  córlc  aíilado  nas 
duas  extremidades,  ficando  totalmente  polidas  e  com  os  bordos 
lateraes  abatidos.  Os  gumes  deixam  ver  que  estavam  falhados 
quando  o  instrumento  deu  entrada  no  deposito  em  que  foi  achado 
e  por  isso  essas  falhas  podem  ser  attribuidas  á  acção  do  traba- 
lho. Medindo,  porém,  a  extensão  de  0m,129,  seria  porventura  um 
tanto  curto  para  poder  ter  um  encabamcnto  central  e  trabalhar 
do  mesmo  modo  que  os  picões  com  que  os  canteiros  lavram  a 
pedra;  observando-se,  porém,  serem  os  seus  bordos  todos  poli- 
dos e  lustrados,  a  ponto  de  que  o  corte  ou  secção  transversal, 
daria  um  rectângulo  com  os  ângulos  externamente  abatidos  em 
curva  convexa,  deixa  presumir  que  teria  sido  uui  instrumento  de 
mão,  cujo  uso  parece  ser  denunciado  pelo  estado  dos  bordos. 

No  norte  da  Europa  acham-se  uns  escopros  prismáticos  e 
polidos,  ou  mesmo  apenas  esboçados.  Mais  para  o  centro  são 
raros  os  de  secção  transversal  prismática,  sendo  mais  vulgares 
os  de  secção  quasi  circular  ou  elliptica,  como  são  alguns  das  pa- 
lafittas  da  Suissa  e  outros  da  França. 

A  secção  transversal  dos  poucos  que  lêem  apparecido  em 
Inglaterra,  diz  o  sr.  de  Mortillet  poderem-se  collocar  entre  os 
rectangulares  da  Dinamarca,  e  os  quasi  cylindricos  do  território 
francez.  E  portanto  essa  forma  intermédia  dos  escopros  de  pedra 
de  Inglaterra,  que  mais  se  approxima  da  do  escopro  de  schisto 
amphibolico  de  Aljezur,  a  que  me  refiro. 

No  Musée  préhistorique,  planta  lii,  sob  o  n.°  486,  representa 
o  sr.  de  Mortillet  um  duplo  escopro  de  jadeíte,  que  deve  ser  mui 
similhante  ao  de  Aljezur  (avec  denx  tranchants,  mi  a  chaque  bout. 
Bassin  de  la  Durance-Vaachise),  que  diz  ter  elle  mesmo  desco- 
berto. 

No  Algarve  têem  apparecido  alguns  escopros  de  um  só  corte, 
mas  descrevel-os  todos  seria  impor  ao  leitor  uma  demasiada  im- 
portunidade.  Limito-me,  pois,  aos  que  são  mais  typicos  e  deixo 
os  seus  congéneres  para  poderem  ser  observados  no  museu  logo 
que  seja  permittida  a  sua  reorganisação. 


182 

Goivas  de  pedra.  —  A  goiva,  diz  o  sr.  cie  Mortillet,  «...  n  est 
aulre  chose  quune  herminette  dont  la  face  plane  est  plus  au  moins 
creusée. »  Com  effeito,  é  a  forma  das  que  descobri  no  Algarve, 
com  uma  só  faceta  obliqua,  formando  canelura  longitudinal  até  o 
gume  cortante,  sempre  ligeiramente  arqueado. 

Uma  que  appareceu  no  deposito  de  Aljezur,  em  vista  da  sua 
configuração  geral,  poderia  ser  aggregada  ao  4.°  grupo  das  en- 
xós, se  o  único  distinctivo,  que  lhe  é  próprio,  de  ter  a  faceta 
concava  entre  os  bordos,  não  a  incluísse  no  seu  género  especial. 
Mede  0m,154  de  comprimento,  0m,062  de  largura  junto  ao  corte 
e  termina  em  ponta  por  um  lascamento  diagonal,  sendo  de  0ra,030 
a  sua  máxima  espessura. 

Na  quinta  da  Lameira,  junto  ao  rio  de  Alvor,  onde  descobri 
os  restos  de  um  destruido  monumento  de  crypta  circular,  con- 
servando ainda  três  pedras  dispostas  em  curva,  e  junto  de 
uma  d'ellas  uns  núcleos  e  fragmentos  de  facas  de  silex,  ob- 
teve o  rev.d0  prior  da  Mexilhoeira  Grande,  o  sr.  Nunes  da  Glo- 
ria, um  interessante  instrumento  de  pedra  todo  polido,  que  foi 
primeiramente  uma  goiva  e  passou  depois  a  ser  amolado,  ficando 
com  um  corte  similhante  ao  do  formão  de  ferro,  mas  ligeiramente 
arqueado. 

Mede  este  pequeno  instrumento,  companheiro  de  outros  mui- 
tos com  que  aquelle  bom  amigo  me  obsequiou,  0m,072  de  com- 
primento, 0m,021  na  maior  largura  c  0m,016  na  sua  máxima 
espessura,  formando  a  secção  transversal  um  plano,  que  seria 
rectangular,  se  não  tivera  os  ângulos  abatidos.  A  faceta  em  que 
esteve  aberta  a  canelura,  cujos  restos  visivelmente  conserva,  tem 
de  altura  0m,010.  Sendo  portanto  um  instrumento  tão  estreito, 
que  mais  se  approxima  dos  formões  que  das  enxós,  tem  com- 
tudo  de  ser  incluído  neste  ultimo  género. 

As  goivas  são  raras  em  muitos  paizes,  mas  assaz  conhecidas 
numa  parte  do  norte  da  Europa  e  vulgares  nas  nações  scandina- 
vas,  principalmente  na  Dinamarca.  A  Finlândia  abunda  em  bel- 
los  exemplares.  Na  secção  geológica  de  Lisboa  ha  exemplares 
mui  perfeitos. 


183 

Cutelos  de  pedra. — Em  alguns  Jogares,  onde  abundam  vá- 
rios instrumentos  de  pedra  lascada  e  pedra  polida,  apparcccram 
uns  calhaus  de  ribeira,  geralmente  planos  nas  suas  duas  fac*es 
oppostas  mais  largas,  e  de  pouca  espessura,  cuja  forma  natural 
é  mui  similhante  a  de  certos  cutelos  de  ferro  não  rematados  em 
ponta,  de  folha  larga  e  cortante,  a  que  adhere  um  cabo  de  lar- 
gura menor,  permittindo  assim  uma  empunliadura  fácil  e  bem 
resguardada  para  a  mão. 

Estes  cutelos  naturaes  não  escaparam  á  vigilância  dos  artífi- 
ces da  pedra,  que  logo  mentalmente  lhes  viram  um  préstimo 
qualquer,  e  por  isso  os  foram  colligindo.  Um  d'estes  calhaus 
apresenta  o  cabo  completamente  preparado  a  choques  de  percu- 
tor, ficando-lhe  um  punho  quasi  cylindrico ;  outro,  num  lado  do 
bordo  mostra  principio  de  desengrossamento  pela  acção  do  altrito, 
e  finalmente  ha  mais  um,  cujo  bordo  está  inteiramente  picado, 
deixando  perceber  que  serviu  de  percutor.  As  suas  formas,  com- 
quanto  sempre  subordinadas  á  do  cutelo  de  ferro,  são  mui  va- 
riáveis e  de  diversas  dimensões. 

Pertencem  estes  instrumentos  á  minha  collecção  ultimamente 
organisada  e  não  depositada  no  museu,  tendo-me  sido  remetti- 
dos,  com  outros  objectos,  de  Aljezur,  de  Alcalá  e  da  Torre  dos 
Frades,  pelos  srs.  Gosta  Serrão,  Nunes  da  Gloria  e  António  Mar- 
cellino  Madeira.  Alguns  mais,  de  formas  similhantes,  vieram  com 
aquelles,  mas  sem  indicio  algum  de  trabalho.  Estariam  porven- 
tura em  deposito,  a  fim  de  serem  preparados  quando  fossem 
precisos. 

Para  dar,  finalmente,  approximada  idéa  da  configuração 
daquelles  calhaus,  que  suppra  a  deficiência  da  minha  descripção 
e  a  impossibilidade  de  representar  n'este  livro  uma  tão  copiosa 
variedade  de  objectos,  indico  os  instrumentos  figurados  com  os 
n.os  107  a  111  no  Musée  préhistorique,  que  o  sr.  De  Mortillet 
denomina  pointes  à  cr  cm,  com  a  diff  crença,  porém,  de  que  os 
cutelos,  a  que  me  refiro,  não  são  pontagudos.  Se  o  museu  do 
Algarve  chegar  a  ser  reorganisado,  os  apresentarei  nos  seus  re- 
spectivos logares.  Antes  d'isso,  não,  porque  não  os  quero  ver  se- 


184 

pultados  e  quiçá  expostos  a  serem-me  usurpados  com  os  que  lá 
tenho;  prefiro  conserval-os  aqui,  na  minha  rústica  habitação  cam- 
pestre, junto  á  margem  esquerda  do  rio,  que  banha  esta  praia 
de  $.  João  da  Barra,  habitada  pelo  povo  marítimo  das  Cabanas 
da  Conceição,  onde  os  homens  de  mais  qualificada  sabença  são: 
primeiro  o  sacristão,  logo  em  seguida  o  padre  prior,  o  regedor 
da  parochia,  o  professor  de  instrucção  primaria,  o  mestre  bar- 
beiro, que  ao  mesmo  tempo  é  sangrador,  dentista  e  clinico,  e  eu, 
em  ultimo  logar,  por  isso  que  também  presumo  saber  alguma 
cousa  de  primeiras  letras,  e  já  fui  sócio  da  real  associação  dos 
architectos  e  archeologos  portaguezes. 

Já  se  vê,  pois,  que  aqui  por  estes  sitios  não  ha  sábios  de 
marca  maior,  como  os  que  me  cubicaram  o  museu  do  Algarve, 
para  poderem  lavrar  sentença  acerca  d'estes  instrumentos,  de 
que  ainda  não  ha  noticia;  mas,  em  compensação  d'esta  falta,  não 
ha  também  quem  queira  figurar  de  sábio  á  custa  do  entendi- 
mento alheio.  Os  cutelos  de  pedra  aqui  ficam,  por  emquanto,  como 
protestando  contra  a  inépcia  dos  destruidores  das  instituições 
que  em  todos  os  paizes,  menos  neste,  são  mantidas  e  respeitadas 
em  beneficio  da  sciencia  e  do  decoro-  nacional. 

Seguindo  com  a  enumeração  dos  instrumentos  de  pedra, 
cumpre-me  registrar  um  outro  género,  que  julgo  não  ser  vulgar 
nas  collecções  existentes  no  paiz. 


Ponteiros  de  pedra.  —  O  ponteiro  é  um  instrumento  da  forma 
de  parallelipipedo,  ou  cylindrico,  geralmente  desengrossado  pelo 
attrilo  e  terminado  em  ponta  numa  extremidade.  Em  toda  a  ex- 
ploração feita  nesta  província  apenas  appareceram  dois,  um  em 
Aljezur,  bastante  estragado,  e  que  supponho  ter-se  extraviado,  e 
outro,  que  em  seu  logar  descreverei,  no  sitio  do  Saragoçal,  per- 
tenccnle  á  freguezia  da  Mexilhoeira  Grande,  o  qual  me  foi  offe- 
recido  pelo  rev.d0  prior  Nunes  da  Gloria,  e  vae  figurado  na  es- 
tampa íx  sob  o  n.°  2.  Ha  actualmente  ponteiros  de  aço  mui  si- 
milhantes  áquelles,  e  mui  provavelmente  serviriam  para  abrir 


185 

cavidades  em  pedras  de  menos  rijeza,  como  eram  as  dos  graes, 
de  que  adiante  darei  noticia. 

Trituradores.  —  O  género  triturador  abrange  varias  espécies, 
ou  antes  umas  adversas  especialidades,  cuja  maior  parte  mais 
propriamente  podéra  inscrever-se  na  classe  dos  instrumentos  de- 
nominados armas  de  guerra.  Tal  é  o  que  se  julga  feliz  indepen- 
dente, quando  usa  e  abusa  dos  (mal  empregados!)  recursos  da 
sua  opulência  para  deprimir  os  deslembrados  da  fortuna ;  tal  é  o 
politico  de  má  catadura,  que,  quando  sobe  ao  poder,  já  leva  o 
azedado  bestunto  inclinado  a  arrazar  todos  os  vencidos  para  pôr 
em  relevo  as  mais  achatadas  mediocridades  do  seu  bando;  tal  é 
o  magistrado  bronco,  o  burocrata  cabeçudo,  ou  qualquer  outro 
empavezado  mandão,  quando  sophisma,  torce  ou  retarda  a  jus- 
tiça que  deve,  ou  faz  o  que  não  deve;  tal  é  o  inepto  a  quem  uma 
desatinada  fortuna  abriu  carreira,  e  que  na  carreira  a  todos  quer 
deter;  tal  é  o  impostor,  quando  pensa  valer  tudo  quanto  aos  ou- 
tros pretende  tirar!  Não  é,  porém,  d'estes  nefandos  trituradores, 
que  são  a  lepra,  o  opprobrio  e  a  miséria  das  sociedades  viventes, 
que  me  cabe  aqui  esboçar  a  synopsis.  EUes  ahi  andam,  e  em  tão 
alevantado  plano,  que  não  ha  quem  os  não  lobrigue  e  conheça. 

Passarei  a  fallar  dos  outros,  dos  de  pedra  (menos  duros  tal- 
vez), que  foram  prestadios  instrumentos  de  trabalho  nas  mãos 
d'esses  selvagens  dos  tempos  neolithicos,  que  dizem  ser  nossos 
avoengos,  e  elles,  ainda  para  peior,  descendentes  em  linha  recta 
de  uns  animalejões  recentemente  baptisados  sob  o  nome  de  an- 
thropopithecos,  com  que  a  sciencia  moderna  nos  quer  prender  á 
pelluda  raça  dos  anthropomorphos,  mas  em  que  eu  ainda  não 
estou  muito  crente,  em  razão  de  umas  certas  razões,  que  não 
vem  aqui  a  propósito  expender. 

Os  trituradores  de  pedra,  emfim,  são  uns  calhaus  de  varias 
formas,  alguns  quasi  cylindricos,  que  serviriam  para  pisar  e 
reduzir  a  miúdos  fragmentos  algumas  substancias  duras,  que 
juntamente  com  elles  encontrei  em  vários  depósitos  neolithicos, 
taes  como  a  limonite  e  o  cinabrio,  apreciados  mineraes  de  que 


186 

provavelmente  se  serviam  os  homens  da  ultima  idade  da  pedra, 
para  fazerem  as  tintas  com  que  pintavam  a  pelle,  sem  que  toda- 
via fossem  elles  os  primeiros  que  tão  singular  adorno  usassem, 
porque  a  tatuagem  é  originariamente  paleolitliica. 

A  estação  de  Aljezur  reservava  ainda  um  d'esses  calhaus, 
tendo  uma  extremidade  ligeiramente  picada  pelos  ângulos  dos 
fragmentos  triturados,  e  appareceu  um  na  Torre  dos  Frades, 
conservando  adherentes  algumas  partículas  ou  pequenos  grumos 
de  hematite  vermelha. 

Existem,  pois,  confundidos  em  varias  collecções  muitos  in- 
strumentos de  trabalho,  que  tiveram  necessariamente  applicações 
especiaes,  sem  que  todavia  se  possam  indicar,  e  é  d'esse  grupo 
assaz  confuso,  que  me  parece  ter  podido  separar  os  trituradores 
de  pedra,  os  quaes  só  poderão  ser  bem  reconhecidos  quando  fo- 
rem directamente  observados  e  comparados  no  museu. 

Pilões.  —  Com  preferencia  a  qualquer  outro  termo,  emprego 
este  para  designar  uns  calhaus,  geralmente  de  forma  oval,  sendo 
alguns  de  mui  pequenas  dimensões,  que  colligi  em  depósitos  neo- 
lithicos  e  até  n'oulros  da  idade  do  bronze.  Quem  os  observar  á 
simples  vista,  julgará  serem  apenas  uns  seixos  rolados  de  ribeira, 
mas  sabendo-se  que  alguns  foram  achados  juntamente  com  graes 
de  pedra,  e  notando-se  que  a  sua  superfície  não  é  embaciada, 
como  a  das  pedras  roladas,  mas  quasi  sempre  lustrosa,  não  dei- 
xará de  attribuir  esta  circumstancia  ao  uso  que  tivessem  tido 
num  qualquer  trabalho,  e  por  isso  poderão  facilmente  confun- 
dir-se  na  serie  dos  brunidores. 

Ha,  porém,  em  alguns  pilões  d'esta  forma  um  indicio  que 
melhor  os  caracterisa,  e  vem  a  ser  quando  numa,  ou  nas  suas 
duas  extremidades,  apparecem  estrias  provenientes  do  attrito, 
em  geral  de  forma  curvilínea,  cruzando-se  e  cortando-se  irregu- 
larmente em  numerosos  pontos,  o  que  muitas  vezes  só  se  pôde 
observar  com  o  auxilio  do  microscópio;  e  é  o  que  similhantemente 
todos  podem  ver  nos  pilões  ou  mãos  de  gral,  de  que  se  faz  uso 
nas  drogarias,  laboratórios  e  n'oulras  officinas  para  reduzirem  a 


187 

pó  varias  drogas  de  rija  consistência,  principalmente  as  que  são 
crystallisadas,  cujas  arestas  angulares  riscam  todas  as  superfícies 
em  que  o  trabalho  se  exerce. 

Além  d'estes  descobri  outros  pilões,  que  muito  melhor  seria 
mostral-os  que  descrevel-os,  porque  as  suas  variadas  formas, 
sempre  irregulares,  não  permittem  ser  descriptas  sem  o  emprego 
de  uma  prolixidade  fastidiosa  e  importuna,  de  que  somente  re- 
sultaria confusão. 

Tal  é,  pois,  uma  das  grandes  conveniências  que  os  museus 
offerecem  ao  estudo  publico  I 

Referindo-me,  porém,  aos  que  consegui  colligir,  divido-os 
em  dois  grupos  distinctos,  comquanto  julgue  terem  todos  eiles 
sido  destinados  á  polvorização  dos  cereaes,  que  cerlamente  já 
eram  uíilisados  como  substancias  alimentícias  na  ultima  idade 
da  pedra,  embora  haja  quem  supponha  terem  sido  os  homens 
da  idade  do  bronze  os  primeiros  agricultores  e  fabricantes  de 
pão ;  poisque,  se  assim  fora,  não  haveria  modo  de  explicar  qual 
teria  sido  a  applicação  de  uma  infinidade  de  pedras,  de  que 
adiante  faltarei,  visivelmente  preparadas  para  a  moagem,  que 
com  frequência  apparecem  em  quasi  todas  as  estações  neoli- 
thicas. 

Ao  primeiro  grupo  pertencem  umas  pedras  planas  numa  face 
e  na  outra  convexas,  assim  como  as  que  têem  planas  e  paralle- 
las  duas  faces.  Para  estas  pedras  servirem  de  pilões,  foram  ne- 
cessariamente amoladas,  a  fim  de  se  poderem  ajustar  sobre  ou- 
tras pedras  fixas,  igualmente  planas,  que  permittissem  a  moagem 
dos  trigos  e  cevadas,  cujas  espécies  já  então  eram  cultivadas. 

No  segundo  grupo  inscrevo  uns  outros  pilões,  cuja  superfície 
geral  é  dividida  em  dois  e  mais  planos  convexos,  os  quaes  pare- 
cem ter  sido  adaptados  a  umas  pedras  concavas  de  moagem,  de 
que  tenho  alguns  exemplares,  tanto  no  museu  como  nas  novas 
collecções  que  organisei  n'esta  província.  Aljezur  forneceu  um 
d'estes  calhaus,  cuja  rocha  é  a  foyaite  de  Monchique. 


188 

Mós  de  pedra.  —  O  homem,  obrigado  pelas  necessidades  da 
vida,  teve  de  inventar  e  reunir  uns  certos  processos  para  poder 
aproveitar  os  fructos  que  a  lerra  produzia.  No  período  neolithi- 
co,  ou  esta  parte  da  Europa  foi  invadida  por  uma  nacionalida- 
da,  que  comsigo  trouxe  o  conhecimento  da  agricultura,  os  ce- 
reaes  destinados  a  uma  parte  da  sua  alimentação  para  serem 
semeados  e  reproduzidos  pela  terra,  o  processo  de  reduzir  os  ce- 
reaes  a  farinha  e,  mais  ainda,  os  da  fabricação  e  cozedura  do 
pão,  ou  as  populações  indígenas  foram  obtendo  e  descobrindo 
cada  um  d'estes  elementos  até  o  ponto  de  poderem  ser  emprega- 
dos para  produzirem  o  seu  pratico  resultado. 

Pouco  importa,  n'este  logar,  optar  por  uma  ou  outra  hypo- 
these,  porque,  em  qualquer  delias,  logo  que  os  cereaes  foram  in- 
tencionalmente semeados  para  servirem  de  alimentação,  a  con- 
sequência immediata  era  preparal-os  para  a  moagem  apóx  a 
colheita,  ou  nas  occasiões  em  que  fossem  precisos.  Também 
pouco  importa  saber-se  agora,  se  foi  a  Ásia  que  enviou  á  Eu- 
ropa o  primeiro  moleiro,  ou  se  a  Europa,  independentemente  da 
Ásia,  logrou  o  condão  de  poder  improvisar  essa  utilissima  enti- 
dade industrial. 

O  que,  em  meu  conceito,  está  perfeitamente  demonstrado,  é 
que  em  pleno  período  neolithico  o  processo  da  moagem  da  fari- 
nha era  geralmente  conhecido  e  usado;  o  que  prova  que  naquelle 
período  foi  que  a  industria  agrícola  fez  a  sua  apparição  n'estas 
plagas,  tão  distantes  do  Cáucaso,  d'onde  se  diz  terem  vindo  as  va- 
riedades classificadas  pelo  sapientissimo  Heer;  o  que  para  mim 
ainda  não  é  caso  suficientemente  averiguado. 

Não  somente  nas  palafittas,  mas  também  em  varias  estações 
terrestres  da  ultima  idade  da  pedra,  tem  o  trigo  sido  achado,  e  este 
facto  deixa  immediatamente  perceber  que  já  então  era  conhe- 
cida e  praticada  a  sua  pulverização. 

Em  quasi  todas  as  estações  neolithicas,  que  explorei,  havia 
grandes  pedras  com  uma  superfície  plana  e  outras  com  espaçosa 
concavidade,  acompanhadas  daquellas  que  acima  ficam  descri- 
ptas  sob  a  designação  de  pilões.  Até  esta  data  umas  e  outras 


189 

íêem  sido  consideradas  corno  instrumentos  destinados  á  moagem 
de  cereaes,  e,  a  meu  ver,  não  me  parece  que  possa  ser-lhes  at- 
tribuido  outro  destino,  salvo  uma  única  excepção;  pois  ao  passo 
que  em  tão  imperfeitos  apparelhos  o  trigo  era  moído,  o  operador 
moía  também  os  braços  e  a  paciência  com  a  mais  admirável  per- 
severança. Tal  era  a  força  da  necessidade,  que  a  tudo  obriga! 

A  estação  de  Aljezur  forneceu  vários  fragmentos  d'cssas  pe- 
dras, assaz  frequentes  nas  outras  estações  neolitbicas  d'esta  pro- 
víncia. Se  me  tivesse  disposto  a  colligil-as,  poderia  com  ellas 
carregar  uma  carreta.  Arrecadei  porém  algumas,  que  podem  ser 
observadas  no  museu,  emquanto  não  as  mandarem  deitar  fora,  e 
nas  ultimas  collecções  que  organisei,  onde  não  ha  que  temer  de- 
liberações boçaes,  sendo  notável  que,  na  sua  maioria,  represen- 
tam a  rocha  foyaitica  até  á  estação  da  Torre  dos  Frades,  situada 
na  extremidade  oriental,  distante  muitas  léguas  do  tracto  eru- 
ptivo  monchicano. 

Graes  de  pedra. — Neste  género  de  utensílios  de  trabalho 
encontrei  três  typos  principaes,  que  mui  cuidadosamente  col- 
ligi,  por  serem  de  fácil  acondicionamento  e  não  em  demasia  abun- 
dantes: o  primeiro  é  representado  por  varias  pedras  em  que  ha 
uma  cavidade  pouco  funda  e  de  curto  diâmetro;  o  segundo  é  o 
gral  perfeitamente  fabricado,  como  os  que  represento  na  estampa 
vií,  cuja  descripção  darei  em  seu  competente  logar;  e  o  terceiro 
é  o  duplo  gral,  isto  é,  a  pedra  com  duas  cavidades  oppostas, 
ou  com  duas  e  mais  cavidades  no  mesmo  plano,  não  deixando 
estes  serem  confundidos  com  alguns  percutores  em  que  foram 
excavadas  umas  depressões  adaptadas  á  fixação  dos  dedos. 

Tenho  um  duplo  gral  de  calcareo  oolilhico,  achado  em  Monte 
de  Roma,  perto  de  Silves,  que  n'aquella  cidade  me  foi  offerecido 
pelo  cavalheiro  João  de  Mascarenhas  Netto.  É  muito  regular  e 
bem  trabalhado;  tem  a  configuração  que  toma  uma  pequena  es- 
phera  de  borracha,  sendo  ligeiramente  apertada  com  dois  dedos 
n'um  dos  seus  diâmetros,  e  mede  no  transversal  0,n,067  e  no 
que  passa  pelo  centro  das  duas  cavidades  0m,033.  Com  o  mi- 


190 

croscopio  divisam-se  num  dos  fundos  umas  ténues  adherencias 
rubras,  que  julgo  serem  restos  de  tinta,  e  não  me  admira  que 
assim  seja,  porque  um  outro  gral  da  minha  collecção,  tendo  ap- 
parecido  impregnado  de  hematite  vermelha,  veiu  mostrar  qual 
havia  sido  a  sua  applicação  e  confirmar  o  conceito,  geralmente 
admittido,  de  terem  os  pequenos  graes  servido,  talvez  exclusi- 
vamente, para  a  moagem  das  tintas  com  que  os  indivíduos 
d'aquelles  tempos  pintavam  a  pelle,  alguns  adornos  e  outros 
objectos. 

0  uso  das  tatuagens  é  porém  muito  mais  antigo ;  pois  são 
numerosas  as  estações  paleolilhicas  em  que  se  têem  achado  mui- 
tos graes  acompanhados  de  substancias  colorantes,  e  bem  assim 
grande  quantidade  de  ossos  partidos,  deixando  perceber  que  as 
medullas  eram  empregadas  na  preparação  das  tintas.  A  estes 
graes  parece  corresponderem  os  primeiros  pilões  a  que  me  re- 
feri. 

A  collecção  dos  graes  extrahidos  dos  depósitos  neolithicos  e 
dos  da  transição  da  ultima  idade  da  pedra  para  a  idade  do 
bronze,  como  mostrarei  no  segundo  volume  d'esta  obra,  tem  ex- 
cellentes  exemplares.  No  museu  estão  apenas  dois,  que  deixei 
depositados,  pertencentes  á  estação  neolithica  de  Alcalá. 

A  estação  de  Aljezur  forneceu-me  um  único  gral,  ou  pedra 
em  que  apenas  ha  uma  depressão  ou  cavidade,  que  bem  se  reco- 
nhece ter  sido  feita  intencionalmente.  Existe  na  minha  collecção 
não  depositada. 

Armas  de  caça  c  de  guerra 

As  estações  neolithicas  da  Europa  têem  manifestado  varias 
armas  de  silex  e  de  outras  rochas,  que  ainda  não  encontrei  n'esta 
provinda,  nem  me  consta  que  se  tenham  achado  no  território 
portuguez;  taes  são  os  bem  manufacturados  punhaes  de  silex 
dos  paizes  scandinavos,  as  lanças  de  folha  estreita  e  alongada, 
o  picarete,  e  varias  outras  que  têem  apparecido  em  diversas  re- 
giões, que  o  sr.  De  Mortillet  representa  no  Musée  préhistorique. 


191 

Com  referencia  aos  descobrimentos  ate  hoje  effeituados  no 
Algarve,  podem  ser  indicados  quatro  géneros  principacs,  tendo 
porem  cada  um  d'elles  diversas  variantes,  e  são  o  machado,  o  pi- 
cão, a  ponta  de  frecha  e  a  ponta  de  lança. 

Machado.  —  O  machado,  que  já  descrevi  com  duas  formas 
mais  geraes,  pertencendo  a  cada  uma  d'essas  formas  diversas  va- 
riedades, embora  seja  considerado  como  tendo  sido  o  mais  po- 
deroso e  generalisado  instrumento  de  trabalho,  não  pode  deixar 
de  ser  ao  mesmo  tempo  admittido  como  uma  das  mais  terríveis 
armas  de  combate,  oííensiva  e  defensiva.  Nenhuma  outra  arma 
poderia  suppril-o  no  encontro  de  dois  bandos  inimigos,  em  que 
a  arma  de  arremeço  já  não  podesse  ser  utilisada  com  tão  fácil 
agilidade  e  destreza  como  o  machado  encabado,  brandido  por 
braço  adestrado  e  vigoroso. 

Mesmo  como  arma  de  caça,  seria  indispensável  para  abater 
a  fera  na  sua  investida  contra  o  homem,  o  veado,  o  boi,  a  cabra  e 
todo  o  animal  simplesmente  ferido  pela  frecha.  Era  o  compa- 
nheiro inseparável  do  homem  nas  lides  do  trabalho,  no  campo 
de  batalha,  e  no  exercício  venatorio;  era  o  constante  fiador  da 
sua  individualidade,  o  defensor  da  sua  existência,  o  seu  muilas 
vezes  primeiro  e  outras  tantas  extremo  recurso.  Não  pode  por- 
tanto o  machado  ser  excluído  do  arsenal  de  guerra  d'esses  tem- 
pos, em  que  o  estado  de  paz  não  seria  porventura  o  mais  seguro 
e  permanente. 

Picão. — Esta  nomenclatura  poderá  causar  estranheza  aos 
archeologos,  por  ser  nova  e  não  partir  de  algum  patriarcha  da 
sciencia;  mas  como  a  forma  dos  instrumentos,  a  que  a  refiro,  não 
é  nova,  e  até  hoje  têem  elles  ido  passando  sem  designação  espe- 
cial, sou  eu  que  lh'a  dou,  deixando  a  todos  o  livre  direito  de  aco- 
lhel-a  ou  rejeital-a.  Façam  isso  como  quizerem.  Eu  é  que  não 
posso  deixar  ignorados  por  mais  tempo  uns  instrumentos,  que 
descobri  em  diversos  logares,  cuja  forma  parece  derivada  da  do 
celebre  instrumento  de  silex  lascado  das  alluviões  quaternárias 


m 

de  Saint-Acheul,  com  a  differença  porém  de  serem  polidos,  ou 
desengrossados  pelo  altrito,  lodos  os  do  Algarve. 

Um  d'estes  instrumentos  é  de  quartzo  um  lanto  crystallino, 
de  forma  amygdaloidal,  totalmente  desengrossado  e  alisado  em 
pedra  de  amolar,  terminando  em  ponta  aguda  uma  das  suas  ex- 
tremidades. Foi  necessariamente  encabado  para  ferir  de  ponta. 
Achou-se  avulso  no  serro  do  Haver,  perto  de  Bensafrim,  e  ahi 
mesmo  o  comprei.  Tem  de  comprimento  0m,084,  de  máxima  lar- 
gura 0m,053,  e  de  espessura  0m,041. 

Obtive  outro  da  mesma  forma  no  monte  de  Roma,  perto  de 
Silves,  de  rija  diorite,  atravessado  diagonalmente  por  um  veio  de 
quartzo,  tendo  de  comprimento  0m,083,  de  largura  0m,046  e  de 
espessura  0m,032.  Este  vae  figurado  na  estampa  xiii  sob  o  n.°  3 
e  o  antecedente  na  estampa  iv  sob  o  n.°  1 

Colligi  outros  três  exemplares  na  Torre  dos  Frades,  cuja  for- 
ma, na  sua  secção  vertical,  é  a  da  pyramide  cónica,  tendo  po- 
rém convexa  a  base,  assim  como  é  a  dos  dois  já  indicados.  Estes 
da  Torre  dos  Frades  são  quasi  das  mesmas  dimensões  e  todos  de 
quartzo,  desengrossados  e  alisados  em  pedra  de  amolar.  O  maior 
mede  no  eixo  longitudinal  0m,144,  no  tranversal  máximo  0m,001 
e  no  perpendicular  a  este  0m,048.  Foram  achados  em  1876  na 
galeria  de  um  dolmcn  coberto,  que  explorei  em  1882,  sendo-me 
offerecidos  pelo  sr.  António  Marcellino  Madeira.  Tenho  dois  de- 
positados no  museu  do  Algarve,  e  o  outro  existe  aqui  na  mi- 
nha habitação  campestre.  Represento  um  na  estampa  xxiii,  sob 
o  n.°  2. 

Não  ha  ver  em  alguns  d'estes  instrumentos  o  minimo  indicio 
de  uso,  parecendo  assim  não  terem  sido  applicados  ao  trabalho, 
ao  passo  que  seriam  necessariamente  penetrantes  e  destruidoras 
armas  de  guerra,  sendo  encabados  e  manejados  por  mão  ro- 
busta e  habituada  a  não  errar  o  golpe.  Incluo-os,  pois,  na  classe 
das  armas  de  guerra,  emquanto  não  houver  prova  em  contra- 
rio. 


ALJESUR 


Est.  D 


eÚ>». d.J.td  yJa Graça 


J.UAofrKphi*.  fàJmprtnsa,  Nacioruã. 


193 

Fgintas  de  frecha. — Estes  artefactos,  mais  geralmente  de 
silex,  comquanto  os  haja  de  quartzo,  de  obsidiaria  e  ainda  de 
outras  rochas,  são  considerados  em  todos  os  paizes  como  armas 
de  guerra  entre  outros  géneros  de  armas  de  arremeço  da  balística 
prehistorica.  As  suas  formas  variam  muitíssimo;  algumas  po- 
rém não  chegaram  a  esta  extremidade  occidental  da  Europa, 
onde  comtudo  ha  exemplares,  não  conhecidos  n'outros  paizes, 
que  dão  um  certo  característico  a  esta  região.  Para  melhor  se 
perceber  este  asserto,  bastará  comparar  as  formas  que  vão  figura- 
das n'este  livro  e  no  immediato  com  as  que  reproduziram  os  srs. 
Adriano  e  Gabriel  de  Mortillet  no  seu  utilíssimo  Musée  préhisto- 
riqae. 

É  um  caso  singular,  certamente,  mas  não  é  o  único  que 
dá  a  esta  zona  geographica  uma  feição  especial. 

Não  são  tão  variados  como  os  de  Alcalá,  os  da  Nora  e  os  da 
Marcella  os  typos  das  frechas  de  silex  de  Aljezur.  Predomina  nos 
d'esta  ultima  estação  a  forma  de  triangulo  isosceles  com  diversas 
variantes  na  base,  que  é  approximadarnente  rectilínea,  mais  ao 
menos  concava,  aberta  em  angulo  reintrante,  ou  formando  arco, 
sendo  as  suas  arestas  lateraes  onduladas  ou  denteadas  por  effeito 
de  pressão  ou  por  cuidadosos  toques  de  percussão.  Taes  são 
os  exemplares  que  figuro  na  estampa  D  com  os  n.os  4,  5,  7  e 
8  a  12,  e  ria  estampa  E  com  os  n.os  1,  3,  4,  6  e  8. 

Duvida  alguma  pode  haver  acerca  da  significação  das  pon- 
tas de  frecha ,  pois  em  muitas  estações  têem  apparecido  craneos 
e  outros  ossos  humanos,  assim  como  ossos  de  animaes,  penetra- 
dos por  essas  mortiferas  lascas  de  silex,  o  que  dá  inteira  prova 
de  que  eram,  com  effeito,  armas  de  guerra  e  de  caça.  Muitos  ca- 
sos foram  verificados  pelo  dr.  Prunières  nos  dolmens  e  caver- 
nas que  explorou  no  departamento  de  Lozère,  entre  os  quaes 
também  achou  ferimentos  que  não  produziram  a  morte,  sendo 
cicatrizados  por  uma  excrescência  de  ossificação,  que  chegou  quasi 
a  envolver  e  cobrir  o  projéctil. 

Não  são  as  mais  bellas  as  pontas  de  frecha  de  Aljezur ;  ver- 
se-hão  nas  estampas  seguintes,  principalmente  as  de  Alcalá,  da 

Í3 


104 

Nora  o  da  Marcclla,  entro  as  quaes  ha  formas  novas  e  exempla 
res  perfeitíssimos. 

Frechas  cortantes.- — Em  muitas  estações  prehistoricas  têem 
os  exploradores  achado  umas  lascas  de  silex,  parecendo  fra- 
gmentos de  facas,  de  forma  proximamente  triangular  ou  de  trapé- 
zio, com  a  aresta  mais  larga  terminada  em  gume  cortante;  e,  com 
effeito,  algumas  são  fragmentos  de  facas  obliteradas,  embora  ou- 
tras pareçam  haver  sido  lascadas  intencionalmente.  Muitos  (Tes- 
tes instrumentos,  no  conceito  de  alguns  archeologos,  são  consi- 
derados como  laminas  cortantes,  emquanto  outros  julgam  terem 
sido  frechas,  que  se  fixavam  em  delgadas  varas  de  madeira  fen- 
didas numa  extremidade,  onde  seriam  entaladas  e  seguras  com 
betumes,  ficando-lhes  a  aresta  cortante  collocada  em  sentido  ho- 
risontal,  a  fim  de  poderem  ser  apontadas  ás  pernas  dos  animaes 
para  lhes  cortarem  os  músculos  e  os  deterem  na  carreira. 

O  caso  é  que  no  grupo  das  laminas  cortantes  andam  confun- 
didas muitas  das  referidas  frechas,  como  bem  se  podem  denomi- 
nar, sabendo-se  que  ainda  actualmente  ha  povos  selvagens  que 
as  usam  nos  seus  exercícios  venatorios  como  meio  de  facilitarem 
a  captura  dos  animaes.  E  uma  invenção  propriamente  barbara, 
mas  ao  mesmo  tempo  engenhosa. 

Sob  a  epigraphe  lascas  cortantes,  já  fiz  referencia  a  um  in- 
strumento que  figuro  na  estampa  E  sob  o  n.°  5,  o  qual  pode  ap- 
proximadamente  dar  idéa  das  frechas  cortantes,  sendo  comtudoum 
fragmento  de  faca  de  silex,  destacado  por  fractura  diagonal,  ficando 
por  isso  com  uma  só  aresta  e  com  a  feição  de  uma  excellente  la- 
mina cortante. 

Na  collecção  geral  dos  instrumentos  de  silex  lascados  poder- 
se-hão  separar  algumas  formas  que  mais  se  approximem  dos  ty- 
pos,  que  o  sr.  barão  de  Baye  inscreveu  sob  a  nomenclatura  de 
flèches  á  tranchant  transversal  e  que  eu  denomino  frechas  cortan- 
tes, por  me  parecer  assim  dar  sufficiente  idéa  do  objecto,  dei- 
xando aos  archeologos  o  livre  arbítrio  de  preferirem  o  que  me- 
lhor lhes  pareça. 


ALJESUR 


tf*t.  JB. 


&e*J)jLE<?<i  V 


Chu.  i&  J?.  €£t*\y&ÍO& 


195 

A  estação  de  Aljezur  sómenle  forneceu  a  referida  lamina  n.°  5, 
figurada  na  estampa  E,  e  outra  similhante,  que  já  ficou  repre- 
sentada na  estampa  B  com  o  n.°  5,  a  qual  poderia  também  con- 
fundisse com  as  frechas  cortantes,  se  não  fosse  um  fragmento  de 
faca  habilmente  transformado  em  serra  de  fina  dentieulação. 

Nos  seus  respectivos  logares  indicarei  os  exemplares  que 
julgo  poderem  ser  incluídos  no  grupo  das  frechas  cortantes. 

Pontas  de  lança.  —A  estampa  D,  sob  o  n.°  G  e  a  estampa  E 
sob  os  n.os  2  e  7  mostram  a  forma  e  dimensões  das  três  pontas  de 
lança  de  silex  que  havia  na  estação  mortuária  de  Aljezur,  reuni- 
das a  ossos  humanos  e  a  vários  grupos  de  artefactos  de  pedra  la- 
scada e  de  pedra  polida.  Todas  estas  têem  a  forma  do  triangulo 
isosceles.  A  base  da  primeira  é  quasi  rectilínea,  salvo  um  pequeno 
desvio,  que  lhe  dá  o  aspecto  de  ligeira  concavidade  parcial;  as  duas 
ultimas,  ao  contrario,  deixam  ver  uma  pouco  sensível  excrescên- 
cia peduncular,  havendo  quasi  no  centro  da  de  n.°  2  uma  falha  na- 
tural. Todas  foram  lavradas  a  choques  de  percussão  em  placas  de 
silex,  cuja  espessura  máxima  no  eixo  vertical  mede  apenas  0m,006, 
decrescendo  as  suas  bem  trabalhadas  faces  convexas  e  oppostas 
até  formarem  os  bordos  lateraes  arestas  onduladas,  como  se 
observa  nas  melhores  serras  de  silex,  sem  que  coro  tudo  se  pos- 
sam inscrever  n'esse  género  de  instrumentos,  porque,  a  ser  assim, 
seria  mister  juntar-lhe  também  todas  as  pontas  de  frecha,  que, 
na  sua  maioria,  têem  o  mesmo  característico. 

A  forma  d'estas  armas  de  arremeço  é  excepcional  e  como 
privativa  d'esta  região  geographica,  sendo  similhantes  no  typo  ás 
pontas  de  frecha  triangulares  que  figuro  em  diversas  estampas 
d'este  livro. 

Os  srs.  A.  e  G.  de  Mortillet  representam  no  seu  Musée  pré- 
historique,  pi.  xliv,  sob  n.°  400,  um  exemplar  pertencente  ao 
museu  geológico  da  escola  polytechnica  de  Lisboa,  denominan- 
do-o,  porém,  pointe  de  javelot;  mas  nem  as  pointes  de  lance,  que 
mostra  na  pi.  xli,  nem  as  de  javelot  na  pi.  xlii,  têem  a  mí- 
nima similhança  com  estas  mui  bellas  e  bem  trabalhadas  placas 


19G 

triangulares  de  silex.  Os  srs.  de  Mortillet,  sábios  e  atiladíssimos 
classificadores  da  industria  prehistorica,  parecem  hesitar  ácêrca 
da  nomenclatura  correspondente  a  esíes  instrumentos,  que  muito 
attrahiram  a  sua  atlenção  quando  honraram  com  as  suas  visitas 
o  museu  archeologico  do  Algarve,  onde  viram  uma  ponta  de 
lança  do  dolmen  coberto  de  Alcalá  e  duas  mui  perfeitas,  de  base 
rectilínea,  do  da  Marcella. 

Eis-aqui  o  que  a  este  respeito  refere  o  sr.  G.  de  Mortillet  no  seu 
precioso  livro  intitulado  Le  Préhistorique  (pag.  526):  «En  Por- 
tugal, il  y  a  aussi  de  pointes  de  javelot  qu'on  pourrait  même  ap- 
peler  pointes  de  lance,  qui  ont  une  forme  toute  spéciale.  Ce  sont 
des  plaquettes  de  silex,  largement  triangulaires,  retouchées  tout 
ou  partout  sur  les  deux  faces  ayant  à  la  base  (refere-se  a  da 
escola  polytechnica)  comme  un  três  court,  mais  três  large  appen- 
dice  en  guise  de  pédoncule». 

Faltam  portanto  n'esta  região  geographica  os  typos  de  lan- 
ças e  dardos  característicos,  principalmente,  das  estações  neoli- 
thicas  do  norte.  No  Algarve,  por  emquanto,  não  tenho  achado 
outros  e  por  isso,  para  os  differeuçar  das  pontas  de  frecha  de 
formas  similhantes,  os  inscrevo  aqui  sob  a  nomenclatura  depon- 
has de  lança.  Quem  melhor  souber  o  uso  que  lhes  deu  o  povo 
que  vivia  neste  ultimo  torrão  do  Occidente  na  ultima  idade  da 
pedra,  dirá  com  mais  acerto  como  se  devem  denominar. 

O  arsenal  de  guerra  neolithico,  se  mais  alguma  cousa  por 
aqui  teve,  jaz  ainda  escondido  nos  mantos  de  terra  que  ninguém 
até  hoje  ousou  desdobrar.  A  medida  que  forem  sendo  abertas  as 
dobras  e  pesquizadas  as  pregas  d'esse  manto,  interessantes  no- 
vidades poderão  talvez  apparecer.  Por  ora  as  armas  são  pouco 
variadas;  mas  ainda  assim  poderiam  ter  armado  duas  aguerridas 
legiões,  uma  de  porta-machados  e  outra  de  frecheiros.  Não  inven- 
taram elles  a  pólvora,  é  verdade,  mas  eram  mestres  no  preparo 
e  manejo  da  pedra;  e  pode  suppor-se  que  seriam  adestrados 
guerreiros,  sendo  por  necessidade  obrigados  ao  exercício  da  caça. 
Como  caçadores  tinham  de  ser  vigilantes,  resolutos  e  ágeis. 

Era  a  caça  a  sua  escola  de  evoluções  estratégicas;  era  n'essa 


197 

escola  pratica  que  o  atirador  exercitava  a  pontaria,  o  ataque  con- 
tra o  inoffensivo  que  ia  fugindo,  c  a  lueta  com  aquclle  que  o  in7 
vestia;  finalmente,  sem  exageração,  pode  julgar-se  que  aquelles 
pelejadores  tinham  desenvolvido  aptidões  mais  radicalmente  mar- 
ciaes  do  que  os  soldados  de  hoje,  não  ainda  experimentados  na 
varia  sorte  dos  combates ;  c  chego  verdadeiramente  a  sympathi- 
sar  com  os  que  viveram  aqui,  n'esla  região  algarviense,  pelo  sim- 
ples facto  de  não  usarem  armas  traiçoeiras ;  pois  não  ha  encon- 
trar um  único  punhal  de  silex  nos  seus  depósitos  mortuários;  o 
que  me  leva  a  memoral-os  com  a  convicção  de  que  não  eram  si- 
cários como  os  scandinavos  e  os  do  norte  da  França,  exímios 
fabricantes  e  portadores  d'essas  armas  nefandas. 

Passando  agora  a  registrar  os  restantes  característicos  da  es- 
tação neolithica  de  Aljezur,  darei  noticia  das  placas  de  schisto 
ardoziano  com  gravuras  geométricas,  de  um  amuleto  de  pedra 
da  forma  de  machado,  de  uma  conta  de  stealite,  e  da  cerâmica, 
que  tudo  isto  acompanhava. 

Plagas  de  schisto  gravadas. — A  estação  de  Aljezur  é  de  to- 
das as  de  Portugal  que  forneceu  maior  numero  de  placas  de 
schisto  com  gravuras.  Na  minha  collecção  entraram  dezesete  por 
obsequioso  offerecimento  do  sr.  José  da  Gosta  Serrão,  mas  appa- 
receram  mais  algumas,  que  se  diz  terem  sido  obtidas  pelo  sr.  Jú- 
dice dos  Santos.  Calculo  que  haveria  alli  umas  vinte  a  vinte  e 
duas. 

Reservo  para  o  acabamento  d'este  livro  uma  noticia  geral 
das  placas  gravadas,  até  hoje  descobertas  em  Portugal,  acompa- 
nhada de  uma  carta  geographica  em  que  indico  as  cavernas,  os 
dolmens  e  outros  monumentos  em  que  têem  sido  achadas.  Absle- 
nho-me  pois  de  descrevel-as  neste  logar  para  evitar  a  repetição 
de  um  assumpto  que  já  merece  ser  especialmente  tralado. 

Amuleto  da  forma  de  machado.  —  O  machado  de  pedra,  total 
ou  parcialmente  polido,  era  o  mais  possante,  o  mais  útil,  e  o 
mais  generalisado  de  todos  os  instrumentos.  Symbolisando  a  de- 


198 

feza  individual,  era  ao  mesmo  tempo  o  famoso  auxiliar  de  todas 
as  industrias,  de  todos  os  commcttimentos.  Era,  finalmente,  o  in- 
dispensável companheiro  do  homem.  A  superstição  creou-lhe  um 
culto  de  veneração,  considerando-o  privilegiado  donativo  da  di- 
vindade, e  foi  elevado  á  categoria  de  amuleto.  O  culto  era  ainda 
extensivo  a  certas  pedras  naturalmente  furadas  e  por  isso  algu- 
mas têem  apparecido  em  dolmens. 

O  delicado  machadinho  de  Aljezur,  figurado  na  estampa  G 
sob  n.os  3,  3'  e  3;/,  foi  furado  com  uma  ponta  de  silex  junto  á 
extremidade  inferior,  e  ficou  assim  tendo  uma  dupla  symbologia. 
O  furo  mostra-se  gasto  pelo  attrito  de  um  cordão  em  que  teria 
sido  enfiado  para  se  trazer  pendente  do  pescoço.  Devera  ter  tido 
grandes  virtudes  esse  bocadinho  de  calcareo  jurássico  represen- 
tando a  imagem  do  machado  de  pedra!  E  quem  sabe  se  ainda 
hoje  faria  a  fortuna  de  uma  bem  intencionada  mãe  de  família, 
que  podesse  lançal-o  ao  pescoço  cio  filhinho  adorado  para  que 
as  bruxas  e  os  lobishomens  lhe  não  chupassem  o  sangue  a  horas 
mortas  da  noite,  para  ficar  a  salvo  dos  maus  olhares  de  mal- 
fazejos, e  isento  de  outras  muitas  calamidades!  Sendo  pois  um 
amuleto  tão  antigo,  a  dizer  verdade,  melhor  condão  não  poderão 
ministrar  ás  creanças  de  berço  ecollo  o  signo  de  Salomão,  afigui- 
nha  de  ouro  e  a  esgalhinha  de  coral.  O  caso  é  que  estas  e  outras 
superstições  trazem  ainda  muita  gente  filiada  na  ultima  idade  da 
pedra ! 

Conta  de  pedra  polida.  —  Os  indivíduos  que  ficaram  sepul- 
tados em  Aljezur,  como  agora  se  chama  áquella  terra,  não  usa- 
vam somente  como  pendentes  as  placas  de  schisto,  e  os  amule- 
tos de  formas  symbolicas ;  também  traziam  contas  ao  pescoço,  e 
talvez  nos  pulsos,  assim  como  braceletes  e  collares  de  varias  con- 
chas e  de  dentes  de  animaes.  Uma  d'essas  contas  offereceu-m'a 
o  sr.  Costa  Serrão;  e  comquanto  fosse  uma  só,  vale  bem  um 
rosário!  E  de  forma  sub-cylindrica,  atravessada  por  um  orifício, 
furado  com  ponteiros  de  silex  pelas  duas  extremidades,  onde 
junto  ao  bordo  interno  se  nota,  para  o  mesmo  lado,  o  sulco  pro- 


199 

duzido  pelo  attrito  do  cordão  cm  que  foi  enfiada,  c  sendo  bas- 
tante fundo  o  sulco,  deve  entender-se  que  só  poderia  resultar  de 
um  aturado  uso. 

Tem  a  dita  conta,  que  figuro  na  estampa  B  sob  n.°  4.  o  as- 
pecto de  rocha  porphyroide ;  faz  lembrar,  á  primeira  vista,  o  por- 
phyro  verde  antigo ;  mas  logo  reconheci  que  não  era,  tanto  mais 
que  a  simples  ponta  de  silex  não  a  furaria  sem  esforço  vigoroso 
e  paciente.  Tal  é  a  rijeza  d'aquelle  porphyro,  que  os  romanos 
sabiam  serrar,  talhar  e  polir  admiravelmente,  como  verifiquei, 
achando  numerosos  exemplares  quando  puz  á  vista  uma  parte 
da  extincta  cidade  de  Ossonoba.  Devia  pois  pertencer  a  rocha 
mais  branda,  e  afigurou-se-me  poder  ser  de  mármore  verde  de 
Calábria;  mas,  sendo  tocada  com  alguns  ácidos,  não  produziu 
a  minima  effervescencia. 

Era,  finalmente,  de  steaíite  a  famosa  conta  de  Aljezur,  sen- 
do, como  tal,  ultimamente  verificada  pelo  distincto  mineralogista 
o  sr.  Alfredo  Bensaude.  O  muito  uso  que  revela,  mostra  ter  sido 
objecto  de  adorno  assas  estimado,  se  é  que  também  não  tinha 
alguma  virtude  especial  para  ser  considerada  como  amuleto. 


Alfinetes  de  osso.  —  A  estampa  D,  com  os  n.os  1  a  3,  figura 
três  fragmentos  de  alfinetes  de  osso,  ao  que  parece  de  prende- 
rem o  cabello.  Os  de  n.os  i  e  3  deviam  ter  sido  simplices  esqui- 
rolas  de  osso  desengrossadas  em  pedra  de  grés  e  rematadas 
em  cabeça,  formada  por  um  pedaço  de.  outro  osso  medullar  em 
que  o  remate  mais  grosso  do  prego  ou  espigão  ficaria  firme.  O 
de  n.°  2  representa  a  cabeça  de  outro  alfinete,  que  foi  talhado 
de  uma  só  peça,  e  para  seu  ornato  lhe  foi  aberto  a  dentes  de 
serra  de  silex  um  sulco  em  espiral.  Estes  alfinetes  parece  te- 
rem sido  empregados  no  penteado  das  mulheres.  São  toscos  pe- 
rante a  arte  moderna,  mas  seriam  então  do  mais  apurado  gosto  : 
entretanto  não  eram  ridículos,  extravagantes  e  de  mau  género, 
como  o  são  muitos  adornos  e  enfeites  usados  por  varias  damas 
cTestes  tempos  que  vão  correndo. 


200 

Nenhum  outro  artefacto  de  pedra  e  de  osso  havia  na  estação 
de  Aljezur.  Resta-me  fallar  da  cerâmica. 

Urnas  funerárias. — Uma  terra  negra,  que  parece  de  allu- 
vião,  mesclada  de  ténues  granulações  de  quartzite,  constiíue  a 
massa  plástica  representada  por  duas  urnas,  uma  inteira  e  outra 
partida,  ambas  de  forma  espheroidal;  a  inteira  com  pequeno 
bordo  inclinado  para  fora  e  a  outra  com  o  bordo  convergindo  um 
tanto  para  dentro.  Mede  a  primeira  no  eixo  vertical  0m,064,  no 
diâmetro  máximo  do  bojo  0m,076  e  no  da  boca  0m,0õ7.  A  que  está 
partida  tem  de  altura  Om,077  e  no  diâmetro  maior  do  bojo  0m,085. 
Esta  urna  conserva  apenas  uma  fracção  do  bordo  superior.  O 
fabricante  d'estes  vasos,  inteiramente  lisos,  ainda  não  conhecia  o 
torno  ou  roda  do  oleiro,  e  por  isso  estes  produetos  da  sua  in- 
dustria mostram  haver  sido  feitos  á  mão.  Appareeeram  fragmen- 
tos de  outras  urnas^ maiores,  mas  em  minguada  quantidade,  o 
que  mostra  que  não  estavam  bem  providos  de  louça  os  sepulta- 
dos no  deposito  de  Aljezur. 

Vaso  de  suspensão.  —  Este  vasoé  formado  por  dois  corpos 
circulares  convexos,  que  se  ajustam  e  ligam,  lendo  superior- 
mente uma  abertura,  também  circular,  com  0m,037  de  diâmetro, 
assim  como  quatro  furos  em  cruz,  que  lhe  atravessam  horisontal- 
mente  a  espessura,  os  quaes  mostram,  por  deteriorações  parciaes, 
ter  estado  suspenso  por  cordéis  de  alguma  substancia  fibrosa  já 
então  conhecida' e  aproveitada.  E  fabricado  á  mão  e  tem  toda  a 
secção  inferior  em  depressões,  como  se,  ainda  fresca  a  massa  plá- 
stica, igual  a  dos  outros  vasos,  tivesse  soffrido  a  pressão  dos  de- 
dos. A  sua  altura  mede  0m,036  e  o  máximo  diâmetro  do  bojo 
0m,078. 

Em  1880  ainda  não  havia  noticia  de  que  em  algum  museu 
estrangeiro  existissem  vasos  d'este  venero  e  forma.  Nenhuma 
obra  os  descrevia,  nenhuma  estampa  os  representava.  Ao  con- 
gresso de  Lisboa  apresentei  eu  um  perfeito  exemplar  que  tinha 
obtido  em  1876  no  sitio  da  Torre  dos  Frades,  em  propriedade 


20! 

de  D.  Maria  dos  Martyres  e  Silva,  o  qual  será  descripto  no  logar 
em  que  me  compete  exhibir  os  descobrimentos  que  n'aquelle  si- 
tio fiz  em  1882. 

Gommunicou-me  depois  o  sr.  E.  Cartailhac,  numa  das  suas 
frequentes  e  sempre  agradáveis  visitas  ao  museu  archeologico  do 
Algarve,  ter  achado  um  vaso  similhante  entre  as  louças  da  sec- 
ção geológica  de  Lisboa;  mas  não  fiquei  sabendo  em  que  logar 
e  condições  fora  descoberlo. 

Visitando  posteriormente  a  secção  geológica,  pedi  informa- 
ções acerca  d'esse  vaso,  tanio  mais  para  saber  em  que  condições 
de  epocha  havia  sido  achado.  Não  era  alli  conhecido.  Carlos  Ri- 
beiro chegou  a  figural-o  sob  o  n.°  95,  pag.  85  da  sua  memoria 
publicada  em  1880,  apresentada  á  academia  real  das  scien- 
cias,  com  o  titulo  de  Noticia  de  algumas  estações  e  monumentos 
prehistoricos,  sem  comtudo  haver  reparado  nos  orifícios,  dispos- 
tos em  cruz,  que  atravessam  a  espessura  do  corpo  convexo  su- 
perior. 

Achou-o  Carlos  Ribeiro  n'um  monumento  excavaclo  em  rocha, 
numa  das  grandes  elevações  da  serra  de  Cintra,  perlo  da  pyra- 
midedo  sitio  do  Monge,  marcada  na  carta  geographica  com  a  cota 
de  488  metros  sobre  o  nivel  do  mar;  e  porque  alli  também  des- 
cobriu louças  ornamentadas,  similhantes  ás  das  grutas  artificiaes 
da  quinta  do  Anjo  entre  Setúbal  e  Palmella,  e  mais  uns  cones 
de  calcareo  subcrystallino  com  lavor  ornamental,  referiu  o  depo- 
sito á  epocha  de  transição  da  ultima  idade  da  pedra  para  a  pri- 
meira dos  metaes;  o  que  não  se  dá  em  relação  ao  vaso  de  sus- 
pensão da  estação  de  Aljezur  e  ao  da  Torre  dos  Frades,  por  terem 
apparecido  associados  a  produetos  de  uma  industria  propriamente 
neolithica,  podendo  por  isso  julgar-se  que  o  uso  d'esses  vasos  se 
prolongasse  até  á  idade  do  bronze ;  pois  com  effeito  a  classificação 
que  Carlos  Ribeiro  impôz  á  estação-tumuhis  do  Monge  da  serra 
de  Cintra  não  deixa  de  ter  algum  fundamento. 

Tendo  a  mais  inteira  confiança  na  superior  perspicácia  do  sr- 
Cartailhac,  sempre  fiquei  convencido  de  que  o  referido  vaso  de 
suspensão  deveria  existir  na  secção  geológica,  e  indo  alli  um  dia 


202 

com  o  reservado  intuito  de  procural-o,  consegui  descobril-o  no 
armário  n.°  49,  sob  o  rotulo  de  Granja  do  Marquez,  e  apresen- 
tei-o  nessa  mesma  occasião  ao  sábio  naturalista  o  sr.  Berkeley 
Cotter,  a  quem  pedi  o  obsequio  de  communicar  o  meu  descobri- 
mento ao  sr.  Nery  Delgado,  director  da  secção. 

Está  portanto  verificada  a  existência  de  três  vasos  de  sus- 
pensão nos  depósitos  prehistoricos  de  Portugal,  dois  do  Algarve 
e  um  de  Cintra. 

Uma  circumstancia  impede  admittir-se  que  fossem  vasos  de 
simples  consagração  funerária,  exclusivamente  destinados  a  se- 
rem reunidos  aos  indivíduos  a  quem  tivessem  pertencido  ou  fossem 
dedicados;  pois  não  se  pode  julgar  que  ficassem  suspensos  no 
interior  das  cryptas,  mas  somente  depositados  sobre  o  logar  da 
sepultura.  Reconhecidamente,  o  de  Aljezur,  antes  de  ter  entrada 
n'aquelle  deposito  mortuário,  já  tinha  sido  usado,  a  ponto  de  que 
dois  dos  seus  orifícios  transversaes  e  fronteiros  estavam  inteira- 
mente inutilisados,  não  restando  mais  do  que  os  outros  dois, 
também  fronteiros,  para  deixarem  enfiar  um  cordel  pouco  mais 
grosso  que  o  barbante  ordinário,  a  fim  de  ser  assim  suspenso. 
Portanto,  não  era  unicamente  em  usos  funerários  que  os  vasos 
d'este  género  seriam  empregados.  Suscitam  a  idéa  de  que  tives- 
sem sido  lâmpadas,  que  se  preparassem  com  cebo  derretido, 
tendo  no  centro  uma  substancia  vegetal  susceptível  de  alimentar 
a  combustão  para  dar  luz  e  guiar  a  recônditos  abrigos  os  homens 
que  não  tivessem  outra  habitação. 

A  própria  côr  escura,  e  o  seu  aspecto  macio,  tirante  a  lus- 
troso, deixam  vagamente  pensar  que  alguma  gordura  se  tivesse 
infiltrado  na  massa  argillosa,  embora  ao  mesmo  tempo  se  deva 
entender  que  mal  poderia  ter-se  conservado  impregnada  na  ténue 
espessura  de  tal  vaso  qualquer  matéria  oleosa,  resistindo  á  pas- 
sagem de  tantos  milhares  de  annos. 

Poderiam  também  estes  vasos,  cuja  forma  não  permitte  sup- 
por-se  que  servissem  para  conter  comidas  ou  agua  de  beber,  ter 
tido  algum  destino  especial  nas  ceremonias  de  um  culto  super- 
sticioso, em  que  houvesse  sacrifícios,  servindo  como  baldes  para 


ALJESUR 


Ett.F 


£c&.  2*  &. 


J/xs^ti&a, 


L1.th0qra.phia.  da. Imprensa.  NolcUtiolI . 


203 

com  elles  se  tirar  agua  de  algum  deposito,  que  precisa  fosse  para 
purificações,  ou  mesmo  para  receberem  o  sangue,  sendo  intro- 
duzidos nas  entranhas  das  victimas  destinadas  aos  banquetes  que 
fosse  costume  fazerem-se  em  honra  dos  mortos. 

Não  faltam  pois  conjecturas  todas  as  vezes  que  a  verdade 
dos  factos  não  pode  ser  averiguada;  e  é  este  um  dos  casos  da 
ousadia  que  pratica  todo  o  individuo  que  pretende  explicar  o  que 
não  sabe. 

Os  três  vasos  a  que  me  tenho  referido,  vão  figurados  na  es- 
tampa F;  este  ultimo  com  o  n.°  1  e  os  outros  dois  com  os  n.os  2 
e3. 

Escripla  esta  noticia,  recebi  quatro  annos  depois  o  famoso 
livro  do  sr.  Cartailhac,  Les  ages  préhistoriques  de  FEspagne  et  du 
Portugal,  indicando  estes  vasos  como  encontrados  em  muitas  se- 
pulturas portuguezas  e  irlandezas.  Representa  um  da  Irlanda 
(fig.  169)  e  outro  (fig.  170),  que  diz  ser  de  uma  gruta  sepul- 
chral  de  Palmella,  certamente  por  equivocação,  porque  é  o  de 
Cintra,  a  que  já  me  referi. 

É  mui  provável  que  mais  alguns  exemplares  se  achem,  se 
alguma  vez  se  tratar,  a  serio,  do  único  modo  de  se  poderem  re- 
conhecer e  inventariar  as  antiguidades  prehistoricas  de  Portugal: 
entretanto,  somente  existe  na  secção  geológica  o  que  foi  desco- 
berto em  Cintra  na  Granja  do  Marquez,  bem  como  em  a  minha 
collecção  reservada  o  que  em  1881  estava  no  deposito  de  Alje- 
zur e  o  que  em  1876  (de  todos  o  maior  e  mais  perfeito)  fora  en- 
contrado no  sitio  da  Torre  dos  Frades,  sendo  este  o  primeiro  que 
o  sr.  Cartailhac  viu  neste  paiz,  e  de  que  me  parece  ter  levado 
um  desenho,  comquanto  não  o  figure  no  seu  esplendido  livro. 

Se  o  exemplar  de  Cintra  ficou  attribuido  á  transição  da  pe- 
dra polida  para  a  idade  do  bronze,  os  dois  do  Algarve,  não 
obstante  serem  mais  aperfeiçoados,  pertencem  a  estações  neoli- 
thicas. 

Dos  da  Irlanda  não  tenho  noticias  especiaes ;  vejo  que  são 
de  forma  similhãnte  a  dos  três  de  Portugal,  com  a  simples  diffe- 
rença  de  terem  estes  os  orifícios  horisontalmente  abertos  na  es- 


204 

pessura  do  plano  superior,  ao  passo  que  naquelles  os  furos  a  atra- 
vessam de  lado  a  lado. 

É  assaz  notável,  que  só  em  Porlugal  e  na  Irlanda  tenham 
estes  artefactos  cerâmicos  sido  achados,  sabendo-se  que  as 
ilhas  britannicas,  no  período  neolithico,  já  estavam  separadas 
do  continente  europeu.  Se  este  facto  não  leva  a  suppor-se  a 
existência  de  cominunicações  marítimas  entre  aquelle  paiz  e  o 
continente,  não  sei  por  outro  modo  explical-o,  comquanto  as  pi- 
rogas, de  que  ha  conhecimento,  não  possam,  a  meu  ver,  afian- 
çar a  probabilidade  de  tão  arriscadas  viagens. 

E  caso  que  anda  preso  a  outros  problemas,  que  no  futuro 
poderão  ser  porventura  resolvidos,  só  depois  de  emprehendidos 
methodicamente  grandes  trabalhos  de  reconhecimento  archeolo- 
gico  em  vários  paizes. 

Tem-se  trabalhado  muito;  mas  sem  plano  determinado.  .  . 
A  seu  tempo  se  conhecerá  esta  verdade,  que  aqui  deixo  regi- 
stada. 

Em  vista,  pois,  de  todos  os  característicos  da  estação-iumu- 
lus  de  Aljezur  e  do  facto  cie  não  se  ter  alli  achado  um  único  ar- 
tefacto metallico,  quando  ainda  havia  alguns  planos  intactos  con- 
servando os  objectos  nas  suas  primitivas  posições,  julgo  poder 
considerar  aquella  estação  como  rigorosamente  pertencente  ao 
periodo  neolithico,  igualmente  denominado  ultima  idade  da  "pe- 
dra, idade  da  pedra  polida,  ou  idade  da  pedra  neolithica. 

A  importância  da  estação  de  Aljezur  poderá  desde  já  com- 
prehender-se,  sabendo-se  que  no  Algarve  é  a  que  mais  se  ap- 
proxima,  com  os  seus  característicos  de  epocha,  da  primeira  até 
hoje  verificada  no  Alemtejo. 

Seguindo  a  ordem  determinada  na  carta  prehistorica  em  re- 
ferencia ás  antas  ou  dolmens  sob  íiimuli  com  galerias  cobertas, 
passarei  a  dar  noticia  da  estação  immediata  á  de  Aljezur. 

Monte  amarello.  —  Tomando  como  ponto  de  referencia  a 
igreja  de  Bensafrim,  o  Monte  Amarello  está  situado  approxima- 
damente  a  noroeste  e  distante  da  torre  uns  3  kilometros,  ele- 


205 

vando-se  a  13(3  melros  em  plena  região  carbonífera  com  dila- 
tada encosta  ligeiramente  accidentada,  tendo  ao  sul  e  a  sueste 
a  estreita  faxa  triassica,  que  corta  toda  esta  província  de  oeste 
para  leste,  em  que  assenta  com  a  sua  igreja  a  velha  aldeia  do 
mesmo  nome,  cuja  área  foi  oceupada  por  varias  populações  pre- 
historicas  e  por  algumas  dos  tempos  históricos  anteriormente  á 
fundação  da  monarchia  portugueza. 

O  Monte  Amarello  já  eu  conhecia  desde  1878  e  estava  re- 
presentado no  museu  por  um  machado  de  pedra,  que  comprei  a 
um  camponez  em  Bensafrim,  onde  aquelle  sitio  me  fora  muito 
recommendado  juntamente  com  o  da  Sernadinha,  que  lhe  fica  ao 
norte  e  em  distancia  de  1:200  metros  numa  cota  menos  eleva- 
da, por  serem  terrenos  muito  abundantes  de  instrumentos  de 
pedra. 

Diziam  os  informadores,  que  se  tinha  alli  descoberto  uma 
cova  muito  larga  e  funda,  inteiramente  rodeada  de  pedras  gran- 
díssimas, com  muitos  ossos,  pedaços  de  louça  e  outras  cousas, 
que  não  sabiam  explicar,  mas  que  aquella  grande  cova,  que  mais 
parecia  uma  nora  antiga  do  que  sepultura  em  que  gente  tivesse 
sido  enterrada,  fora  entaipada  havia  muito  tempo,  e  por  isso  se- 
ria bastante  difficil  atinar-se  ainda  com  o  logar  d'ella,  por  ter 
sido  emparelhada  com  a  terra  cultivada. 

Para  quem  explorou  tantos  dolmens  cobertos  bastaria  esta  sin- 
gela informação  para  ficar  percebendo,  que  no  Monte  Amarello 
existia  um  d'esses  monumentos,  e  que  deve  ainda  achar-se,  sa- 
bendo-se  procurar! 

Era  aquelle  monte  um  dos  pontos  que  linha  projectado  pes- 
quizar  em  1882,  quando  passei  de  Alcalá  para  Aljezur,  tencio- 
nando para  este  fim  demorar-me  uns  dias  em  Bensafrim,  onde 
outros  logares  próximos  lambem  projectei  examinar;  mas  como 
só  tinha  quarenta  dias  para  a  exploração  complementar,  de  que 
o  governo  me  encarregou  para  o  preenchimento  de  varias  lacu- 
nas que  havia  na  carta  prehistorica,  e  os  trabalhos  importantíssi- 
mos de  Alcalá  já  me  tinham  absorvido  os  primeiros  trinta,  entendi 
não  dever  prejudicar  os  estudos  em  Aljezur  e  na  Torre  dos  Fra- 


20G 

des  por  serem  esses  pontos,  principaes  estações  d'esta  provín- 
cia, os  que  exigiam  maior  cuidado  pela  homogeneidade  das  suas 
manifestações  e  pela  sua  importância  geographica,  por  isso  que 
este  era  o  que  mais  se  approximava  das  estações  prehistoricas 
da  Andaluzia  e  aquelle  o  que  de  mais  perto  se  ligava  com  as  do 
Alemtejo. 

Segui  logo  para  Aljezur,  acompanhado  do  meu  prestadio 
amigo  Nunes  da  Gloria,  novo  prior  de  Bensafrim,  que  mui  obse- 
quiosamente se  tinha  offerecido  para  me  auxiliar  com  os  seus  mi- 
mosos trabalhos  de  desenho ;  e  assim  ficaram  o  Monte  Amarello, 
a  Sernadinha,  a  Fonte  Velha  e  mais  alguns  logares  sem  o  reco- 
nhecimento que  lhes  havia  destinado. 

Faltando-me  indicar  na  carta  o  Monte  Amarello,  acabados  os 
trabalhos  em  Aljezur,  foi  o  intelli gente  padre  Nunes  da  Gloria,  já 
mui  pratico  interprete  dos  critérios  archeologicos,  visitar  aquelle 
monte  para  poder  offerecer-me  as  suas,  para  mim,  bem  concei- 
tuadas informações.  Mostrou-lhe  o  lavrador  que  alli  reside  uma 
farta  collecção  de  machados  e  outros  instrumentos  de  pedra,  em 
que  havia  alguns  de  quartzo  e  núcleos  de  crystal  de  rocha,  tudo 
por  elle  extrahido,  porventura  de  algum  monumento  destruído, 
cujas  noticias  reservou. 

O  padre  Gloria,  percorrendo  as  encostas  do  Monte  e  das 
serras  mais  próximas  que  circumdam  o  casal,  achou  entre  os 
matos  e  mesmo  em  logares  menos  agrestes  umas  como  calça- 
das de  configuração  circular  com  2  a  5  metros  de  diâmetro, 
notando  além  d'isto  uns  montículos  artificiaes  de  figura  mammi- 
lar,  similhantes  aos  que  já  tinha  explorado  e  visto  explorar  em 
Alcalá,  concentrando  monumentos  dohnenicos,  de  que  elle  próprio 
havia  magistralmente  levantado  plantas  e  perfis,  como  adiante,  e 
principalmente  no  segundo  volume  d'esta  obra  mostrarei,  e  en- 
controu também  esparsos  no  matagal  grandes  pedaços  de  pedra 
de  moagem  de  aspecto  granitoide,  mui  provavelmente  da  rocha 
da  Foya,  como  confirmando  um  característico  dos  lares  ha  mui- 
tos milhares  de  annos  desertos  e  arrazados. 

Não  ha  pois  que  por  em  duvida  a  significação  d'esses  monticu- 


207 

los.  tão  conhecidos,  tanlo  mais  em  presença  de  tantos  artefactos 
em  grande  parte  similhanles  aos  de  Alcaiá  e  Aljezur,  que  alli 
tinham  sido  achados. 

E  que  podem  significar  aquellas  calçadas  circulares  por  en- 
tre os  cistaes  c  outras  vegetações  silvestres,  guarnecendo  as  en- 
costas dos  serros  circumvizinhos  do  casal,  senão  monumentos, 
ainda  assignalados,  ou  restos  fundamentaes  de  habitações  re- 
motas? 

E  mister  saber-se  que  na  ultima  idade  da  pedra,  embora 
muitas  grutas  e  cavernas  servissem  de  abrigo  e  vivenda,  assim 
como  também  serviram  para  depósitos  mortuários,  outras  habi- 
tações construíram  as  populações  neolithicas,  ora  sobre  esta- 
caria cravada  nos  lagos,  ora  formando  agrupamentos  no  solo 
enxuto,  quando  certas  condições  favoráveis  á  vida  assim  o  exi- 
giam. 

Pertencem  a  essa  idade  remotíssima,  como  já  disse,  as  mais 
antigas  palafittas  ou  cidades  lacustres,  fundadas  mais  geral- 
mente nas  margens  molhadas  dos  lagos  sobre  a  estacaria,  que 
o  poderoso  machado,  a  enxó  e  o  escopro  de  pedra  conquista- 
vam ás  florestas,  cidades  que  continuaram  a  construir  os  homens 
da  idade  do  bronze  e  da  idade  do  ferro  em  vários  paizes,  como 
foram,  sobre  todos,  a  Suissa,  em  que  o  sábio  Keller  já  cm  1879 
contava  cento  sessenta  e  uma  e  bem  assim,  além  de  outros,  a 
Itália,  o  Wurtemberg,  a  Baviera  e  a  Áustria. 

Mas  não  eram  as  grutas,  as  cavernas  e  as  palafittas  as  úni- 
cas vivendas  humanas.  Onde  não  podia  haver  taes  abrigos,  as 
populações  tiveram  de  construir  habitações  terrestres,  ora  sobre 
o  solo,  ora  exeavando-as  na  terra.  Para  estas  moradas  procu- 
raram os  homens  da  ultima  idade  da  pedra  os  plan'altos,  ou 
logares  melhor  defendidos  por  condições  naturaes,  comquanto 
oceupassem  também  as  rampas  mais  próximas  de  ribeiras  e  al- 
gumas vezes  as  planícies.  De  tudo  isto  ha  varias  provas  já  veri- 
ficadas, principalmente  na  França  e  na  Itália. 

Estas  habitações,  como  já  disse,  eram  exeavadas  no  solo,  va- 
riando o  seu  diâmetro  de  lra,50  a  8  metros  e  a  sua  profundidade  entre 


208 

lm,15  e  2  metros.  São  já  raras  as  que  se  conservam  intactas,  por- 
que a  agricultura,  os  agentes  meteorológicos  e  outras  diversas 
causas  as  têem  destruído,  apagando-lhes  os  próprios  vestígios, 
alguns  dos  quaes  ainda  todavia  se  manifestam  com  um  typo  es- 
pecial e  se  fazem  reconhecer  mesmo  nas  terras  lavradas,  quando 
nellas  apparecem  manchas  circulares  de  uma  cor  mais  escura, 
que  se  formaram  de  terra  vegetal  e  cinzeiros  mais  ou  menos 
mesclados  de  carvões. 

Bem  deixam  estes  característicos  entender,  que  em  taes  vi- 
vendas se  accendia  lume  e  que  ao  lume  se  preparavam  alguns  ali- 
mentos, tendo  apparecido  numerosos  pedaços  de  vasilhas  de 
barro  e  pedras  tostadas  pela  acção  do  fogo,  sobre  as  quaes  as- 
sentariam as  louças  e  talvez  mesmo  seriam  assadas  algumas 
iguarias.  Ahi  têem  apparecido  também  facas  e  lascas  de  silex, 
machados,  enxós,  percutores,  objectos  de  osso  trabalhado,  e  ossos 
dos  animaes,  de  que  se  alimentavam  os  donos  da  casa,  sendo  os 
mais  frequentes  os  de  boi,  carneiro,  cabra,  cavallo,  porco,  e  de 
varias  aves,  não  faltando  ao  mesmo  tempo  conchas  de  vários 
molluscos  marítimos,  taes  como  de  Ostrea,  PuUastra,  Cardium, 
Mytilus,  e  de  outros;  o  que  mostra  que  a  cozinha  neolithica  po- 
deria ser  insípida  a  falta  de  sal  e  de  adubos,  mas  mui  soffrivel- 
mente  variada  e  substanciosa. 

O  sr.  de  Mortillet  indica  e  descreve  alguns  d'esses  logares  de 
habitação,  especificando  o  planalto  de  Gampigny,  no  Senna-In- 
ferior,  o  Campo  de  Chassey,  no  Saône  et  Loire,  e  muitos  outros 
na  Itália,  em  que  taes  vivendas,  cobertas  de  cabanas,  constituíam 
as  povoações  terrestres  no  período  neolithico. 

Eis-aqui  porque  as  calçadas  circulares  das  rampas  do  Monte 
Àmarello  e  das  serras  próximas  bem  podem  representar  assen- 
tamentos d'essas  cabanas,  que  desde  então  até  hoje,  mais  ou 
menos  modificadas,  ainda  são  construídas  e  habitadas  em  mui- 
tos paizes,  tanto  nos  campos,  como  nos  centros  de  populações 
marítimas.  A  sua  situação  naquelles  montes  e  serras  permitte 
presumir-se  que  estariam  sobre  o  solo  em  vez  de  serem  n'elle 
excavadas,  comquanto  não  faltem  n'esta  província,  e  na  própria 


209 

aldeia  de  Bensafrim,  muitos  subterrâneos,  que  a  tradição  refere 
terem  sido  celleiros  antigos,  mas  que  também  podem  ter  sido 
primitivamente  togares  de  habitarão,  embora  depois  aproveitados 
por  nacionalidades  históricas  para  arrecadação  de  cereaes. 

Só  na  rua  da  Igreja  e  na  de  Santo  António,  em  Bensafrim, 
explorei  eu  25  cTesses  receptáculos,  e  muitos  nas  ruas  de  Pa- 
derne,  os  quaes  estavam  cheios  de  entulhos,  mesclados  de  fra- 
gmentos de  louças  e  vidros  romanos  e  de  louças  árabes,  com 
muitos  ossos  de  gado  grosso  e  miúdo  e  abundantes  conchas  de 
molluscos  marítimos,  que  foi  o  que  mais  me  admirou,  pela 
grande  distancia  a  que  d'alli  estão  as  praias  do  oceano. 

Ficam  portanto  indicadas  as  antiguidades  do  Monte  Ama- 
rello  a  quem  um  dia  as  souber  explorar. 

Houve  alli,  sem  duvida,  alguma  uma  estação  neolithica,  cujas 
característicos,  colligidos  pelo  lavrador  d'aquelle  monte,  são  idên- 
ticos aos  de  Aljezur,  se  ainda  se  lhes  acerescentarem  alguns  fra- 
gmentos de  placas  de  schisto  com  gravuras,  que  a  curta  distan- 
cia têem  sido  achados,  assim  como  no  próprio  sitio  cia  Mortinha, 
a  pouco  mais  de  1  kilomelro  ao  norte  da  aldeia,  em  proprie- 
dade do  rev.d0  prior  de  Lagos,  o  sr.  Manuel  José  de  Barros,  a 
quem  sou  devedor  do  offerecimento  de  quasi  todos  os  machados 
de  pedra  que  trouxe  de  Bensafrim  e  das  pedras  com  inscripções 
desconhecidas,  que  tinham  sido  achadas  em  sepulturas  no  sitio 
da  Fonte  Velha,  também  chamado  Sellões  da  Mina. 

Por  não  ter  podido  fazer  pesquiza  alguma  entre  Bensafrim  e 
Aljezur,  não  me  aventuro  a  indicar  outros  logares  que  notei 
nesse  trajecto,  onde  julgo  deverem  existir  mais  alguns  monu- 
mentos, como  se  deve  suppor,  havendo  entre  aquelles  pontos 
uma  distancia  approximadamente  de  quatro  léguas  métricas ;  e 
é  o  que  também  penso  dever-se  achar  entre  Aljezur  e  Odeseixe, 
onde  não  faltam  indícios  apparentes  na  configuração  de  certos 
montes  que  se  avizinham  das  muitas  ribeiras  que  sulcam  aquelle 
terreno  até  á  margem  esquerda  do  rio  Odeseixe,  Deseixe,  ou  tal- 
vez rio  de  seixos,  outrora  navegável. 


ii 


210 

Serro  grande. — Toda  a  área  da  freguezia  da  Luz,  perten- 
cente ao  concelho  de  Lagos,  occupa  uma  parle  do  cretáceo  in- 
ferior (?),  comprehendida  entre  o  jurássico  superior,  ao  norte,  e 
a  raia  marítima,  ao  sul,  em  que  uma  secção  da  rocha,  batida 
pela  continua  acção  erosiva  das  aguas  do  oceano,  tem  desco- 
berta uma  espessa  camada  de  molluscos  fosseis  do  género  Ne- 
rincea,  de  aspecto  fusiforme,  espécie  nova,  que  o  sr.  Choffat  de- 
sigou  com  o  nome  de  algarbiensis. 

A  igreja  da  Senhora  da  Luz  está  situada  a  oes-sudoesle  de 
Lagos,  e  a  noroeste  da  torre  dos  sinos,  distante  pouco  mais  de 
1  kilometro,  vê-se  o  chamado  Serro  Grande,  attingindo  sobre  o 
nivel  do  mar  a  elevação  de  143  metros. 

O  Serro  Grande  é  abrangido  pela  denominada  Quinta  da 
Luz,  pertencente  aos  herdeiros  de  José  Maria  de  Mello.  Álli  brota 
um  copioso  manancial  de  excellente  agua,  que  hoje  rega  a  horta 
daquella  quinta,  e outr'ora forneceu  as  piscinas  de  um  grandioso 
edifício  de  banhos,  assim  como  outros  muitos  adherentes  ao  rico 
estabelecimento  de  salga  de  peixe,  cujos  vestígios  apparentes 
ainda  oceupam  a  extensão  de  156  metros,  que  os  romanos,  me 
parece,  terem  já  achado  em  menor  escala;  pois  a  este  conceito 
fui  levado  em  vista  dos  diversos  cimentos  que  notei  nos  tanques 
de  salga  e  de  alguns  materiaes  já  servidos,  que  observei  na  con- 
strucção  do  edifício  balneareo,  o  qual  ainda  se  prolonga  muito 
para  noroeste  e  mais  uns  90  metros  para  o  sudoeste,  podendo 
assim  calcular,  pelo  que  resta  á  vista,  e  pelos  cortes  que  fiz,  um 
alinhamento  de  construcções,  no  parallelo  da  raia  molhada,  não 
menor  de  300  metros. 

O  próprio  Serro  Grande  e  os  terrenos  que  pendem  para  a 
praia,  mostram  abundantes  signaes  de  edifícios  romanos,  devendo 
entender-se  que  toda  aquella  parte  cia  região  lacobrigense  já  ti- 
nha sido  muito  anteriormente  utilisada,  porquanto  foi  mesmo  junto 
da  nascente  do  Serro  Grande  que  o  seu  antigo  proprietário 
descobriu  e  estragou  um  dolmen  coberto,  que  mostra  ter  tido  a 
mesma  configuração  dos  que  explorei  na  Marcella,  na  Torre  dos 
Frades  e  n'outros  logares.  Restam  de  pé  três  monolithos,  dispôs- 


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Uhojraphia.  Rua  de  Moinho  de  Vento 


211 

tos  em  curva,  sem  intervallo  sensível  entre  si.  mostrando  a  dis- 
posição dos  que  fechavam  uma  crypta  circular,  cuja  galeria  de 
accesso  foi  também  destruída  pelo  dito  proprietário,  arrancando 
toda  a  pedra  dos  seus  flancos,  assim  como  a  que  falta  na  cry- 
pta. E  porque  o  próprio  pavimento  do  monumento  tinha  também 
sido  excavado,  não  foi  possível  cotar  com  exactidão  a  altura  pri- 
mitiva do  eixo  vertical.  Junto  porém  dos  monolithos  existentes 
mandei  excavar,  assim  como  desentupir  os  interstícios  que  entre 
elles  havia;  o  que  deu  em  resultado  achar  ainda  alguns  caracte- 
rísticos assaz  valiosos  para  a  classificação  da  epocha  que  deve 
representar  aquella  estação. 

A  estampa  i,  sob  n.°  1 ,  representa  cinco  lascas  pont'agudas, 
(tendo  a  primeira  perdido  a  vértice)  que  podem  ter  sido  furadores; 
afig.  n.°  2  pode  ter  sido  um  instrumento  perforante,  por  ter  duas 
pontas  acutissimas,  uma  lasca  cortante,  por  ter  um  gume  afila- 
dissimo,  ou  uma  frecha  cortante,  se  fora  encravada  na  haste  pelo 
lado  opposto  ao  corte.  Sendo  objecto  de  tão  minguada  corpulên- 
cia, podia  pois  ter  tido  diverso  préstimo  e  ser  utíl  em  assignala- 
das  applicações,  ao  contrario  do  que  succcdc  relativamente  a 
muitos  indivíduos,  que  para  tudo  se  julgam  superiores  a  todos  os 
viventes,  mas  que  ainda  não  comprovaram  as  suas  aptidões.  Os 
de  n.os  3  e  4  foram  indubitavelmente  lascas  cortantes,  e  o  n.°  5, 
que  é  fragmento  de  faca  de  silex,  não  teria  outro  préstimo. 

Os  n.os  6  e  7  são  pontas  de  silex  troncadas,  de  feição  gros- 
seira, ou  talvez  furadores  obliterados;  não  se  pode  julgar  que  fos- 
sem pontas  de  frecha,  em  vista  do  apurado  trabalho  que  distin- 
gue este  artefacto  no  período  neolithico.  O  n.°  8  é  fragmento  de 
uma  faca  de  quartzo ;  o  n.°  9,  que  o  desenhador  inverteu,  e  o 
n.°  10,  também  de  quartzo,  parece  terem  sido  instrumentos 
pont'agudos  accidentalmente  troncados.  Os  n.os  li  e  12  são  vi- 
síveis fragmentos  de  facas  de  silex  e  o  n.°  13  uma  faca  mui  per- 
feita com  dois  gumes  afilados.  O  instrumento  n.°  14  é  uma  pe- 
quena enxó  cuneiforme  de  schisto  amphibolico,  com  uma  só 
faceta  formando  o  corte:  é  todo  polido.  O  n.°  15  representa  um 
fragmento  de  instrumento  polido  de  schisto  aphanitico,  cujo  corte 


212 

é  formado  por  duas  faceias  opposlas  e  convergentes:  parece  um 
escopro. 

Tanto  este  como  o  antecedente  mostra  uma  faxa  escura  e 
vertical  no  centro,  representando  o  rotulo  que  a  photographia  re- 
produziu e  que  o  desenhador  fielmente  respeitou,  não  lhe  occor- 
rendo  ser  um  objecto  estranho  áquelles  instrumentos!  A  fig. 
n.°  16  representa  um  osso,  cuja  espessura  máxima  entre  as  fa- 
ces lateraes  é  de  0m,021.  Na  face  inferior  é  desbastado  no  sen- 
tido das  extremidades,  a  curta  distancia  das  quaes  tem  dois 
orifícios  que  passam  ao  lado  opposto.  Mede  0m,130  de  compri- 
mento e  0m,029  de  largura  máxima.  Parece  ter  sido  insigniaou 
objecto  de  adorno  que  se  usara  enfiado  e  suspenso,  e  que  ao 
entalho  do  bordo  inferior  teria  ligado  ou  adherente  uma  outra 
peça  de  suspensão.  As  superfícies  estão  polidas. 

Appareceram  também  alguns  fragmentos  de  ossos  humanos, 
e  de  placas  de  schisto  negro  com  gravuras  geométricas,  e  final- 
mente colligi  mais  35  lascas  de  pedra  calcarea,  de  varias  for- 
mas, quasi  todas  com  arestas  cortantes,  parecendo  que  pela 
maior  parte  teriam  sido  ponfagudas,  á  similhança  de  farpas 
de  frecha,  mas  cujas  secções  termihaes  foram  separadas  por 
fractura. 

Todos  estes  objectos  estão  ordenados  no  museu,  permittindo 
o  seu  conjuncto  julgar-se,  que  o  destruído  dolmen  coberto  do 
Serro  Grande  pode  caracterisar  o  periodo  neolithico. 

Era  esta  a  estação  mais  occidental  do  Algarve  em  relação  aos 
descobrimentos  que  effectuei  até  ao  fim  de  1878,  e  portanto  a  pri- 
meira que  poderia  ligar- se  com  as  de  característicos  similhantes 
já  conhecidas  no  Alemtejo.  Havia,  pois,  uma  grande  distancia, 
cujo  intermédio  bem  deixava  persuadir  a  existência  de  outras 
estações  não  ainda  descobertas.  Com  effeito,  a  exploração  com- 
plementar em  1882  confirmou  esta  supposição,  indicando  a  do 
Monte  Amarello,  e  a  de  Aljezur,  que  ficou  marcando  o  ponto  de 
passagem  d'esta  para  aquella  província,  comquanto  se  deva  pre- 
sumir, que  mais  alguma  estação  se  poderia  descobrir,  se  fosse 
procurada  por  pessoa  competentemente  pratica  em  taes  pesquizas. 


213 

Escusado  é  dizer,  que  o  estado  de  destruição  do  monu- 
mento do  Serro  Grande  não  permittiu  que  se  figurasse  em 
planta.  Só  foi  possível  medir  os  Ires  monolithos,  cuja  altura  aclíei 
ser  de  im,25  a  im,37,  com  larguras  pouco  menores. 

Alcalá,  Dolmen  coberto  sob  tumulas.  —  Alcalá,  ou  Alcalar, 
pertencente  ao  concelho  de  Portimão  e  freguezia  da  Mexilhoeira 
Grande,  é  um  largo  campo,  dividido  em  propriedades  ruraes, 
cuja  orographia  não  attinge  relevo  muito  accidentado.  A  sua 
maior  cota  mede  74  metros  sobre  o  nivel  do  mar.  Poucos  mon- 
tes habitados  tem.  Francisco  Furtado  é  alli  residente  e  possui- 
dor, com  o  lavrador  Manuel  Duarte,  da  freguezia  do  Marmelele, 
de  um  cercado  arborisado  de  oliveiras  e  alfarrobeiras,  quasi  in- 
teiramente coberto  de  pedras  soltas,  provenientes  de  outeiros 
artificiaes  destruídos,  em  que  de  oeste  para  leste  se  ergue  com 
ligeira  ondulação  uma  pouco  elevada  collina,  que  não  excede  no 
seu  ponto  culminante  a  altura  de  7  metros  em  relação  á  pla- 
nície adjacente,  a  qual  d'csse  ponto  para  leste  decresce  até  o 
plano  do  caminho  que  segue  do  sitio  da  Torre  para  Monchique 
pela  Senhora  do  Verde,  onde  começa  de  novo  a  levantar-se  em 
rampa  suave,  já  ahi  pertencente  á  herdade  de  D.  Maria  Firmi- 
na,  da  villa  de  Alvor,  formando  n'esse  terreno  a  sua  maior  sum- 
midade  com  10m,80  de  altura  em  referencia  ao  plano  do  dito  ca- 
minho. 

Ao  poente  abre  passagem  para  a  Mexilhoeira  Grande,  for- 
mando á  entrada  do  cercado  um  angulo  obtuso,  e  a  sueste  corre 
a  que  parte  do  Poço  e  da  Torre  para  o  ribeiro  do  Pereiro  e  Pe- 
reira. Ao  norte  está  separado  pelo  muro  da  cerca  do  lavrador 
José  Vicente,  do  sitio  da  Meia  Vianna,  pertencente  á  freguezia  de 
Monchique,  e  pelo  sul  chega  até  o  caminho,  que  no  rumo  de 
nor-nordeste  vae,  como  dito  fica,  pela  Senhora  do  Verde  para 
Monchique,  e  da  Torre,  no  de  nor-noroeste,  para  o  mencionado 
ribeiro  e  também  para  a  Mexilhoeira,  que  lhe  fica  a  sudoeste  e  em 
distancia  de  uns  5  kilometros. 

Com  immensa  difficuldade  eslava  sendo  parcialmente  apro- 


214 

veitado  para  lavoura  o  cercado  de  Alcalá,  porque  a  pedra  solta, 
cobrindo-o  quasi  todo,  impedia  o  trabalho  da  cultura,  e  por  isso 
anteriormente  jazia  quasi  inculto. 

Um  presbytcro  exemplar,  de  minguado  volume  physico,  mas 
de  elevada  estatura  intellectual,  artista  por  Índole,  e  por  costume 
laborioso,  sem  nunca  faltar  no  seu  posto  evangélico,  achando-se 
durante  muitos  annos  isolado  na  freguezia  da  Mexilhoeira  Gran- 
de, onde  todo  o  povo  o  estimava  e  reconhecia  como  sendo  um 
dos  parochos  mais  distinctos  que  alli  tinha  havido,  dividia  lodo 
o  tempo  que  lhe  ficava  livre  em  estudos,  em  percorrer  toda  a 
área  da  sua  freguezia  para  lhe  conhecer  as  necessidades  locaes, 
e  em  obras  que  estavam  ao  alcance,  mais  do  seu  animo  e  espi- 
rito engenhoso,  do  que  dos  seus  modestos  haveres;  e  assim,  uma 
das  obras  que  alli  o  deixaram  memorado,  com  gratíssima  lem- 
brança, foi  a  restauração  da  igreja,  em  que  tomou  parte  tão  acti- 
va, que  não  houve  trabalho  que  não  dirigisse  e  em  que  deixasse 
de  pôr  mão. 

O  templo  foi  renovado  e  estucado  até  o  tecto.  Carecia  de  no- 
vas pinturas  e  dourados  e  de  um  novo  quadro  pintado  a  óleo, 
que  representasse  sobre  o  fundo  da  câpella  mor  a  padroeira  Vir- 
gem d'Assumpção.  Tudo  isso  fez  com  especial  acerto  e  mestria 
o  presbytero  artista  António  José  Nunes  da  Gloria,  parocho  di- 
gníssimo, esculptor,  estucador  e  pintor  distincto.  A  igreja  ficou 
pois  um  primor  de  compostura  e  como  reflectindo  as  alegrias 
com  que  o  seu  respeitável  e  bondosíssimo  pastor  a  tinha  embel- 
lezado.  Quando  alguém  alli  vae  de  fora  e  pergunta  quem  moldou 
os  relevos  em  gesso,  quem  fez  os  dourados  e  pinturas,  e  quem 
pintou  o  grande  quadro  da  capella  mor,  todas  logo  acodem  di- 
zendo ser  tudo  obra  do  padre  Gloria. 

O  padre  Gloria  tinha  tempo  para  tudo ;  conhecia  palmo  a 
palmo  todos  os  cantinhos  da  freguezia;  levantou  a  planta  de 
toda  a  sua  circumscripção  parochial,  tomando  particular  gosto  e 
cuidado  pelas  antiguidades  locaes  que  descobria.  Quando  em 
junho  de  1882  foi  transferido  para  Bensafrim,  já  também  era 
archeologo. 


215 

Em  1878  tinha  eu  ido  ao  silio  da  Mesquita  fazer  o  reconhe- 
cimento de  umas  ruínas  parcialmente  apparentes,  de  que  dava 
noticia  Silva  Lopes  na  Chorographia  do  Algarve,  e  como  não  era 
possível,  depois  de  conhecida  a  epocha  a  que  pertenciam,  para 
o  logar  poder  ser  marcado  na  carta,  desenvolver  a  exploração  a 
ponto  de  ficar  totalmente  á  vista  a  planta  dos  edifícios  arraza- 
dos,  levantei  um  esboço  cotado  do  que  tinha  descoberto,  para 
d'alli  seguir  logo  para  outro  ponto. 

Constou  porém  ao  padre  Gloria,  que  n'aquelle  dia  tinha  eu 
trabalhos  a  fazer  na  Mesquita;  foi  ao  meu  encontro,  e  ficámos 
logo  conhecidos;  mas  vendo  elie  que  havia  ainda  muito  por  des- 
cobrir, offereceu-se-me  para  explorar  o  resto  á  sua  custa  e  man- 
dar-me  a  planta  do  que  achasse.  Acceitei,  agradeci  e  despedi- 
me.  Pouco  tempo  depois  enviava-me  uma  planta  geral  das  ruinas 
da  Mesquita  com  a  classificação  do  edifício  que  representavam. 
Ficámos  amigos  e  até  hoje  em  correspondência  de  noticias  re- 
lativas aos  nossos  estudos. 

Em  1880,  sabendo  o  padre  Gloria  que  eu  estava  incumbido 
de  fundar  o  museu  archeologico  do  Algarve,  lançou  as  suas  vis- 
tas para  os  lados  de  Alcalá;  viu  alli  um  outeiro,  que  não  lhe 
pareceu  obra  da  natureza;  chamou  gente,  e  ao  cortara  cúpula  do 
montículo,  apparcceu-lhe  um  monumento;  mas  como  lhe  ficava 
a  uma  légua  da  igreja,  onde  tinha  obrigações  quotidianas,  a  que 
nunca  faltava,  limitou-se  a  pôr  á  vista  o  que  lhe  foi  possí- 
vel, e  tendo  d'alli  extrahido  tantos  objectos  que  encheram  cinco 
grandes  caixas,  levantou  a  planta  do  que  chegou  a  ver,  e  man- 
dou-me  offerecer  todos  os  productos  d'aquella  bem  aventurada 
pesquiza.  O  resto  da  exploração,  dizia  elle,  ficava  reservado  para 
mim,  e  com  effeito  ficou. 

Agora  vae  ver-se  até  que  ponto  chegou  o  que  até  então  pa- 
recia um  simples  curioso. 

A  estampa  n  representa  o  trabalho  que  o  padre  Gloria  fez  á 
custa  da  sua  intelligencia,  e  da  sua  bolsa,  já  habituada  a  abrir-se 
unicamente  para  cousas  úteis  e  boas. 

A  figura  central  sob  o  n.°  1  mostra  a  configuração  c  o  typo  do 


216 

monumento.  Copiou  fielmente  o  que  viu,  porque  em  obra  dese- 
nhada á  penna,  os  que  poderem  imital-o,  não  poderão  excedel-o 
na  exactidão. 

O  monumento  mostra  um  perímetro  polygonal,  approximan- 
do-se  do  circulo.  E  composto  de  alentados  monolithos  de  grés, 
formando  circuito,  cravados  no  solo  com  inclinação  convergente 
para. a  extremidade  superior,  sendo  reforçados  por  uma  outra  or- 
dem de  grandes  pedras  que  externamente  os  circumda.  O  seu  curto 
vestíbulo  de  entrada  n.  aponta  para  o  sul  proximamente,  e  é  fe- 
chado por  uma  grande  pedra  (porta)  encostada  aos  esteios  late- 
raes.  Todas  as  outras  pedras  figuradas  na  contiguidade  do  mo- 
numento seriam  talvez  os  travessões  (mesas)  que  serviam  de  tecto 
antes  de  deslocadas  por  alguma  antiga  invasão.  A  fig.  2,  desenhada 
em  maior  escala  com  o  mesmo  numero,  mostra  uma  delgada  lage 
de  schisto  de  lm,70  de  comprimento  e  0m,40  na  maior  largura, 
com  uns  sulcos  gravados,  que  estava  diagonalmente  atravessada 
na  camará  sepulchral.  Junto  d'esta  lage  achou-se  a  pedra  calca- 
rea  subcylindrica  3,  toscamente  trabalhada,  a  qual  vae  figu- 
rada em  maior  escala  sob  o  mesmo  n.°  3,  tendo  de  altura  0m,55 
e  nos  dois  planos  horisontaes  e  parallelos,  de  configuração  pro- 
ximamente circular,  0m,46  por  40m,0  nos  diâmetros  que  perpen- 
dicularmente se  cruzam. 

E  assaz  mysteriosa  a  significação  d'aquella  estreita  lage ;  pois 
deixa  lembrar  a  existência  de  uma  mesa  interna,  ou  altar  com 
seus  symbolos  gravados,  tendo  junto  de  si  uma  outra,  que  pode 
ter  sido  destinada  a  alguma  ceremonia  no  aclo  da  entrada  dos 
cadáveres,  ou  a  servir  de  pedestal  de  algumas  relíquias  huma- 
nas mais  veneradas,  se  é  que  não  esteve  primitivamente  collo- 
cada  no  angulo  superior  immediato  para  deixar  assentar  uma 
extremidade  da  mesa,  se  a  outra  estava  inserida  no  angulo  em 
que  se  vê  figurada  na  planta,  formado  por  dois  monolithos,  como 
parece. 

A  secção  comprehendida  entre  a  lage,  fig.  2,  e  o  topo  da 
crypta  manifestou  muitos  ossos  em  desordenado  amontoamento, 
como  se  para  alli  tivessem  sido  lançados  no  acto  de  uma  inva- 


217 

são,  como  chegou  a  ser  percebida  quando  o  monumento  foi  to- 
talmente explorado. 

O  corte  ou  perfil  acima  figurado  na  estampa  representa  ha- 
ver sido  feita  a  construcção  no  solo  natural  e  em  torno  de  uma 
grande  lage. 

A  fig.  7  mostra  o  corte  vertical  pelo  centro  do  dolmen  e  do 
outeiro  que  foi  artificialmente  levantado  por  três  camadas  de 
pedras,  sendo  muito  gradas  a  do  plano  inferior,  muito  miúdas 
a  da  camada  sobreposta  e  menos  miúdas  a  da  camada  su- 
perior. 

Nestas  pedras  vegelam  muitas  cryptogamicas,  e  entre  ellas 
alguns  arbustos  silvestres  l>,  o9  d9  e9  f .  Pareceu  á  primeira 
vista  estarem  as  camadas  de  pedra  partida  ligadas  por  um  ci- 
mento de  cal;  verifiquei,  porém,  que  o  que  parecia  ser  cimento, 
era  apenas  o  resultado  da  decomposição  do  calcareo,  formando 
depósitos  que  os  ligavam,  e  até  pequenas  estalactites,  como  se 
podem  observar  no  museu. 

As  fig.  5  e  fi  indicam  pedras  de  grés  vermelho,  precipita- 
das no  interior  do  monumento,  parecendo  terem  feito  parte  inte- 
grante da  cobertura  da  crypta,  que  não  seria  á  feição  de  mesa,  mas 
de  cúpula,  e  fechada  pela  pedra  cuneiforme  n.°  4,  na  qual  foi 
abatida  por  choques  de  percutor  uma  saliência  natural  um  tanto 
hemispherica. 

A  planta  n.°  9  representa  uma  parte  da  galeria  de  outro  mo- 
numento já  destruído,  de  que  o  explorador  nada  mais  achou. 
Tinha  o  pavimento  empedrado  com  lages  de  schisto,  a  porta  10 
no  seu  competente  logar,  mas  já  lhe  faltavam  alguns  menhirs 
n'um  e  noutro  flanco. 

Todo  o  espaço  que  circumda  o  monumento,  e  que  no  corte 
sob  letra  g*  mostra  ter  interrompido  a  disposição  regular  das 
camadas  de  pedra  com  que  o  tumulas  foi  formado,  representa  o 
âmbito  de  uma  invasão.  O  hábil  explorador  encontrou  alli  nu- 
merosos fragmentos  da  louça  que  fora  extrahida  do  interior  da 
camará  mortuária,  muitos  ossos  partidos  e  outros  objectos.  A  in- 
vasão operou-se  pelo  tecto  da  crypta  e  pelo  lado  direito,  d'onde 


218 

foi  arrancado  o  segundo  menhir,  como  vae  figurado  na  planta 
rectificada. 

Foram  numerosíssimos  os  artefactos  descobertos  e  colligidos 
pelo  explorador.  Todos  me  offereceu  e  remetteu  em  cinco  gran- 
des caixas.  Vão  alguns  reproduzidos  em  estampas  e  todos  elles 
estão  depositados  no  museu. 

A  exploração  não  ficou  porém  completa;  fui  concluil-a,  e  tudo 
se  pôz  á  vista,  achando  ainda  interessantes  objectos.  Foi  en- 
tão que  o  padre  Nunes  da  Gloria  pôde  levantar  a  nova  planta, 
que  vou  descrever,  com  a  mais  rigorosa  exacção. 

A  estampa  iia  mostra  o  resultado  da  minha  exploração. 

O  monumento,  como  se  observa  na  planta  e  no  perfil,  é  ri- 
gorosamente dolmenico.  Oito  corpulentos  monolithos  de  grés,  de 
que  só  falta  um,  formam  o  polygono.  0  1.°  do  lado  de  nordeste 
mede  de  largura  lm,60  e  de  altura  2m,30;  o  2.°,  de  largura 
Om,7õ;  o  3.°  im,10;  o  4.°  0ra,90;  o  5.°  lm,60;  o  6.°  0,n,9:>;  o  7.° 
(0m,50?)  falta;  e  o  8.°  0m,70.  Este  ultimo  servia  ao  mesmo 
tempo  de  batente  da  poria,  que  deve  ter  também  encostado  no 
outro  esteio  transversal,  que  forma  o  flanco  fronteiro  de  entrada 
para  a  crypta  e  tem  de  largura  lm,25.  Do  lado  de  nordeste  o 
flanco  do  vestíbulo  é  composto  de  dois  monolithos,  formando  in- 
ternamente um  angulo  obtuso:  o  1.°,  adherente  ao  batente  da 
crypta,  tem  a  largura  de  0m,85  e  de  altura  l'°,90;  o  2.°  mede  de 
largura  0,n,65.  O  flanco  de  sudoeste  apenas  tem  um  menhir  com 
i,n,65  de  largura.  De  encosto  a  este  e  ao  do  lado  opposto  as- 
senta a  porta  externa  do  vestíbulo  com  0Tn,70  de  largura,  me- 
dindo a  abertura  da  entrada  somente  0m,63.  A:  porta  é  firmada 
com  duas  pedras  grossas,  cravadas  no  chão,  mas  de  pouca  sa- 
liência. Estava  intacta. 

O  eixo  longitudinal  do  dolmen,  partindo  da  porta  do  vestíbu- 
lo, apontada  a  sueste,  corre  no  sentido  de  noroeste.  O  \^nbulo 
é  mui  curto;  mede  apenas  de  extensão  lm,60.  O  diâmetro  da 
crypta  no  eixo  longitudinal  tem  2m,70  e  no  transversal,  de  nor- 
deste a  sudoeste,  2m,60.  Portanto,  o  eixo  total  interno  mede  de 
extensão  4m,30. 


JPs/:  TIA 


Wfcexxx-vesíÀAxJ  /)^xJ    jX^.^c^M^/eÀ/caJ  y^CvuAÃ)* 


hA&aJtòU  d&  A  :  %0$ 


<£**.  CU.  3.  %.  JàaJ  fb>UaJ. 


lith.epra.phi*-  tln.  Imprens*.  WeucLona.1 . 


219 

A  crypta  é  externamente  reforçada  por  outro  circuito  de 
enormes  monolithos,  e  o  pavimento  quasi  tomado  por  uma 
grande  lage  não  trabalhada,  que  serviu  de  fundamento  á  con- 
strucção. 

O  sitio  de  Alcalá  occupa  uma  extremidade  da  faxa  do  trias, 
que  alli  corre  com  largura  superior  a  1  kilometro;  mas  estava 
apenas  separado  do  contacto  da  região  carbonífera  pouco  mais 
de  100  metros.  O  ponto,  porém,  mais  perto  de  Alcalá,  em  que  as 
afflorações  de  maior  vulto  se  manifestam,  é  o  de  Pegos  Verdes, 
relativamente  assaz  distante,  e  comíudo  é  mui  provável  que  d'alli, 
á  custa  de  incalculável  trabalho,  fossem  transportados  os  enor- 
mes monolithos  que  entraram  na  construcção  d'aquelle  dolmen  e 
de  outros  monumentos  do  mesmo  campo,  de  que  hei  de  oceu- 
par-me  em  seu  competente  logar,  por  pertencerem  á  transição  da 
ultima  idade  da  pedra  para  a  idade  do  bronze. 

Na  planta  rectificada  (estampa  iia),  respectiva  á  minha  ex- 
ploração, reproduzo  o  desenho  de  mais  uma  d?aquellas  pedras 
ornadas  de  sulcos,  a  que  já  me  referi,  suppondo  que  taes  pedras 
sejam  fragmentos  das  mesas  que  cobriam  o  dolmen,  e  que  o 
seu  lavor  ornamental  inspire  qualquer  significação,  a  que  o 
meu  curto  entendimento  não  possa  chegar;  pois  é  possível 
qué  os  especialistas  de  hierogliphicos  cheguem  a  descobrir  no 
cruzamento  de  tão  enredadas  linhas  alguns  característicos  em- 
blemáticos de  uma  paleographia  rudimentar,  ou  a  idéa  que  pre- 
sidiu áquelle,  para  mim,  indecifrável  trabalho. 

Mandei  arrecadar  aquellas  pedras  juntamente  com  uma 
grande  esphera  de  calcareo  que  havia  no  interior  do  dolmen  e 
mais  uns  fragmentos,  que  ainda  consegui  colligir  da  faxa  orna- 
mentada dos  famosos  menhirs  de  grés  vermelho,  que  em  1878 
descobri  na  cumeada  de  S.  Bartholomeu  de  Messines,  bem 
como  outro  de  uma  das  pyramides  de  calcareo  com  o  mesmo 
ornato,  que  tinha  visto  erguida  no  monte  da  Pedra  Branca,  perto 
de  Silves,  monumentos  que  então  me  propuz  salvar,  requisitan- 
do-os  para  o  museu  do  Algarve,  e  que  o  governo  deixou  des- 
truir, receiando  talvez  a  despeza  do  transporte;  pois  quando  em 


220 

1882  voltei  áquelles  sitios,  a  pyramide,  que  havia  dado  o  nome 
ao  monte  da  Pedra  Branca,  tinha  sido  aproveitada  para  uma 
farta  fornada  de  cal,  e  os  menhirs  de  grés  estavam  transforma- 
dos em  grandes  pias  para  o  gado  beber  agua! 

Todos  esses  pedaços  de  pedras  estão  resguardados  dentro 
de  grades  de  madeira  na  administração  do  concelho  de  Porti- 
mão, esperando  por  um  governo  que  comprehcnda  a  necessidade 
de  não  ter  por  mais  tempo  inutilisado  o  museu  archeologico  do 
Algarve,  e  queira,  consequentemente,  proteger  a  sua  rcorgani- 
sação,  em  vez  de  consentir  á  academia  de  bellas  artes  (que 
já  deslocou  a  collecção  dos  mosaicos  por  mim  colligidos,  col- 
locando-os  no  seu  celebre  museu  das  Janellas  Verdes)  *  ou  a 
qualquer  outra  instituição,  que  vá  lançado  mão  de  objectos  que 
devem  estar  methodicamente  reunidos  para  não  perderem  a  sua 
genuína  significação  e  importância  scientifica. 

As  mencionadas  pedras  com  ornatos,  que  figuro  na  estampa  n 
sob  os  n.os  5  e  6  são  as  que  na  estampa  ha  reproduzo  em  me- 
nor escala  com  as  letras  a  e  t>,  e  a  que  vae  marcada  com  a 
letra  o  é  a  que  achei  em  dois  pedaços,  que  perfeitamente  se  aju- 
stam, como  no  desenho  se  mostra,'  e  mandei  arrecadar  com  as  ou- 
tras. 

Com  referencia  ao  monumento,  resta-me  accrescentar,  que  a 
porta  do  átrio  está  apontada  para  sueste  e  que  o  seu  eixo  longi- 


1  A  academia  de  bellas  artes,  estando  depositaria  do  museu  que  tudo  me  deve,  man- 
dou para  o  palácio  das  Janellas  Verdes  40  exemplares  dos  mosaicos  que  eucolligi  no  Al- 
garve e  tinha  no  museu,  collocados  em  rigorosa  ordem  geographica,  para  representarem 
as  terras  que  os  romanos  deixaram  assignaladas  com  os  famosos  edifícios,  que  devo  des- 
crever no  terceiro  volume  d'esta  obra  e  indicar  na  carta  archeologica  dos  tempos  históri- 
cos. Mas  qual  foi  a  minha  surpreza,  quando  ao  entrar  n'aquelle  chamado  Museu  nacional 
de  bellas  arlcs  (onde  a  desordem  nasceu  da  inépcia  e  a  inépcia  da  incompetência  dos  seus 
instituidores);  dei  logo  de  frente  com  os  preciosos  mosaicos,  que  tantas  fadigas  e  traba- 
lhos me  custaram,  vendo-os  collocados  sem  a  minima  ordenança,  como  tudo  quanto  lá 
está,  e  já  peia  maior  parte  sem  os  rótulos  que  indicavam  o  concelho,  a  freguezia  e  a 
terra,  que  cada  um  representava,  e  que  ninguém  é  capaz  de  lh'os  tornar  a  pòr  senão  eu? 

Os  que  tanto  apregoam  a  sua  sabedoria,  querendo  dirigir  instituições  que  não  sa- 
bem compreliender  nem  organisar,  são  precisamente  áquelles  que  praticam  estes  e  ou- 
tros vandalismos ! 

Permitta-se-me  que,  em  presença  de  tão  lamentáveis  desconcertos,  aqui  registre 
um  brado  de  indignação  e  um  firme  protesto  contra  tanto  barbarismo ! 


221 

tudinal  corre  no  sentido  de  noroeste,  tomada  a  orientação  pelo 
norte  magnético.  Registre-se  desde  já  esta  circumstancia,  para, 
em  vista  da  orientação  dos  outros  monumentos  preliistoricos,  se 
ficar  entendendo,  que  na  ultima  idade  da  pedra,  e  ainda  mesmo 
na  idade  do  bronze,  a  orientação  dos  jazigos  não  era  intencional 
nem  subordinada  a  qualquer  preconceito,  ou  idéa  religiosa. 

Tratarei  agora  dos  caracteristicos  ethnicos  c  industriaes  que 
o  monumento  manifestou. 

Os  ossos  encontrados  no  dolmen  coberto  de  Alcalá  estavam 
reduzidos  a  pedaços.  Pouco  podem  significar  com  referencia  ás 
revelações  ethnicas  que  deviam  fornecer,  se  ainda  alli  se  conser- 
vassem algumas  cabeças  ósseas,  ou  craneos,  em  estado  de  se  po- 
derem stereographar  e  medir.  Os  fragmentos  de  craneos  colligi- 
dos  mui  cuidadosamente  pelo  intelligente  padre  Gloria,  são  pou- 
cos e  deficientes.  A  maior  peça  que  achei  foi  um  osso  frontal, 
tendo  ainda  intacta  a  arcada  orbitaria  esquerda.  A  pouca  con- 
vexidade d'este  osso,  a  grande  proeminência  supraciliar  e  a  pe- 
quena saliência  da  correspondente  bossa  frontal,  são  caracterí- 
sticos que  deixam  presumir,  com  as  devidas  reservas,  pertence- 
rem a  um  craneo  dolichocephalo. 

Entretanto,  apparecendo  também  dois  fragmentos  de  mandí- 
bulas, e  conservando  ainda  um  d'elles  dois  dentes  incisivos,  um 
canino  e  o  primeiro  premolar,  nota-se  não  haver  sensível  pro- 
gnatismo alveolar  nem  dentário,  geralmente  frequente  nas  raças 
inferiores ;  mas  como  nenhum  d'estes  fragmentos  conserva  o  ramo 
montante  com  o  seu  condylo  mandibular,  e  não  se  pode  por  isso 
determinar  o  angulo  da  mandíbula,  ignora-se  portanto  o  grau  de 
inclinação  que  poderiam  ter  os  incisivos,  ou  se  com  effeito  o  typo 
dentário  era  orthognata.  Ha  porém  nos  ditos  quatro  dentes  o  cara- 
cterístico assaz  commum,  nos  que  são  verdadeiramente  prehisto- 
ricos,  de  se  mostrarem  igualmente  arrazados  e  gastos,  como  se 
tivessem  sido  roçados  em  pedra  de  amolar,  sendo  ao  mesmo 
lempo  notável  a  saliência,  perfeitamente  conservada,  da  apophyse 
geni,  que  por  isso  não  pode  considerar-se  pithecoide,  como  a  ce- 
lebre mandíbula  da  Naulette.  . . 


222 


Entre  os  ossos  longos  ha  uns  fragmentos  de  fémures  com 
muita  elevação,  espessura  e  fundo  sulco  na  linha  áspera, 


Fie.  i 


como  se  nota  haver  nos  de  Cro-Magnon ;  a  secção  transversal  da 
tibia  não  é  prismática  ou  triangular  nos  três  quintos  superiores 

Fig.2 


como  geralmente  o  é  nas  raças  européas  actuaes,  mas  sensivel- 
mente propendente  para  a  platycnemia,  isto  é,  não  tendo  mais 
que  duas  faces  bem  determinadas,  sem  que  a  superior  forme  an- 
gulo elevado.  E  também  característico  da  família  de  Cro-Magnon, 
e  de  muitos  depósitos  neolithicos. 

Outro  osso  se  indica  como  característico  muitas  vezes  apre- 
ciado em  depósitos  d'esses  tempos  e  é  o  perono-canellado,  como 
o  que  represento  sob  a 

Fig.  3 


A  perforação  do  hiimerus  na  cavidade  olecraneana  é  cara- 
cterístico de  antigas  raças  européas,  comquanto  não  seja  geral; 
entra  em  proporções  mui  variáveis  e  por  isso  não  o  julgo  assaz 
seguro:  assim,  na  caverna  do  Homem  Morto  (Lozère)  em  cem 


223 

humeros,  dez  eram  perforados,  do  mesmo  modo  que  nos  dol- 
mens  d'aquelle  departamento  da  França. 

Esta  proporção  augmcnta,  porém,  na  razão  de  vinte  e  um  por 
cem  nas  estações  neolithicas  de  Vaurcal,  d'Orrouy  e  Chamans.  No 
dolmen  coberto  de  Alcalá  colligi  Ires  fragmentos  de  humeros  do 
braço  esquerdo,  sendo  um  d*e)lcs  somente  perforado,  mas  nos 
outros  dois  ha  tão  minguada  espessura  entre  o  fundo  da  cavidade 
olecraneana  e  o  da  coronoidea,  que,  apontada  á  luz,  se  nota  ter 
passado  ao  estado  de  translucidez;  o  que  parece  mostrar  que  a 
força  muscular  exerceu  vigorosa  acção  n'aquclles  pontos  de  in- 
serção. 

O  conjuncto  d*estes  característicos  ainda  assim  não  permitte 
seguras  conclusões:  entretanto  parece  offerecer  incontestáveis  re- 
ferencias ás  raças  neolithicas. 

A  paleontologia  era  representada  no  deposito  mortuário  de 
Alcalá  por  ossos  e  dentes  de  veado,  de  boi,  de  javali,  de  cabra, 
de  coelho  e  de  aves,  e  pelas  conchas  de  vários  molluscos  maríti- 
mos comestíveis.  Tudo  isto  foi  achado  no  interior  do  monumento, 
envolto  nos  entulhos,  e  portanto  em  completa  desordem;  mas 
por  isso  mesmo  que  tantos  ossos  e  conchas  alli  tinham  tido  en- 
trada, quer  pertencessem  aos  depósitos  propriamente  do  dolmen, 
quer  n'elle  se  introduzissem  com  os  entulhos  que  o  encheram,  mo- 
stram ser  restos  inaproveitaveis  da  alimentação  do  único  povo  que 
n'aquelle  escampado  deixou  provas  de  occupação,  e  tanto  assim 
parece  dever-se  considerar,  que  basta  observar-se  o  estado  chi- 
mico  em  que  taes  ossos  e  conchas  se  acham,  já  com  grande  perda 
de  matéria  orgânica,  para  não  poderem  ser  attribuidos  a  uma 
nacionalidade  menos  antiga. 

Os  molluscos  representam  oito  espécies,  quatro  univalves  e 
quatro  bivalves:  as  primeiras  são  o  Murex  trunculus,  Lin.,  Cas- 
sis  canaliculata,  Brug.,  Cassis  graniáosa,  Lamk.  e  Patella  clongata, 
Fr.;  as  segundas  são  o  vulgarissimo  Càrdium  edule,  Lin.,  a  Pui- 
lastra  decussata,  Lin.,  abundantíssima  também,  um  Pectuncidm, 
cujas  valvas  se  acham  com  frequência  na  praia  marítima  do  sul, 
e  a  Ostrea  edidis,  Lin. 


224 

Com  excepção  da  Patella  elongala,  que  não  me  recordo  de 
haver  encontrado  nas  minhas  excursões  a  raia  marítima  e  que  só 
se  acharia  nos  rochedos  submersos,  todas  as  outras  espécies  po- 
deriam ter-se  mariscado  na  próxima  praia  de  Alvor  ao  sul  de 
Alcalá  uns  8  kilometros;  o  que  não  julgo  inverosímil,  tendo 
achado  tantos  vestígios  neolithicos  por  toda  a  margem  esquerda 
da  ribeira  do  Farello  e  do  mesmo  modo  em  todo  o  flanco  direito 
da  ribeira  do  Verde  até  ás  praias  do  oceano. 

As  reminiscências  das  sociedades  paleolithicas  autocthones 
não  podiam  deixar  de  subsistir  nos  tempos  neolithicos,  tendo-se 
n'esta  região  conservado  o  typo  ethnico  mais  antigo  da  Europa. 
A  industria  da  pedra  lascada  e  do  osso  manufacturado,  em  vez 
de  se  extinguir,  altingiu  novas  formas  e  aperfeiçoamentos,  que 
ficaram  sendo  característicos  d'aquella  epocha,  em  que  também 
surgiram  outras  industrias  até  então  não  conhecidas  em  parte 
alguma.  Alguns  instrumentos  que  nos  tempos  geológicos  eram 
simplesmente  lascados,  passaram  a  ser  parcial  ou  totalmente  po- 
lidos, assim  como  outros  anteriormente  não  usados.  O  uso  do 
silex  lascado  vae  até  os  tempos  terciários,  embora  não  tenha 
apparecido  com  elles  algum  vestígio  da  cabeça  que  os  inventou 
ou  das  mãos  que  os  produziram ;  mas  o  silex  lascado  paleolithico 
não  se  pode  confundir  com  o  neolithico,  sobretudo  nos  instru- 
mentos mais  typicos. 

Apenas  uma  excepção  de  inexplicável  progresso  na  manu- 
factura do  silex  appareceu  com  as  grandes  laminas  biponfagu- 
das,  admiravelmente  trabalhadas,  na  terceira  epocha  quaterná- 
ria, mais  conhecida  pelo  nome  de  Soluiré,  que  poderiam  sem 
repugnância  julgarem-se  neolithicas,  se  tivessem  sido  vistas  em 
depósitos  de  pedra  polida  e  de  louças.  Esse  trabalho,  verdadei- 
ramente surprehendente,  terminou  porém  com  aquella  epocha, 
pois  não  se  tornou  a  ver  em  estações  da  ultima  phase  geoló- 
gica. O  lascado  fino,  certeiro  e  aperfeiçoado  das  grandes  e  del- 
gadas laminas  de  silex  das  estações  de  Solutre  só  reapparece  nas 
famosas  pontas  de  lança  e  pontas  de  frecha  na  ultima  idade  da 
pedra.  Em  fim,  o  dolmen  coberto  de  Alcalá  vae  manifestar  todos 


ALOALA. 


Mtjsr 


2á5 

os  produclos  industriaes,  que  acompanhavam  os  indivíduos  que 
nelle  foram  sepultados;  e  porque  estou  failando  em  pedra  las- 
cada, começarei  por  esses  artefactos,  ha  exemplares  notavelmente 
admiráveis. 

A  estampa  111  representa  dezesete  pontas  de  frecha  de  silex,  pela 
maior  parte  de  formas  não  vulgares,  entre  as  quaes  as  de  n.os  1, 
2  c  8  julgo  serem  inéditas.  Não  descrevo  cada  uma  de  per  si, 
porque  toda  a  descripção,  depois  do  que  já  expendi  acerca  dos 
diversos  typos  d'estas  armas  de  arremeço,  seria  escusada  repe- 
tição. Bastará  olhar  para  a  estampa  e  observal-as  com  attenção, 
ou  recorrer  ao  museu,  onde  deixei  depositados  todos  os  origi- 
naes.  A  fig.  18  da  mesma  estampa  mostra  a  secção  superior  de 
uma  ponta  de  lança  de  silex,  da  mesma  feição  das  de  Aljezur  e 
de  outras  que  descobri  no  monumento  da  Marcella,  como  adiante 
se  verá. 

Esta  forma  é  talvez  quasi  privativa  do  território  portuguez  e 
com  certeza  raríssima  na  Europa.  Nos  seus  competentes  logares 
se  irão  observando  os  exemplares  das  estações  neolithicas  do  Al- 
garve. O  sr.  de  Mortillet  representa  na  estampa  x  sob  o  n.°  59, 
do  seu  Musée  préhistorique  uma  d'estas  pontas  de  lança,  incluin- 
do-a  entre  os  instrumentos  chelleqnos,  correspondentes  á  primeira 
epocha  do  quaternário,  comquanto  lhe  pareça  poder  com  prefe- 
rencia referil-a  á  immediata,  ou  Mousteriana,  que  nas  cavernas, 
é  caracterisada,  paleontologicamente,  pelo  Ursas  spelceus.  A  este 
respeito  diz  o  sábio  auetor:  «Les  instruments  triangulaires,  pres- 
que  inconnus  dans  les  alluvions,  sont  três  rares  partout*.  Esta 
forma  appareceu  também  figurada  no  mesmo  dolmen  de  Alcalá 
por  uma  lamina  de  schisto,  que  bem  parece  ter  sido,  se  não  des- 
tinada a  uma  haste  como  arma  de  arremeço,  alli  depositada  como 
objecto  de  consagração.  Vae  figurada  sob  o  n.°  3  na  estampa  iv, 
e  comquanto  na  linha  inferior  não  seja  idêntica,  é  comtudo  simi- 
lhante  a  outras  de  base  pedunculada.  Quanto  a  mim,  não  levo 
tão  longe  as  pontas  triangulares  de  silex. 

Na  dita  estampa  m  figuro  com  os  n.os  19  e  20  dois  fra- 
gmentos de  facas  de  silex,  achados  pelo  primeiro  explorador,  e 

lo 


226 

na  estampa  iv,  sob  os  n.os  9  a  li,  represento  três  facas  incom- 
pletas, divididas  na  face  posterior  em  três  planos,  cujos  gumes 
já  manifestam  ligeiros  retoques,  ou  falhas  provenientes  do  tra- 
balho. Achei  também  um  fragmento  de  serra  de  silex,  ou  antiga 
faca  retocada.  Estes  typos  são  precisamente  neolithicos,  assim 
como  os  da  frecha  5  a  7. 

Todos  os  mais  artefactos  figurados  na  estampa  iv  são  objectos 
de  adorno.  Mais  adiante  os  descreverei. 

Na  estampa  v  com  o  n.°  1  figuro  um  perfeito  machado  cie 
schisto  amphibolico,  todo  desengrossado  em  pedra  de  grés,  com 
duas  facetas  decrescentes  e  convergindo  em  gume  cortante,  um 
tanto  arqueado,  em  que  ha  ligeiras  fracturas.  Ficou  reduzido  a 
menores  dimensões  pela  photographia ;  mas  o  original  mede 
0m,13  de  comprimento,  0m,Q54  na  maior  largura  e  0m,043  na 
máxima  espessura.  Foi-me  offerecido  com  os  outros  instru- 
mentos representados  na  mesma  estampa  pelo  rev.d0  Nunes  da 
Gloria,  e  todos  estão  depositados  no  museu. 

O  de  n.°  2  é  uma  perfeita  enxó  de  diorite  policia.  Tem  afi- 
lado corte  e  larga  faceta,  como  se  vê;  mas  as  suas  dimensões 
medem  de  comprimento  0m,087,  de  largura  junto  ao  corte 
0m,043,  e  na  máxima  espessura  0m,015.  Já  deixei  grupados  e 
descriptos  estes  instrumentos  e  por  isso  não  julgo  mister  descre- 
ver este  com  maior  desenvolvimento.  Lá  está  no  museu  para  po- 
der ser  observado. 

O  instrumento  n.°  3  foi  primitivamente  machado,  mas  pas- 
sou a  ser  famoso  polidor.  E  de  diorite  negra  e  fina,  de  rija 
consistência.  Tem  duas  faces  largas  e  duas  lateraes  mais  es- 
treitas, formando  quatro  ângulos  abatidos,  e  superiormente  um 
plano  sub-rectangular,  que  serviu  de  polidor,  cujos  eixos  me- 
dem 0m,047  e  0m,019.  O  comprimento  lemOm,U2,  a  largura 
0m,054  e  a  espessura  maior  0m,037.  Junto  á  extremidade  es- 
treita está  fracturado. 

O  n.°  4  representa  um  pequeno  escopro  com  duas  facetas 
que  decrescem  até  convergirem  em  gume  cortante.  Mede  de  com- 
primento 0m,057,  de  largura  0m,022  e  de  espessura  0m,009. 


ALCALA 


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ALCALA 


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227 

Tenho  agora  de  referir-me  a  outros  instrumentos  similhan- 

tes,  que  descobri  na  exploração  complementar  em  1882,  quando 
as  estampas  antecedentes  já  estavam  impressas,  e  são  os  que 
voa  figurar  na  estampa  vi. 

O  machado  que  represento  com  o  n.°  i,  é  de  schisto  amphi- 
bolico.  Tem  quatro  faces,  duas  da  largura  de  0n,,0GQ  junto  ao 
corte  e  duas  lateraes  com  0"\038,  tendo  porém  os  ângulos  aba- 
tidos. E  quasi  todo  preparado  com  tosco  trabalho.  As  facetas 
formam  duas  curvas  convergindo  no  corte,  e  são  completamente 
polidas.  É  instrumento  assaz  possante  e  muito  denso.  O  seu 
comprimento  dá  exactamente  18  centímetros.  A  espessura  geral 
é  figurada  á  margem  e  representa  o  corte  longitudinal.  O  corte 
transversal  daria  uma  figura  proximamente  rectangular,  se  os 
ângulos  não  tivessem  sido  arredondados. 

A  enxó  n.°  2  é  de  schisto  amphibolico.  Não  é  curvilínea  c 
portanto  entra  como  variante  no  grupo  das  do  Algarve,  sem  que 
comtudo  o  seja  no  dos  instrumentos  d'este  género  mais  vulgares 
na  Europa.  A  face  posterior  ó  plana  e  não  arqueada;  a  anterior 
ó  aquella  em  que  a  faceta  diagonal  determina  o  corte  em  arco  de 
circulo,  sendo  totalmente  polida.  Tem  faces  lateraes  formando  ân- 
gulos rectos  com  as  mais  largas.  O  corte  é  perfeitíssimo.  É  exem- 
plar digno  de  figurar  nas  mais  selectas  collecções.  Mede  0m,136 
de  comprimento,  0m,061  de  largura  no  corte  e  0m,020  de  espes- 
sura. 

O  instrumento  n.°  3  é  um  escopro  todo  polido  de  schisto  am- 
phibolico. Mede  0m,  145  de  comprimento,  0m,034  na  maior  lar- 
gura, e  na  máxima  espessura  0in,023.  E  de  secção  transversal 
quadrangular  com  os  ângulos  abatidos.  Achei-o,  com  mais  seis 
instrumentos,  entalado  entre  dois  esteios  do  monumento.  O  corte 
manifesta  indícios  de  trabalho ;  está  ligeiramente  lascado.  E  pro- 
dueto  da  exploração  complementar.  Foi  por  mim  descoberto  no 
fim  de  maio  de  1882.  E  talvez  o  mais  perfeito  no  seu  grupo. 

O  instrumento,  que  vou  figurar,  foi  um  pequeno  machado  po- 
lido de  rija  diorite,  posteriormente  transformado  cm  brunidor.  E  o 
que  represento  sob  o  n.°  h. 


228 

A  letra  A  indica  a  face  mais  larga  com  0m,031  junto  ao 
bordo  superior;  A'  mostra  o  plano  resultante  do  trabalho  com 
Qm,031  por  0m0U,  e  A"  o  perímetro  lateral  com  a  largura  má- 
xima de  0m,026,  sendo  a  sua  maior  espessura  de  0m,030.  O 
plano  inferior  B  tem  signaes  de  percussão.  São  similhantes  a  este 
duas  metades  de  machados,  que  parece  terem  sido  assim  prepa- 
radas para  brunidores.  Todos  três  são  de  schisto  amphibolico.  Este 
porém,  n.°  4,  é  mui  similhante  ao  de  n.°  3  da  estampa  v,  desco- 
berto pelo  rev.d0  Nunes  da  Gloria. 

Um  outro  pequeno  instrumento  achei  eu  com  os  anteceden- 
tes: é  o  que  indico  sob  o  n.°  5.  Pela  sua  configuração  deveria 
incluir-se  no  género  escopro.  Parece  porém  um  brunidor.  Tem  a 
forma  rectangular,  como  se  vê,  no  plano  transversal  C  e  na 
face  C,  e  comquanto  termine  em  bocca  de  escopro,  não  o  podia 
ser  de  rocha  tão  branda.  O  seu  aspecto  avermelhado  e  micaceo 
fez-me  a  principio  julgar  que  fosse  de  mármore  griotte;  era  po- 
rém menos  duro,  e  de  granulação,  embora  mui  fina,  muito  mais 
áspera,  porque  era  de  grés,  e  por  isso  não  podia  ter  sido  empre- 
gado como  instrumento  cortante.  Nas  suas  facetas  ha  estrias 
e  no  gume  duas  falhas,  parecendo  provenientes  da  acção  do  tra- 
balho. 

Poderia  pois  ter  servido  para  desengrossar  e  aperfeiçoar 
objectos  delicados,  ou  entraria  no  deposito  como  simples  symbolo 
de  um  instrumento  cortante.  Finalmente,  é  um  enigma,  como  ha 
muitos.  Os  que  sabem  tudo,  e  os  que  facilmente  inventam,  quando 
não  sabem,  que  o  baptizem  a  seu  gosto,  emquanto  eu  fico  igno- 
rando as  applicações  que  leve  na  ultima  idade  da  pedra. 

Um  grupo  de  quarenta  e  cinco  calhaus  de  varias  rochas,  pre- 
dominando as  diorites,  o  basalto,  os  schistos,  a  foyaite  e  o  grés, 
com  diversas  formas  e  grandezas,  colligiu  o  padre  Nunes  da  Glo- 
ria no  monumento  de  Alcalá  em  1880.  Ha  entre  elles  muitos  per- 
cutores, alisadores  e  pilões  de  moagem.  Todos  deixei  depositados 
no  museu.  Com  elles  veiu  uma  pedra  de  moagem  de  grés  vermelho 
escuro,  de  granulação  grosseira,  com  mescla  de  calhaus  de  quartzo 
e  de  ferro  granular  (?),  mostrando  um  aspecto  tirante  a  bre- 


ALCALA 


EST.  VII 


229 

cbiforme.  Estava  no  interior  do  dohnen.  Outra  pedra  de  moa- 
gem, de  rocha  granitoide,  parecendo  ser  da  foyaite  de  Monchi- 
que, também  lá  estava.  Esta  é  concava  n'uma  face  e  convexa  na 
outra.  Devia  ser  a  pedra  fixa  ou  mola  de  um  apparelho  de  moa- 
gem; e  caso  notável  é  que  alguns  calhaus  da  mesma  rocha,  mos- 
trando terem  tido  muito  uso,  se  adaptem  perfeitamente  á  conca- 
vidade da  dita  pedra,  a  qual  mede  nos  dois  máximos  diâmetros, 
postos  em  cruz,  0m,25  e  0m,22,  sendo  de  0m,12  a  sua  espes- 
sura. 

A  estampa  vn  mostra  a  configuração  de  dois  graes  de  calca- 
reo  branco  fino  e  compacto,  formando  bojo  e  gargalo  proxima- 
mente circular,  e  internamente  uma  cavidade  regular.  Foram 
achados  no  interior  do  dolmen  de  Alcalá  pelo  rev.d0  Nunes  da 
Gloria,  e  tenho-os  depositados  no  museu.  Quem  visse  isolada- 
mente obra  tão  perfeita,  como  é  principalmente  o  segundo,  sem 
saber  das  condições  archeologicas  em  que  ambos  jaziam,  entre 
ossos  humanos,  instrumentos  de  pedra  lascada  e  polida  e  tantos 
outros  objectos  neolithicos,  não  hesitaria  em  attribuil-os  a  uma 
civilisação  histórica  assaz  adiantada.  A  primeira  vista  parecem 
torneados  e  polidos  no  torno,  mas  nenhum  d'elles  é  rigorosa- 
mente circular.  Mede  o  primeiro  no  diâmetro  externo  do  bordo 
0m,074,  no  interno  0m,057.  O  diâmetro  do  bojo  é  de  0m,83,  a 
espessura  entre  o  fundo  concavo  e  a  base  externa  é  de  0m,029, 
e  o  eixo  do  espaço  concavo  é  de  0m,054. 

O  segundo  é  perfeito.  Tem  o  gargalo  mais  levantado,  for- 
mando entre  o  bordo  externo  e  o  bojo  uma  cannelura  mui  aber- 
ta. O  diâmetro  externo  do  gargalo  mede  0m,071,  o  do  bordo 
interno  0m,056,  o  do  bojo  0m,083,  o  eixo  da  capacidade  con- 
cava, 0,030  e  a  altura  total  0,054.  Este  gral  tem  no  plano 
do  bordo  um  sulco,  que  mostra  ter  servido  para  vasar  as  sub- 
stancias liquidas  que  n'elle  se  preparavam,  e  taes  seriam  as  tin- 
tas para  as  tatuagens  da  pelle  ou  para  a  pintura  das  armas  de 
guerra  e  de  vários  adornos,  como  ainda  hoje  usam  alguns  povos 
selvagens. 

E  não  é  sem  o  preciso  fundamento  que  julgo  terem  os  graes 


230 

de  pedra  servido  para  a  trituração  e  preparo  de  tinias;  pois  ou- 
tro de  Alcalá,  de  que  darei  noticia,  conserva  ainda  adherentes 
restos  de  hematite  vermelha.  Achei  depois  na  minha  propriedade 
da  Arrancada,  junlo  ao  flanco  esquerdo  da  ribeira  de  Almargem, 
perto  de  Tavira,  outro  gral  de  calcareo  brando  com  uma  barra 
interna  de  cor  quasi  preta.  N'outras  estações  neolithicas  da  Eu- 
ropa tôem-se  encontrado  bocados  de  limonite  ou  ferro  oxidado 
hydratado,  que  produz  um  bello  vermelho,  assim  como  pedaços 
de  manganez,  que,  reduzido  a  pó,  dá  tinta  escura  quasi  preta. 
N'esta  mesma  província  achei  eu  n  outros  dolmens  cobertos  a 
limonite  e  o  cinabrio,  como  em  seu  logar  relatarei;  mas  nalgu- 
mas estações  estrangeiras,  em  que  se  teem  achado  tintas  mine- 
raes,  appareceram  ossos  longitudinalmente  partidos,  de  que  se 
extrahiu  a  medulla,  com  que  se  presume  que  seriam  moidas  as 
tintas  que  a  natureza  offerecia  áquellas  gentes,  que  já  amavam 
o  luxo  e  a  bclleza,  procurando  os  mais  exquisitos  enfeites  para 
se  adornarem. 

Ora,  as  tatuagens  não  ficaram  porém  reservadas  para  o  es- 
tado selvagem;  modificadas,  e  com  outros  diversos  appellidos, 
subsistem,  e  cada  vez  em  maior  grau  em  meio  das  sociedades 
mais  elevadas.  Façam  uma  súbita  pesquiza  nos  escaninhos  do 
toucador  de  uma  dama  elegante  dos  nossos  dias  e  achar-se-hão 
em  meio  de  um  complicado  deposito  de  drogas  e  de  preparados 
milagrosos,  dos  que  rejuvenecem  o  rosto  já  rugado,  restituem  a 
belleza,  a  frescura  da  mocidade  e  os  próprios  encantos  que  já 
iam  de  abalada  envoltos  na  passagem  da  estação  florida  para  a 
da  queda  das  folhas. . .  E,  emfim,  uma  tatuagem  de  novo  géne- 
ro. O  carmim  suppre  a  hematite  e  a  limonite,  o  pó  de  arroz  sup- 
pre  o  manganez  com  justificada  preferencia  e  o  coldcreme  substi- 
tue  a  medulla  dos  ossos  de  boi,  de  veado  e  de  carneiro,  dando 
estas  felizes  substituições  pasmosos  resultados. 

Tal  seria  pois  o  uso  das  tintas  nos  tempos  da  ultima  idade 
da  pedra,  e  mesmo  na  transição  para  a  idade  do  bronze,  a  que 
pertence  um  dolmen  de  Alcalá,  que  forneceu  á  minha  exploração 
mais  um  gral,  uma  lasca  de  pedra  com  uma  cavidade,  que  pode 


231 

lambem  ter  lido  a  mesma  applicação,  e  com  estes  objectos  um  pe- 
queno calhau  oval,  que  bem  parece  haver  sido  pilão  de  algum 
d'elles. 

Se  porém  os  graes  de  pedra  polidos  dão  que  admirar  a  quem 
sabe  o  tempo  que  caraclerisam,  muito  mais  deve  maravilhar  uma 
ténue  taça  de  calcareo  branco  fino,  com  0m,137  no  diâmetro  ex- 
terno, 0m,128  no  interno,  e  approximadamenle  com  0m,060  de 
altura.  Achei  d'este  delicado  artefacto  seis  fragmentos,  havendo 
quatro  que  se  ligam  pelo  bordo  superior,  um  tanto  saliente  e 
formando  ligeira  cannelura  com  o  bojo,  cuja  espessura  varia  de 
0m,003  a  0m,005.  Tem  cinco  orifícios  junto  ao  bordo  e  mais  dois 
no  bojo. 

A  sua  configuração  é  um  tanto  similhante  á  do  primeiro  gral. 
Custa  a  conceber  como  em  taes  tempos,  sem  o  auxilio  de  instru- 
mentos de  aço,  se  tivesse  podido  concluir  uma  tão  difficil  como 
perfeita  obra  de  arte,  que,  a  ter-se  achado  inteira,  seria  admirá- 
vel ornamento  para  um  museu.  Nos  dois  fragmentos  maiores  só 
ha  junto  ao  bordo  um  orifício  em  cada  um.  No  mesmo  dolmen 
colligi  um  fragmento  de  vaso  de  barro,  bastante  espesso,  tendo 
no  bordo  um  orifício,  e  outros  assim  achei  em  vários  monumen- 
tos, havendo  porém  um  entre  elles  com  muitos  buracos  no 
fundo. 

O  dr.  N.  Joly,  no  seu  excellente  livro  intitulado  UHomme 
avant  les  mètaux,  referindo-se  ás  louças  neolithicas,  enumera  en- 
tre outras  uns  «vases  a  faire  égoutter  le  fromage  presque  ideníi- 
ques  a  ceux  qui  servent  encore  au  même  asage  dam  le  midi  de  la 
France;  lampes,  prises  quelque  fois  pour  des  vases  à  creme  (?), 
etc»,  pag.  285.  E  pois  mui  provável  que  alguma  d'estas  appli- 
cações  tivessem  os  de  Alcalá,  cujos  fragmentos  se  acham  atra- 
vessados de  orifícios,  no  bojo  e  no  fundo;  porquanto,  os  que  o  são 
somente  no  bordo,  deixam  presumir  que  seriam  por  ahi  pendu- 
rados para  o  escoamento  de  líquidos  supérfluos,  ou  para  não  se 
quebrarem. 

Não  estava  o  dolmen  de  Alcalá  destituído  de  enfeites,  e  jóias 
próprias  do  tempo  e  da  gente  que  então  vivia. 


232 

Placa  de  schísto  negro  com  gravura.  —  O  especialíssimo  cara- 
cterístico neolithico  das  estações  d'esta  região,  que  já  se  viu  lar- 
gamente exemplificado  em  Aljezur  e  no  Serro  Grande,  também 
se  manifestou  no  dolmen  coberto  de  Alcalá,  acompanhado  de 
muitas  outras  laminas  de  schisto  existentes  no  museu.  A  es- 
tampa vm  representa  o  maior  fragmento  alli  achado  na  explora- 
ção que  dirigi  em  1882.  Já  disse,  que  reservava  para  o  fim 
d'este  livro  a  monographia  das  placas  de  schisto  gravadas  de 
Portugal,  e  por  isso  me  limito  a  registrar  aqui  a  terceira  esta- 
ção, a  partir  de  Aljezur,  com  este  singular  característico. 

Voltarei  agora  ao  resto  do  que  ficou  figurado  na  estampa  iv, 
de  que  ainda  não  dei  noticia  alguma.  Convido  pois  os  benévolos 
leitores  a  dirigirem  de  novo  as  suas  vistas  para  essa  estampa,  a 
fim  de  ficarem  conhecendo  os  poucos  objectos  de  ornato  que  havia 
na  estação  dolmenico-tumular  de  Alcalá;  e  aproveito  a  occasião 
para  lhes  explicar,  que  o  motivo  d'estas  alterações,  que  fui  obri- 
gado a  fazer,  proveiu  de  já  estarem  impressas  muitas  estampas 
antes  de  conhecidos  os  resultados  da  exploração  complementar, 
ordenada  pelo  governo  em  1882. 

A  fig.  n.°  1  representa  uma  conta;  mui  conhecida  em  nume- 
rosas estações  neolithicas  estrangeiras  e  também  em  algumas  do 
território  portuguez.  Os  archeologos  francezes,  fallando  das  con- 
tas idênticas  á  de  Alcalá,  referem-n  as  a  uma  substancia  mineral, 
que  denominam  callais  e  calaite. 

Plinio,  querendo  mostrar  a  estima  que  o  topázio  lograva,  como 
preferido  a  todas  as  mais  pedras  preciosas,  passa  a  descrever 
uma  substancia  de  côr  verde-pallido  (viridi  pallens),  a  que  dá  o 
nome  de  callais,  e  continuando  a  sua  curiosa  enumeração  das 
pedras  mais  apreciadas,  falia  ainda  da  callais  no  livro  xxxvn  ca- 
pitulo lvi,  dizendo  imitar  a  saphira,  sendo  porém  menos  escura, 
e  tirante  a  côr  da  agua  da  borda  do  mar:  «Callais  saphinim  imi- 
tatur,  candidior,  et  littoroso  mari  similis».  Distingue  finalmente 
a  callais  da  callaina,  designando  esta  como  parecida  áquella, 
mas  de  côr  túrbida  ou  pouco  limpa:  «Callainas  vocant  et  tnrbido 
calíaino»,  pag.  554  e  561. 


ALCALA 


EST.  VIII 


233 

Não  obstante  a  distincção  com  que  estrema  estas  duas  pedras, 
nota  ao  mesmo  tempo  acharem-sc  juntas.  Refere-as  ao  Cáucaso, 
mas  recommenda  a  callais  da  Carmania  como  sendo  a  mais  lirn- 
pida  e  faella,  e  accrescenla  ser  mais  estimada  a  de  cor  verde.  E 
o  que  a  final  não  escapou  ao  erudito  naturalista,  foi  a  tradição  de 
que,  não  só  a  gente  de  bom  gosto  costumava  adornar-se  com 
aquella  pedra  engastada  em  ouro  e  fabricada  em  contas,  como 
também  o  melancorypho,  pássaro  da  Arábia,  a  levava  para  o  ni- 
nho: *Sunt  qui  in  Arábia  inveniri  eas  dicantin  nidis  avium,  quas 
melancoryphos  vocant». 

Alguns  mincralogistas  modernos  consideram  a  calaite  como 
synonymo  de  tarqveza  de  velha  rocha. 

Brard  *  cita  um  trabalho  importante  de  Fischer,  publicado  em 
1818  no  volume  vm  dos  Annales  des  mines,  sob  o  titulo  de  Essai 
sur  les  turquoises,  no  qual  distingue  duas  qualidades:  a  turqueza 
oriental  de  velha  rocha,  a  que  dá  o  nome  de  calaite,  e  a  turqueza 
occidental  ou  óssea,  que  denomina  odontolithe,  juntando  á  calaite 
as  variedades  agaphite  e  johnite. 

A  calaite,  diz  Brard,  acha-se  cm  massas  reniformes  ou  ma- 
millares ;  tem  côr  azul  celeste  claro,  que  pode  chamar-se  azul- 
turqueza  ou  azul-calaite,  sendo  perfeitamente  opaca  e  com  o  peso 
especifico  de  3,86.  Accrescenta  haver-se  somente  encontrado 
nos  arredores  de  Nichabour,  no  Khorasan,  e,  ainda  na  Pérsia, 
em  terras  de  alluvião. 

Fallando  da  agaphite,  diz  ter  a  côr  azul  celeste  com  diversos 
tons  mais  ou  menos  pallidos  ou  escuros,  que  é  opaca  ou  ligeira- 
mente translúcida  nos  bordos;  tem  por  peso  especifico  3,25,  e  que 
também  se  acha  perto  de  Nichabour  em  camadas  delgadas,  acom- 
panhadas de  ferro  argilloso. 

Quanto  á  johnite,  diz  o  mesmo  auctor  achar-se  em  camadas 
muito  delgadas  n'um  schisto  silicioso  negro,  que  tem  côr  azul 
celeste  claro  tirante  a  verde,  que  a  sua  fractura  é  escamosa,  e 
risca  o  vidro,  sendo  portanto  mais  dura  que  as  precedentes. 


Brard,  Nouveaux  èlèmens  de  minéralogie,  pag.  500—1838. 


234 

Estas  três  variedades,  no  entender  de  Brard,  parece  conte- 
rem acido  phosphorico,  alumina,  cal,  oxydo  de  ferro  e  oxydo  de 
cobre. 

As  odontolithes  são  dentes  e  ossos  fosseis  de  veado,  de  al- 
guns carnivoros  e  de  outros  animaes,  coloridos  de  azul  pelo  phos- 
phato  de  ferro.  São  menos  duras  que  as  calaítes;  têem  o  tecido 
folheado;  são  solúveis  nos  ácidos  e  perdem  a  côr,  sendo  simples- 
mente atacadas  pelo  vinagre  distillado,  o  que  não  suecede  ás  ca- 
laítes ou  turquezas  mineraes.  As  turquezas  ósseas  acham-se  na 
França,  na  Bohemia,  na  Suissa,  e  n'outros  paizes  da  Europa. 

Dufrénoy1  também  inclue  sob  a  epigraphe  de  turqueza  a  ca- 
laite,  a  agaphyte  eajohnite;  diz  quaes  são  os  componentes  da  tur- 
queza e  indica  as  suas  percentagens,  mas  não  deixa  distinguir 
estes  synonymos  por  variações  qualificativas,  nem  por  acere- 
scimo  ou  diminuição  quantitativa  cada  um  dos  elementos  consti- 
tutivos: entretanto,  não  parece  essencialmente  desviar-se  cTaquel- 
les  já  enumerados  por  Brard,  designando  do  seguinte  modo  os 
da  calaite: 

Acido  phosphorico . .  . 31 

Alumina 44,5 

Agua 19 

Cobre la    5 

Enviei  um  exemplar  das  contas  neolithicas  do  Algarve  ao 
sr.  conselheiro  Pereira  da  Costa,  lente  de  mineralogia  e  de  geo- 
logia da  escola  polytechnica,  mas  este  sábio,  não  desejando  estra- 
gal-o,  deixou  de  proceder  á  competente  analyse  chimica  e  limi- 
tou-se  a  uma  reservada  apreciação,  simplesmente  apparente, 
parecendo-lhe  poder  referil-o  á  callainite  de  Dana,  que  é  um 
mineral  massiço,  de  textura  ceroide,  de  dureza  3,  5,  4,  de  côr 
verde-esmeralda,  e  translúcido,  contendo  acido  phosphorico,  alu- 
mina, agua,  algum  oxido  de  ferro,  etc,  em  pequena  quantidade. 


Dufrénoy,  Trailé  da  ínincralotjic.  tomo  n,  pag\  482—1856. 


235 

Notou  porém  ser  um  pouco  diverso  na  cor,  comquanto  mal  se  po- 
desse  observar,  por  estar  a  conta  inteiramente  coberta  de  uma  pa- 
tina esbranquiçada,  proveniente  de  alteração  superficial,  ou  tio 
estranha  matéria  que  no  seu  deposito  lhe  houvesse  formado  um 
tal  invólucro  revestidor.  Já  se  vê,  pois,  que,  não  tendo  procedido 
á  analyse  chimica,  não  podia  emittir  um  conceito  franco  e  defini- 
tivo. 

Carlos  Ribeiro,  achando  no  clolmen  de  Monte  Abrahão,  perto  de 
Bellas,  algumas  contas  idênticas  ás  que  já  eram  conhecidas  com 
a  denominação  de  calaite,  não  as  designou  com  este  nome  na  sua 
memoria,  publica  em  1880,  intitulada  «Noticia  de  algumas  esta 
ções  e  monumentos  prehistoricos*  pag.  53  e  seguintes,  e  diz  que 
as  da  estampa  iv,  a,  c,  t>,  seguindo  a  analyse  feita  pelo  sr.  Ri 
cardo  Wittnich,  «são  um  silicato  de  magnesia  com  alguma  alumina 
e  oxydo  de  ferro,  do  grupo  das  steatites  compactas  mais  duras  e 
impuras,  pedras  olares,  chlorites  siliciosas,  serpentinas,  ensta- 
tite,  etc. ;  d'essas  Ynais  provavelmente  a  serpentina  impura  em  ro- 
cha, que  muitas  vezes  tem  certa  aspereza,  e  cuja  dureza  chega 
até  5. 

«Ha  também  talcschistos  siliciosos,  e  talcschislos  endurecidos 
posto  que  não  super-siliciosos,  e  chloritoschistos  duros  e  não  se- 
paráveis em  laminas,  e  portanto  próprios  para  o  fabrico  de  mui- 
tos objectos. 

«A  peça  maior  das  duas  triangulares  o9  porém,  deu  uma 
forte  reacção  de  alumina,  e  as  substancias  que  se  lhe  approxi- 
mam  mais  são  as  halloy sites  verdes:  a  peça  menor  parece  de  igual 
natureza.» 

Se  pela  analyse  do  sr.  Wittnich  se  esclarece  até  certo  ponto 
a  natureza  mineralógica  das  contas,  a  sua  nomenclatura  especial 
não  ficou  determinada.  Veiu  depois  o  sr.  A.  Bensaude,  e  achando 
o  chromio  cm  vez  do  cobre  como  substancia  coloranle,  conside- 
rou o  mencionado  mineral  como  variedade  da  calaite. 

O  sr.  Alfredo  Bensaude,  cm  vista  da  sua  analyse,  teve,  com 
effeito,  bastante  fundamento  para  considerar  como  variedade  da 
calaite  a  substancia  das  contas  achadas  em  alguns  depósitos  pre- 


230 

históricos.  Quando  esle  distincto  naturalista  se  occupava  do  es- 
tudo chimico  das  ditas  contas,  mui  provavelmente  julgou  não  te- 
rem sido  até  então  descobertas  em  Portugal  senão  as  que  Carlos 
Ribeiro  possuia  na  secção  geológica,  e  descrevera  em  1880  na 
memoria  a  que  já  me  referi.  D'este  modo  dedicou  a  variedade, 
com  o  nome  de  Ribeirite,  ao  seu  chefe,  movido  certamente  por 
um  mimoso  sentimento  de  boa  recordação. 

De  mui  bom  grado  acceilaria  eu  a  mencionada  nomenclatura, 
do  mesmo  modo  que  acceilo  e  registro  com  muito  apreço  a  de 
outros  instrumentos  de  pedra  polida,  cujas  rochas  não  me  foi  pos- 
sível reconhecer,  se  ácèrca  das  mencionadas  contas  não  tivesse  em 
vista  umas  considerações,  que  julgo  attendiveis. 

Em  outubro  de  1805,  quando  comecei  o  reconhecimento  de 
alguns  logares  com  antiguidades  para  os  indicar  na  carta  choro- 
graphica  do  Algarve,  achei  á  flor  do  chão,  no  sitio  da  Torre  dos 
Frades,  uma  d'aquellas  contas,  que  a  principio  me  pareceu  um 
calhau,  e  em  1877  comprei  em  Portimão  a  um  homem  do  campo 
um  pequeno  machado  de  pedra,  três  moedas  romanas  e  uma  das 
taes  contas,  dizendo-me  elle  que  tinha  achado  mais  algumas,  mas 
que  só  conservava  aquella.  O  homem  era  da  freguezia  da  Mexi- 
Ihoeira,  e  por  isso  a  conta  poderia  talvez  ser  de  Aícalá,  onde  mais 
tarde  descobri  muitas. 

Lá  estavam  no  museu  do  Algarve  em  1880,  na  collecção  das 
contas  que  tinham  sido  achadas  avulso,  e  não  voltam  sem  que 
o  museu  seja  reorganisado;  mas  muito  antes  de  eu  achar  contas 
de  calaíte,  e  de  terem  tido  entrada  na  secção  geológica  as  que 
Carlos  Ribeiro  indica  na  sua  memoria,  já  eram  conhecidas  na 
Europa,  e  portanto,  nem  a  mim  nem  a  Carlos  Ribeiro  per- 
tencia a  prioridade  no  descobrimento.  A  variedade,  seguin- 
do-se  as  regras  geralmente  estabelecidas,  parece-me  que  devera 
ser  com  preferencia  dedicada  á  memoria  do  primeiro  archeologo 
que  descobriu  na  Europa  as  mencionadas  contas,  porque  d'este 
modo  indicava-se  ao  mesmo  tempo  a  epocha,  o  paiz,  o  descobri- 
dor e  a  primeira  obra  que  registrava  o  descobrimento. 

Das  diversas  analyses  anteriores  tinham  pois  resultado  varias 


237 

nomenclaturas.  Uns  archeologos  francezes  diziam,  que  as  contas 
eram  de  callaís,  e  outros  de  calaite.  Da  analyse  do  sr.  Wittnich 
deduzira  Carlos  Ribeiro,  que  as  substancias  que  mais  se  appro- 
ximavam  da  matéria  das  contas,  eram  as  halloijsites  verdes,  e  da 
que  o  sr.  Bensaude  enviou  para  o  Compte  renda  do  congresso 
de  Lisboa,  via-se  que  representavam  aquellas  contas  uma  varie- 
dade da  calaite,  a  que  impôz  o  nome  de  Bibeirite. 

Julgando  porém  não  haver  por  emquanto  senão  uma  analyse 
qualificativa,  operada  num  pequeno  fragmento,  talvez  superficial- 
mente muito  alterado,  como  em  geral  apparecem  as  ditas  contas, 
pode  esta  circumstancia  haver  concorrido  para  impedir  o  rigoroso 
conhecimento  quantitativo  dos  componentes  mineralógicos  natu- 
raes. 

Parece-me  pois  preferível  não  se  alterar  ainda  a  nomencla- 
tura que  fez  conhecidas  essas  contas  perante  o  mundo  scientifico, 
sem  que  primeiramente  se  proceda  a  uma  segura  analyse  quan- 
titativa, sacrificando-se-lhe  uns  grammas  da  substancia  mineral 
que  se  pretende  comparar  com  as  analyses  já  feitas  por  Fischer, 
Dana,  Brard,  Dufrénoy  e  outros  distinctos  mineralogistas. 

Quando  por  este  processo  se  haja  chegado  ao  conhecimento 
bem  determinado  de  cada  componente  e  ao  da  percentagem  cor- 
respondente a  cada  um,  ter-se-ha  então  um  resultado  definitivo, 
a  fim  de  se  ficar  sabendo,  se  com  cffeito  se  pode  manter  a  deno- 
minação de  calaite,  se  poderá  referir-se  á  callaís,  de  Plinio,  como 
preferiu  o  sr.  Gazalis  de  Fondouce,  fundando  se  em  que  Plinio 
diz  ser  mais  estimada  a  de  cor  verde,  se  é  ou  pode  melhor  appro- 
ximar-se  da  variedade  Johnite,  ou  se  todas  estas  nomenclaturas 
deverão  ser  substituídas  por  outra. 

Entretanto,  entendendo  haver  sempre  alguns  inconvenientes 
em  se  adoptarem  nomenclaturas  diversas  d'aquellas  com  que  cer- 
tos objetos  são  universalmente  conhecidos,  designarei  por  contas 
denominadas  de  calaite  as  que  descobri  nas  estações  prehistoricas 
do  Algarve,  para  que  d'este  modo  todos  fiquem  percebendo  a  mi- 
nha referencia. 

Além  das  contas  chamadas  de  calaite,  havia  outras  duas,  uma 


238 

de  schislo,  que  represento  sob  o  n.°  2  na  estampa  ív,  c  outra, 
mui  perfeita  e  bem  policia,  de  serpentina.  A  mesma  estampa,  com 
os  n.es  12  e  13  reproduz  dois  fragmentos  de  alfinetes  ou  estiletes 
de  osso,  que  podem  ter  servido  para  segurar  o  penteado  do  ca- 
bello,  ou  para  algum  trabalho. 

Não  havia  naquelle  deposito  outros  ornatos,  ou  adornos,  além 
das  contas  conhecidas  pelo  nome  de  calaite,  que  podem  ao 
mesmo  tempo  ter  sido  objectos  de  grandes  virtudes;  pois  diz 
Brard,  que  a  turqueza  era  em  tempos  antigos  considerada  como 
amuleto. 

No  museu  deixei  depositada  uma  pedra  das  que  formavam 
as  camadas  do  montículo  tumular,  achada  superiormente  e  já 
coberta  de  lichens.  Deixei  também  umas  estalactites  formadas  no 
interior  d'aquellas  camadas  do  montículo  circumdante  do  dol- 
men. 

Louças. — Nenhum  vaso  inteiro  foi  achado;  mas  não  falta- 
vam fragmentos  de  louça  quebrada.  Recebi  e  depositei  no  museu 
o  fundo  de  um  grande  e  grosseiro  vaso;  um  fragmento  de  outro 
grande  vaso,  mostrando  ter  tido  bojo  quasi  espherico  com  gar- 
galo curto  voltado  para  fora  e  aza  adherente.  Para  dar  idéa  da 
diversidade  d'aquellas  louças,  reuniu  o  rev.d0  Padre  Gloria  os  nu- 
merosos fragmentos  que  deixei  no  museu. 

Toda  a  louça  era  grosseira  e  de  aspecto  o  mais  rudimentar; 
somente  com  ornato  appareceram  os  seis  fragmentos  que  vão 
figurados  na  estampa  ix,  cujo  lavor  é  similhante  ao  das  pedras 
(mesas),  que  cobriam  o'  monumento.  A  pasta  cerâmica  mostra 
terra  negra,  talvez  de  alluvião,  mesclada  de  grãos  de  quartzo,  pa- 
recendo ter  tido  externamente  um  revestimento  avermelhado.  É 
porém  provável  que  esta  differença  de  cores  seja  proveniente  da 
acção  do  fogo. 

No  segundo  volume  d'esta  obra  fallarei  mais  largamente  de 
AlcaLá,  onde  deixei  á  vista,  para  poder  ser  observada  por  todos 
os  visitantes,  a  famosa  necropole  dolmenico-tumular,  que  cara- 
cterisa  a  transição  da  ultima  idade  da  pedra  para  a  idade  do 


ALCALA 


EST.  IX 


#?*%. 


M- 


239 

bronze.  Não  faltam  alli  novidades  em  typos  de  construcção  c  cm 
productos  de  arlc  industrial. 

Palmeiriniia.  —  Este  sitio,  pertencente  á  freguezia  da  Mexi- 
Hioeira  Grande,  não  vac  indicado  na  carta  prehistorica  como  re- 
presentante de  um  monumento  dolmenico,  mas  na  ordem  geral 
dos  que  forneceram  instrumentos  de  pedra,  achados  avulso  nas 
terras  cultivadas.  Tenho  muitos,  que  ultimamente  me  offereceu 
o  rev.d0  Nunes  da  Gloria,  taes  como  percutores  e  machados.  No 
museu  do  Algarve  podem  ver-se  alguns  fragmentos  de  louças 
achados  na  Palmeirinha,  assim  como  um  machado  de  diorite,  que 
vac  figurado  com  o  n.°  3  na  estampa  ix,  pertencente  á  serie  geo- 
graphica  dos  instrumentos  isolados. 

Julgo  existirem  n'aquelle  sitio  alguns  monumentos,  assim  como 
com  o  mesmo  fundamento  presumo  havel-os  no  Saragoçal,  na 
Cavoada,  no  Figueiral  Velho,  na  própria  aldeia  da  Mexilhoeira, 
no  sitio  das  Areias,  na  Cerca  Nova,  nos  Arneiros,  no  Branquinho, 
no  sitio  chamado  Detraz  das  Vinhas,  e  n'outros  muitos,  todos 
pouco  distantes  entre  si;  pois  de  todos  me  offereceu  o  rev.d0  Glo- 
ria vários  instrumentos,  que  attestam  haver  sido  habitados  aquel- 
les  pontos  no  período  neolithico. 

Cerca  nova. — No  museu  estão  dois  fragmentos  de  grossei- 
ros vasos  de  louça,  muito  espessos,  e  fabricados  sem  o  auxilio 
da  roda  de  oleiro :  um  pertence  ao  fundo  e  o  outro  ao  bojo  de 
grandes  vasos,  mostrando  aquellc  uma  gibosidade  mui  saliente 
no  bordo  inferior.  Também  d'este  sitio  me  remetteu  o  digno 
padre  Nunes  da  Gloria  vários  instrumentos  de  pedra,  juntamente 
com  muitos  mais  do  sitio  da  Cavoada,  perto  da  igreja,  e  por  isso 
acima  disse  que  a  própria  aldeia  da  Mexilhoeira  devera  ter  mo- 
numentos, vindo  também  na  mesma  occasião  alguns  machados 
e  percutores  do  sitio  do  Poio,  muitos  dos  Arneiros,  da  Gasga, 
da  Cruzinha  e  da  ribeira  do  Verde.  Não  indico,  porem,  na  carta 
estes  sítios  como  sedes  de  monumentos,  por  não  terem  sido  ex- 
plorados. 


240 

Monte  Canellas. — A  região  dolmenico-tumular  de  Alcalá, 
onde  muitos  monumentos  ficaram  por  descobrir,  estende  os  seus 
vestigios  sobremaneira  significativos  até  mais  longe,  não  querendo 
com  isto  dizer  que  seja  por  um  alinhamento  não  interrompido. 
É  porém  muito  vasta,  abrangendo  talvez  o  tracto  territorial  mais 
habitado  nesta  província  nos  tempos  prehistoricos.  Gompõe-se 
de  vários  grupos  de  monumentos,  que  bem  visivelmente  se  vão 
achando  indicados  por  montículos  artificiaes,  similhantes  aos  que 
ainda  ficaram  intactos  em  Alcalá,  e  esses  grupos  estão  observa- 
dos até  o  Moinho  da  Rocha  na  ribeira  do  Verde. 

Abaixo  d'aquelle  moinho  são  apontados  outros  montes  com 
os  mesmos  característicos  pelos  homens  práticos  das  localida- 
des, e  um  dos  mais  nomeados  é  o  Monte  Canellas,  situado 
a  1:200  metros  ao  norte  de  Alcalá,  quasi  com  a  mesma  cota 
de  elevação,  e  distante  uns  400  metros  da  margem  direita 
da  mesma  ribeira,  Posso  ainda  acerescentar  que  em  toda  a 
área  comprehendida  entre  a  Ribeira  de  Odiáxere  e  as  bellissimas 
ribeiras  do  Roina  e  de  Odelouca  são  assaz  numerosos  os  dolmens 
que  ficaram  oceultos,  e  que  todo  esse  terreno  concentra  um  dos 
mais  ricos  thesouros  archeologicos/que,  se  me  tivera  sido  possí- 
vel exploral-o,  não  seria  fácil  encontrar  outro  similhante  no  resto 
do  reino,  nem  dar-se  por  explorado  em  menos  de  dois  annos  de 
activo  trabalho ;  e  se  especialiso  aqui  o  Monte  Canellas,  é  porque 
já  me  deu  provas,  que  bem  confirmam  não  ler  elle  escapado  ao 
aproveitamento  dos  homens  que  alli  foram  construir  abrigo  se- 
guro para  depositarem  as  relíquias  inanimadas  dos  que  tinham 
sido  seus  companheiros  na  vida. 

Não  explorei  os  monumentos  dolmenicos  de  Monte  Canellas ; 
não  me  chegou  o  tempo;  se  o  tivera  tido  livre  e  sufficiente,  en- 
tão esse  monte  e  tantos  outros  ficariam  tendo  mais  honrosa  no- 
meada. Alguns  curiosos,  porém,  já  por  alli  andaram  em  alcance 
das  milagrosas  pedras  de  raio,  porque  o  preconceito  de  que  os 
machados  polidos  são  pedras  de  raio  e  de  cenlelhas,  tem  ainda 
uma  crença  muito  arraigada;  e  vão  lá  dizer  aos  possuidores 
d'essas  pedras  caídas  do  céu,  que  são  antigos  instrumento  des 


251 

trabalho  e  armas  de  guerra,  que  ninguém  será  capaz  de  conven- 
cel-os. 

Não  me  deram  somente  machados  de  Monte  Canellasf  o 
rev.d0  prior  Gloria  também  alli  obteve  uns  percutores,  fragmen- 
tos de  louças  iguaes  aos  de  Al  cala  e  varias  lascas  de  pedra, 
cTaquellas  que  são  frequentes  nos  dolmens  cobertos.  Escusado  é 
descrever  aqui  um  a  um  esses  instrumentos;  bastará  dizer  que 
são  das  mesmas  rochas  dos  de  Aljezur  e  de  mais  algumas  esta- 
ções neolithicas. 

Em  meu  conceito,  os  montículos  e  os  instrumentos  achados 
em  Monte  Canellas  asseguram-me  alli  uma  construcção  dolme- 
nico-tumular,  e  mais  algumas  assaz  próximas  até  o  moinho  da 
ribeira  do  Verde,  onde  não  consta  que  se  tenha  até  hoje  achado 
algum  artefacto  metallico,  e  com  este  um  tanto  temerário  funda- 
mento o  indico  na  carta  paleoethnologica  como  fazendo  parte  do 
trajecto  neolithico.  É  possivel  que  uma  exploração  em  grande 
escala,  como  a  está  reclamando  o  riquíssimo  tracto  archeologico 
já  indicado  entre  as  ribeiras  de  Odiáxere,  de  Arão,  do  Farello, 
do  Verde,  do  Boina  e  de  Odelouca,  possa,  como  julgo,  manifes- 
tar abundantes  critérios  de  outras  idades  posteriores  á  da  pedra 
polida;  eu  mesmo  já  os  indica  em  vários  pontos  da  carta;  mas 
esse  trabalho,  para  se  fazer  em  devida  regra,  requer  mais  tem- 
po, só  elle,  do  que  custou  o  reconhecimento  geral  da  província. 
Tal  é  a  riqueza  de  característicos  que  notei  em  toda  aquella 
região.  Nem  a  carta  prehistorica,  na  escala  em  que  vae,  de 
1.200:000  pode  permittir  a  marcação  de  tantos  pontos,  como 
bem  se  comprehenderá,  olhando-se  simplesmente  para  o  que  já 
ficou  diliicilmentc  indicado. 

Monte  da  Rocha. — Pertence  este  monte  á  quinta  da  Lameira 
e  está  situado  sobre  o  flanco  direito  do  rio  de  Alvor.  Não  podia 
ter  escapado  aos  homens  da  ultima  idade  da  pedra  uma  situação  tão 
privilegiada  pela  natureza.  Mui  bem  sabiam  escolher  os  terrenos 
de  habitação,  elles  que  já  conheciam  certos  segredos  da  industria 
agricela  e  os  da  domesticidade  dos  animaes  que  mais  úteis  po- 
io 


242 

diam  ser  nos  usos  da  vida.  Precisavam  terras  ferieis  c  abundantes 
de  agua,  c  por  isso  com  frequência  se  acham  os  vestígios  d'essa 
já  adiantada  civilisação  pelas  margens  das  ribeiras  até  ás  suas 
nascentes  e  nos  fundos  cios  valles,  onde  em  vários  paizes,  e  prin- 
cipalmente na  Itália,  se  toem  achado  assentamentos  de  cabanas  de 
habitação  e  artefactos  ou  manufacturas  que  attestam  a  idade 
(Tessas  construcções,  algumas  das  quaes  jazem  porém  já  sepul- 
tadas sob  espessos  mantos  depositados  pelas  alluviões  modernas. 

E  não  procuravam  somente  as  margens  das  ribeiras,  mas  as 
do  oceano,  d'onde  tiravam  uma  parte  da  sua  alimentação,  em- 
pregando o  exercício  da  pesca  e  mariscando  diversas  espécies  de 
molluscos  com  tal  abundância,  que  em  muitos  logares  formavam 
com  as  suas  valvas  enormes  amontoamentos  a  similhança  de  ou- 
teiros e  collinas,  como  são  na  America,  e  nomeadamente  no  Bra- 
zil,  os  celebres  sambaquis.  Por  isso,  pois,  nas  estações  prehis- 
toricas  do  Algarve  se  acham  a  cada  passo  os  géneros  Triton, 
Murex,  Purpura,  Cassis,  Trochus,  Patella,  Haliotis,  Helix,  Lu- 
traria,  Vénus,  Pullastra,  Donax,  Sollen,  Cardium,  Ostrea,  Tellim, 
Pecten,  Mytilus,  Pectunculus,  etc. 

O  Monte  da  Rocha  lograva  as  duas  condições  mais  propi- 
cias: estava  propinquo  ao  rio  de  Alvor  e  a  curto  passeio  da 
costa  marítima,  e  tinha  famosos  terrenos  para  a  sementeira  de 
ecreaes,  pastos  para  gados,  e  agua  abundante,  pura  e  crystal- 
lina,  que  descia  das  rampas  do  Marmelete,  das  alturas  da  Foya 
e  da  Cruz  da  Picota,  por  quatro  importantes  ribeiras,  a  de  Odiá- 
xere,  de  Arão,  do  Farello  e  do  Verde,  unindo-se  as  duas  primei- 
ras ao  braço  occidental  do  rio  de  Alvor  e  as  outras  duas  ao  ra- 
mal oriental,  até  se  misturarem  todas  e  correrem  para  o  mar  pela 
barra  de  Alvor. 

O  Monte  da  Rocha  teve  um  dolmen  coberto,  de  que  achei 
assignalados  vestígios.  Conservava  ainda  uma  parte  da  crypta, 
que  três  megalithos  soterrados,  dispostos  em  curva,  deixavam 
perceber  que  fora  construído  como  o  tinham  sido  quasi  todos 
os  da  região.  Á  crypta  ou  camará  circular  devia  corresponder 
um  corredor  rectangular  de  accesso;  mas  tudo  estava  destruído 


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SERRO  DAS  PEDRAS 


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c243 

e  mal  figurado.  Sc  a  destruição  foi  obra  do  ali  rito  dos  séculos, 
ou  dos  invasores  romanos,  que  tantas  afirmações  por  alli  deixa- 
ram do  seu  domínio,  não  será  fácil  perceber-se. 

N'um  ligeiro  reconhecimento  junto  dos  esteios  que  ainda  de- 
nunciavam aquella  estação  mortuária,  colligi  uns  pequenos  nú- 
cleos de  um  silex  alvacento,  que  represento  na  estampa  X,  sendo 
o  de  n.°  6  um  fragmento  de  faca.  O  instrumento  n.°  8  é  um  pe- 
queno calhau  de  ribeira,  alongado,  estreito  e  pouco  espesso,  com 
uma  superfície  plana  e  alisada  pela  acção  do  attrito,  que  visivel- 
mente mostra  ter  exercido  noutras  pedras,  trabalhando  em  plano 
horisontal.  No  lado  opposto  é  convexo,  e  vê-se  ler  sido  desen- 
grossado  até  formar  um  gume  arqueado,  produzido  por  uma 
faceta  indeterminada.  Tem  as  dimensões  ligeiramente  reduzidas 
na  estampa,  onde  o  maior  eixo  mede  0m,054,  ao  passo  que  o 
original  aceusa  0m,Q58.  Pode* ter  sido  um  alisador,  comquanto 
pareça  um  esboço  de  escopro  não  concluido.  Também  appare- 
ceram  uns  fragmentos  de  placa  de  schisto  com  gravuras,  como 
se  tem  achado  noutros  dohnens  cobertos,  e  por  mais  este  indicio 
se  pode  julgar  que  houve  alli  um  d'estes  monumentos. 

Muitos  outros  artefactos  teria  descoberto,  se  houvesse  podido 
fazer  as  precisas  exeavações.  Não  foi  porém  possível  demorar-me, 
por  haver  noticia  de  outros  pontos  próximos  com  indícios  de 
antiguidades,  que  deviam  ser  indicados  na  carta  archeologica ; 
pois  os  prasos  que  me  foram  dados  para  o  reconhecimento  ge- 
ral da  província  não  permittiam  demora  em  parte  alguma. 

O  dolmen  destruído  da  quinta  da  Lameira  ficou  portanto  sem 
a  exploração  que  lhe  competia,  como  ficaram  muitos  outros,  e 
bem  assim  as  ruinas  das  grandes  cidades  extinctas,  cujas  sedes 
comtudo  consegui  descobrir  e  deixar  indicadas,  para  quando 
outros  futuros  exploradores  lograrem  a  fortuna  de  não  irem  en- 
calhar nas  mesmas  difficuldades  em  que  me  achei,  por  não  ter 
logo  a  principio  sido  bem  comprehendida  a  natureza  d'este  ser- 
viço. 


.     Q 


44 


Serro  da  Pedra. — No  concelho  de  Loulé,  a  noroeste  do  ca- 
stello  de  Salir  e  distante  uns  1:800  metros,  está  situado  o  Serro 
da  Pedra,  ou  das  Pedras,  como  promiscuamentc  o  denominam. 
E  logar  que  foi  habitado  por  antigas  nacionalidades,  attestadas 
por  numerosos  vestígios,  começando  desde  tempos  remotíssimos, 
como  bem  o  mostra  um  outeiro  ou  montículo  artificial  que  co- 
briu um  dolmen  actualmente  destruído,  mas  de  que  ainda  restam 
de  pé  dois  menhirs  ou  esteios  descobertos,  um  com  0m,89  de 
altura  apparente  e  o  outro  com  lm,10. 

Perto  d'este  mais  saliente  ha  algumas  grandes  pedras  pro- 
stradas, que  parece  terem  feito  parte  do  monumento,  e  consta  que 
muitas  outras  de  grandes  dimensões  d'alli  têem  sido  levadas  para 
diversas  obras,  assim  como  abundantes  pedras  de  menor  volu- 
me; e  porque  tantas  havia,  que  a  muitas  cdnstrucções  deram 
aviamento,  seria  aquelle  outeiro  denominado  Serro  das  Pedras. 
O  outeiro  conserva  ainda  a  base  circular,  em  cujo  centro  foi  con- 
struído o  dolmen.  O  que  resta  d'aquella  pedreira  artificial  é  o 
que  vae  figurado  na  estampa  xi. 

Junto  ao  menhir  mais  baixo  fiz  uma  ligeira  excavação,  que 
não  excedeu  0m,30  de  profundidade,  para  reconhecer  se  o  me- 
nhir estava  muito  enterrado  no  solo,  e  achei  quatro  fragmentos  de 
silex  com  arestas  cortantes,  sendo  o  de  n.os  1,  2  e  4  (estampa  x), 
talvez  d'aquelles  instrumentos  que  alguns  paleoethnologos  deno- 
minam frechas  de  corte  transversal,  acerca  das  quaes,  como  já  disse, 
correm  opiniões  diversas,  dizendo  uns  que  taes  objectos  não  po- 
dem ter  sido  pontas  de  frecha  logo  que  se  queiram  considerar 
como  armas  de  arremeço,  por  isso  que  deixavam  de  ser  pene- 
trantes levando  o  corte  para  cima  em  vez  de  uma  extremidade 
pontaguda;  ao  que  outros  redarguem,  dizendo  que  os  ditos 
instrumentos,  adherentes  a  uma  haste,  são  ainda  hoje  usados 
entre  algumas  tribus  barbaras  da  Africa  como  armas  de  caça, 
que  se  apontam  ás  pernas  dos  animaes  para  lhes  impossibilitar 
a  corrida,  e  d'este  modo  ficarem  accessiveis  ao  caçador;  o  que, 
com  effeilo,  não  deixa  de  ser  admissível;  pois  sabido  é  que  qual- 
quer animal,  por  mais  veloz  que  seja,  recebendo  um  golpe  que 


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az 

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a. 
co 


CO 


245 

lhe  corle  algum  musculo  das  pernas,  fica  impossibilitado  de 
fugir  á  perseguição. 

N'outras  estações  do  Algarve  têem  apparccido  mais  lascas 
de  silex  parecidas  com  estas,  e  não  deve  admirar  que  os  caça- 
dores as  usassem,  sabendo-se  que  n'essas  estações  e  em  terre- 
nos adjacentes  se  acham  com  frequência  abundantes  ossos  de 
um  Cervus  (elaphuú),  do  Sus  scroplia,  já  todavia  mui  raro.  Na 
epocha  romana,  tal  abundância  ainda  havia  de  veados  e  javalis, 
que  em  todas  as  minas  de  edifícios  d'aqueíles  tempos  appare- 
cem  os  seus  despojos  envoltos  nos  entulhos;  o  que  bem  deixa 
perceber  o  que  a  carta  archeologica  dos  tempos  históricos  mos- 
tra, apresentando  grandes  áreas  de  terreno  inculto  ou  inhabi- 
tado,  em  que  a  procreação  d'aquellas  espécies  poderia  operar-se 
em  grande  escala. 

Na  mesma  estampa  x,  sob  o  n.°  7,  represento  um  fragmento  de 
dente  de  javali,  também  encontrado  junto  do  menhir  mais  largo, 
assim  como  os  tarsos  n.os  5  e  6  de  dois  pequenos  gallos  com 
seus  esporões,  mas  de  dimensões  inferiores  aos  dos  gallos  de  me- 
diana corpulência,  o  que  a  principio  me  fez  julgar,  com  a  devida 
reserva,  que  fossem  do  pequeno  gallo  do  mato,  que  os  francezes 
denominam  petit  coq  de  hruyère,  ou  do  chamado  gallo  dos  sal- 
gueiros; mas  o  primeiro  (Tetrao  tetrix)  habita  as  regiões  do 
norte,  e  só  raro  tem  apparecido  na  Europa  central,  e  o  segundo 
(Tetrao  albus)  é  uma  das  espécies  européas  emigradas  par^  ° 
norte  no  começo  dos  tempos  actuaes:  além  d'isto,  os  esporões  no 
género  Tetrao  são  recurvados  para  baixo,  como  verifiquei  na 
secção  ornithologica,  e  portanto  os  tarsos  com  os  esporões  para 
cima  só  podiam  competir  ao  género  gallus.  Pertenciam,  pois, 
aquelles  tarsos  a  um  gallo  de  medíocre  volume,  então  existente, 
mas  cuja  espécie  não  posso  determinar. ! 

Finalmente,  com  os  objectos  indicados  estavam  alguns  fra- 
gmentos de  placa  de  schisto  com  gravura  e  uma  rodella  de  schisto 


Tsa  estampa  saíram  invertidos  os  tarsos !  Mas  não  me  admira,  porque  houve  um 
desenhador,  que  entendeu  dever  desenhar  os  rótulos  de  alguns  objectos. 


246 

ardosiano  de  cor  cinzenta,  approximadamenle  circular,  com  ori- 
fício central,  como  represento  na  dita  estampa  sob  o  n.°  8,  tendo 
0m,005  de  espessura  e  0m,027  de  diâmetro.  Mostra  ter  sido 
objecto  de  adorno,  com  ornato  numa  face,  onde  ainda  são  visí- 
veis dois  sulcos  parallelos,  ou  talvez  um  amuleto. 

Senti  não  poder  exeavar  todo  o  outeiro  do  Serro  da  Pedra. 
Certamente  teria  feito  mais  alguns  descobrimentos  de  valioso  in- 
teresse; mas  além  do  pouco  tempo  de  que  podia  dispor,  acere- 
scia  a  falta,  que  repetidas  vezes  notei,  de  um  pequeno  cofre  am- 
bulante, que  permittisse  o  prompto  pagamento  dos  operários  nas 
localidades  onde  só  houvesse  algum  ligeiro  trabalho  a  fazer.  O 
systema  do  pagamento  por  quinzenas,  seguido  pelas  direcções 
de  obras  publicas,  não  podia  certamente  applicar-se  a  reconhe- 
cimentos de  passagem  ou  a  explorações  de  curta  demora.  Muitos 
pontos  foram  por  isso  reconhecidos  á  minha  custa  e  muitos  mais 
ficaram  sem  pesquiza. 

Não  soffrem  estes  trabalhos  resíricção  alguma:  ou  se  hão  de 
fazer  com  plena  liberdade  de  acção  e  sem  tropeços,  ou  melhor  é 
não  emprehendel-os.  Os  prasos  e  os  pagamentos  por  quinzena 
são  dois  poderosos  empecimentos,  que  nenhum  explorador  deve 
acceitar.  É  a  experiência  que  o  affirma,  e  por  isso  aqui  previno 
os  que  houverem  de  sueceder-me  para  que  rejeitem  umas  tão 
absurdas  imposições,  que  bem  pouco  abonam  o  entendimento  de 
quem  as  inventou. 

Em  toda  a  freguezia  de  Salir  são  frequentes  os  instrumentos 
de  pedra  polida.  Acham-se  geralmente  isolados  nos  trabalhos 
agrícolas,  provando  assim  que  foi  assaz  aproveitado  todo  aquelle 
terreno  durante  o  período  neolithico. 

O  dolmen  coberto  do  Serro  das  Pedras  está  situado  entre 
duas  importantíssimas  cavernas,  ficando-lhc  a  noroeste,  em  di- 
stancia de  6  kilomelros,  a  do  Poço  dos  Mouros,  na  Serra  da 
Pena,  e  a  sueste  4/4  este,  a  da  Solestreira,  na  freguezia  de  Que- 
rença,  a  4  J/2  kilometros.  Salir  fica  central  entre  o  Serro  das  Pe- 
dras e  a  Solestreira. 

Já  deixei  descriptas  as  particularidades  de  que  achei  noticias 


247 

ácêrca  cTaquellas  cavernas.  A  tradição  aponla-as  como  lendo  sido 
habitadas.  Com  relação  á  da  Solestreira  já  eu  sabia  terem  sido 
achados  muitos  fragmentos  de  louças  grosseiras,  logo  que  come- 
çou a  extracção  do  guano  depositado  pelos  morcegos  que  habi- 
tam os  seus  recônditos  compartimentos.  No  capitulo  respectivo 
ás  cavernas  noticiei  os  resultados  da  exploração  que  o  dr.  Gadow, 
de  Cambridge,  fez  naquella  caverna. 

A  descoberta  de  um  esqueleto  humano  e  de  contas  de  ca- 
laite  naquella  caverna,  veiu  confirmar  as  minhas  já  antigas  con- 
vicções e  justificar  o  empenho  com  que  em  1877  propnz  ao  go- 
verno me  permitlisse  começar  pelas  cavernas  o  reconhecimento 
geral  das  antiguidades  do  Algarve,  de  que  me  tinha  encarrega- 
do. Coube  porém  ao  illustre  naturalista  inglez  aquelle  descobri- 
mento devido  ás  minhas  indicações. 

Valha-nos,  ao  menos,  a  dedicação  que  a  sabedoria  estran- 
geira consagra  ás  antigualhas  d'este  paiz  em  presença  do  menos- 
prezo com  que  aqui  são  tratadas  por  quem  tinha  por  obrigação 
cstimal-as  e  adquiril-as  em  beneficio  da  sciencia. 

Passados  alguns  annos,  quando  os  museus  estrangeiros  co- 
meçarem a  enriquecer-se  com  os  nossos  thesouros  monumentaes, 
ou  quando  o  paiz  se  veja  obrigado  a  procurar  logar  honroso  nos 
grandes  certames  da  sciencia  moderna,  para  não  ter  de  recuar  en- 
vergonhado perante  as  nações  que  proseguem  na  vanguarda  do 
progresso,  os  homens  que  houverem  de  substituir  os  menospreza- 
dores  de  hoje,  terão  talvez  de  lamentar  o  atrazamento  em  que  os 
seus  antecessores  o  deixaram,  por  não  terem  sabido  preparal-o 
para  lhe  conquistar  o  posto  que  lhe  compete  ao  par  das  mais 
privilegiadas  nações,  em  razão  da  sua  opulência  archeologica ;  e 
haverá  então,  é  possível,  quem,  ao  ler  estas  linhas  que  aqui  fi- 
cam registradas,  me  queira  honrar  com  o  reconhecimento  do  que 
pretendi  fazer,  não  certamente  para  engrandecer  o  meu  nome, 
mas  com  o  sincero  intuito  de  querer  ser  útil,  no  pouco  que  valho, 
á  terra  em  que  nasci  e  á  sciencia  em  que  me  alistei. 

Os  meus  leitores  me  perdoarão  esta  passageira  digressão, 
que  um  justo  resentimento  me  suscitou,  logo  que  tive  noticia  de 


248 

haver  sido  descoberto  na  Solcslreira   um   esqueleto   humano, 
acompanhado  de  um  característico  de  epocha. 

Vejam  que  já  tudo  isso  estava  por  mim  previsto  e  indicado 
na  carta  prehistorica. 

Nora.  —  E  este  o  nome  de  uma  quinta,  na  freguezia  de  Ca- 
cella,  pertencente  ao  sr.  visconde  de  Horta,  em  que  descobri  e 
explorei  um  dolrnen  coberto,  de  que  vou  dar  noticia;  mas  antes 
d'isso  desejo  expender  algumas  reflexões,  que  entendo  dever 
recommendar  aos  futuros  exploradores  das  antiguidades  do  Al- 
garve. 

Note-se  na  carta  prehistorica  a  situação  do  Serro  da  Pedra, 
na  freguezia  de  Salir,  e  a  da  Nora,  na  de  Cacella,  e  observe-se 
que  a  distancia  entre  estes  dois  pontos  mede  em  linha  recta 
47:500  metros,  ou  9  e  y2  legoas  métricas,  ficando  o  largo 
tracto  de  terreno  que  abrange  os  concelhos  de  Loulé,  Faro, 
Olhão  e  Tavira  sem  um  único  dolrnen!  Não  pode  ser.  Necessaria- 
mente, o  trajecto  dolmenico-tumular  não  ficou  interrompido  em 
tão  largo  espaço  de  um  dos  mais  ricos  tractos  de  terra  de  toda 
esta  região,  cortado  por  uma  infinidade  de  ribeiras  e  rios  até  as 
arenosas  praias  do  oceano. 

Se  não  me  foi  concedido  o  preciso  tempo,  de  que  carecia, 
para  procurar  as  estações  comprehenclidas  entre  aquelles  dois 
pontos  relativamente  longínquos,  não  se  segue  que  ellas  não  exi- 
stam. Devem  existir  e  devem  achar-se,  procurando-se,  e  sirvam  de 
guia  para  essa  pesquiza  os  numerosos  pontos  que  nessa  grande 
área  vão  indicados  com  signaes  neolithicos  e  da  idade  do  bronze. 

E  difficil,  bem  o  sei,  acharem-se  vestígios  apparentes  d'esscs 
monumentos  nos  terrenos  agricultados,  como  são  os  que  indico,  e 
pode  mesmo  presumir-se  que  muitos  d'esses  monumentos  tenham 
sido  destruídos  nas  zonas  litoraes  mais  favorecidas  pelo  lavor  agrí- 
cola; mas  outro  tanto  não  terá  succedido  na  região  propriamente 
serrana,  onde  surgem  as  nascentes  das  ribeiras  de  Cadavai,  do 
Ludo,  de  Aquém,  de  Marim,  de  Alportel,  do  Arroio,  de  Barna- 
che,  de  Asseca,  da  Gafa,  do  Almargeni,  e  d'onde  partem  os  pri- 


EST.  XII 


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MARCELLA 


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Mariarrj  des.- 


Litho6raphia-Rja  doMownc  de  Vento -60. 


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meiros  sulcos  que  abrem  o  álveo  do  rio  Valle  Formoso,  do  rio 
Sêcco,  do  rio  da  Fuzeta,  do  rio  Gilâo,  e  mais  ainda  para  oesíe 
as  numerosas  afíluencias  do  rio  de  Quarteira. 

Muitas  estações  intermédias  relativamente  ao  Serro  da  Pe- 
dra c  á  Nora  devem  ainda  achar-sc :  eu  mesmo,  não  sendo  obri- 
gado a  prasos  absurdos,  iria  descobril-as,  se  não  fora  o  firme 
proposilo  de  não  acceilar  commissão  alguma  de  serviço  official 
n'esle  paiz,  quando  venha  acompanhada  de  reslricções  ineptas. 
Ficarão  porém  reservados  esses  descobrimentos  para  quando 
a  instrucção  publica  começar  a  ser  uma  realidade  nacional  e  os 
altos  estudos  concernentes  á  paleoelhnologia  d'este  território  po- 
derem ser  comprehendidos  por  quem  não  devera  já  hoje  ignorar 
a  sua  superior  importância. 

Fique  por  emquanto  sem  preenchimento  essa  vasta  lacuna, 
que  entendi  dever  aceusar,  simplesmente  para  mostrar  as  razões 
que  me  impediram  de  suppril-a,  e  para  ao  mesmo  tempo  a  deixar 
recommendada  a  quem  no  futuro  se  propozer  desenvolver  os  tra- 
balhos que  emprehendi  n'esta  região. 

Passo  a  fallar  do  monumento  do  sitio  da  Nora. 

A  estampa  xii,  sob  o  n.°  1,  representa  a  planta  e  o  perfil  do 
notável  monumento  da  Nora,  cuja  configuração  somente  n'esta 
província  se  acha  exemplificada  no  Serro  do  Castello  a  noroeste 
de  Castro  Marim.  O  perfil  mostra  haver  sido  formado  por  exea- 
vação  e  dividido  em  três  corpos  distinctos,  contíguos  e  ligados 
por  um  eixo  que  passa  pelo  centro  de  todos  na  orientação  do 
nascente  ao  poente,  em  que  termina.  A  crypta  ou  camará  mor- 
tuária MM  e  o  átrio  J  adherem  a  um  curto  corredor  ou  galeria 
rectangular  L,  de  lm,90  de  extensão  sobre  0o, 90  de  largura.  A 
camará  mortuária  e  o  átrio  propendem  para  um  aspecto  trape- 
ziforme. 

Todo  o  perimetro  da  construcção  foi  guarnecido  de  uma  con- 
tiguidade de  menhirs,  medindo  os  da  crypta  lm,40  de  altura.  De- 
crescem, porém,  reduzindo-se  a  0in,50,  os  da  galeria  de  accesso 
até  a  divisória  do  átrio,  em  que  houve  uma  porta,  cujos  baten- 
tes são  indicados  transversalmente  entre  L  c  J,  por  isso  que  a 


230 

passagem  para  a  crypta,  medindo  3m,10  desde  a  entrada  no 
átrio,  foi  aberta  em  declive,  como  se  vê  no  perfil.  A  extensão 
total  interna  do  dolmen  mede  8  metros  e  a  máxima  largura  to- 
mada no  fundo  da  crypta  é  de  lm,90.  Todas  as  mais  dimensões 
podem  ser  tomadas  com  a  respectiva  escala  de  1  :  100.  Estava  já 
muito  destruído  quando  o  explorei. 

O  pavimento  do  átrio  ainda  se  conservava  calçado  de  pedra 
miúda,  mas  fallava-lhe  a  porta  que  devia  encostar  aos  batentes 
lateraes  da  galeria  e  fallava  também  a  outra  porta  com  os  ba- 
tentes, que  mui  provavelmente  teve  no  fim  da  galeria,  para  o  en- 
cerramento da  crypta  mortuária.  Nòs  flancos  e  no  angulo  do  suf, 
como  se  observa  na  planta,  já  muitos  menhirs  tinham  sido  arran- 
cados, ou  porque  causassem  estorvo  aos  trabalhos  aratorios,  ou 
porque  tivessem  sido  extrahidos  para  alguma  obra.  Os  NN  indi- 
cam menhirs  prostrados  no  interior  da  crypta.  Todo  o  espaço  in- 
terno do  monumento  estava  completamente  entulhado,  mostrando 
serem  mui  antigas  as  destruições  que  soffreu.  Todo  o  pavimento, 
com  excepção  do  átrio,  era  de  terra  endurecida  ou  batida.  Da 
galeria  descia-se  para  a  crypta  por  um  degrau  da  altura  de 
0m,30.  E  muito  provável  que  a  primitiva  altura  geral  d'este  mo- 
numento tivesse  sido  acerescentada  em  todo  o  seu  perimetro  por 
fileiras  de  grandes  pedras  que  assentassem  sobre  o  bordo  supe- 
rior, avançando  para  o  interior  com  alguma  saliência  para  a  col- 
locação  das  mesas,  que  deviam  servir  de  tecto  ou  cobertura,  por- 
que de  outro  modo  a  entrada  pelo  átrio  seria  impraticável. 

N'estas  circumstancias,  pouca  esperança  podia  haver  de  se 
encontrarem  em  bom  estado  de  conservação,  e  nos  seus  respecti- 
vos logares,  os  despojos  humanos  e  quasquer  objectos  que  os 
tivessem  acompanhado.  Foi  o  que  suecedeu.  A  extracção  de  tan- 
tas pedras,  que  faltavam  em  toda  a  construcção,  não  podia  dei- 
xar de  causar  uma  alteração  quasi  completa  no  interior  do  mo- 
numento. 

Os  craneos  e  os  outros  ossos  estavam  reduzidos  a  fragmen- 
tos, assim  como  todas  as  louças.  Pretendi  recompor  um  craneo, 
tendo  encontrado  alguns  fragmentos  que  me  pareceu  pertencerem- 


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251 

lhe,  c  com  effeito  ainda  consegui  reunir  grande  parte  da  região 
frontal,  acompanhada  de  uma  arcada  supraciliar  bastante  proe- 
minente, mas  com  o  bordo  orbitario  muito  obliterado.  Não  attin- 
gindo,  porém,  ao  menos  o  bregma,  não  posso  afílrmar  se  seria 
um  dolichocephalo  da  velha  raça,  como  a  grande  proeminência 
supraciliar  deixa  presumir.  Todos  os  mais  ossos  estavam  quebra- 
dos, e  Ião  poucos  eram,  que  não  foi  posssivel  com  elles  constituir 
um  esqueleto. 

Appareceu  um  fragmento  de  húmerus  não  perforado  na  cavi- 
dade olecraneana,  e  um  fémur  mui  intencionalmente  cortado  no 
sentido  transversal;  o  que  não  sei  perceber.  Na  galeria  achei 
algumas  phalanges  de  dedos  e  uns  dentes  dispersos,  com  as  co- 
roas muito  arrazadas.  Já  se  vê,  pois,  que  nenhuma  deducção  an- 
thropologica  peide  com  segurança  apurar-se  de  um  tão  incom- 
pleto pecúlio  osteologico.  O  monumento,  nas  invasões  que  soffreu, 
deve  ter  perdido  muitos  ossos,  além  dos  que  ficaram  reduzidos  a 
numerosíssimos  fragmentos  de  minguadas  dimensões. 

Os  utensílios  funerários  industriaes  e  artísticos  corresponde- 
ram um  tanto  melhor,  embora  faltem  alguns  objectos  que  neces- 
sariamente alli  existiram,  como  bem  o  deixa  perceber  uma  tampa 
de  marfim  com  trabalho  ornamental  (estampa  xiv,  n.°  19),  cuja 
caixa  não  foi  achada. 

Começarei  a  indicar  os  artefactos  de  pedra  lascada  figurados 
na  estampa  xm. 

N.°  1 — Lasca  de  silex  escuro  de  forma  polygonal  alongada, 
com  duas  arestas  lateraes,  a  da  esquerda  afilada  e  a  outra  um 
tanto  abatida,  parecendo  ser  a  parte  superior  de  uma  faca. 

N.°  2 — Fragmento  de  faca  de  silex  com  uma  face  plana  e  a 
outra  dividida  em  duas  facetas,  produzindo  arestas  de  gume  aba- 
tido e  denteado,  sendo  prismática  a  sua  secção  transversal. 

N.°  3 — Lasca  de  silex  com  duas  arestas  cortantes  lateraes, 
convergindo  em  extremidade  pont'aguda. 

N.°  4  —  Silex  lascado  com  duas  arestas  cortantes  convergindo 
em  ponta.  Poderia  ter  sido  instrumento  de  cortar,  e  frecha  cor- 
tante, sendo  firmada  cm  haste  fendida  pelo  seu  lado  mais  estreito. 


N.°  5 — Fragmento  que  parece  ter  sido  de  faca  de  silex. 

N.°  6  —  Silex  grosseiramente  lascado,  parecendo  ter  sido 
ponta  de  frecha  obliterada,  de  forma  paleolithica. 

N.°  7  —  Lasca  de  quartzo  opaco,  de  forma  tirante  a  triangu- 
lar, com  duas  arestas  cortantes. 

N.°  8  —  Lasca  de  quartzo  opaco,  de  secção  transversal  pri- 
smática, com  duas  arestas  cortantes. 

N.°  9 — Lasca  de  quartzo  cryslallino  com  gume  cortante 
abatido. 

N.°  10  —  Lasca  de  quartzite,  numa  face  plana  e  na  outra 
convexa,  rodeada  de  aresta  cortante. 

N.°  11 — Objecto  pont'agudo  de  calcareo,  sendo  prismática 
na  base  a  secção  transversal  e  de  meia  altura  para  o  vértice  um 
tanto  trapeziforme.  Estava  com  os  outros  instrumentos,  mas  não 
parece  ter  exercido  trabalho. 

N.°  lá  —  Serra  de  silex  plana  e  ligeiramente  arqueada  na 
face  anterior  e  dividida  na  posterior  em  quatro  facetas  dispo- 
stas á  feição  de  aduelas,  com  os  gumes  lateraes  retocados  e  aba- 
tidos, mostrando  ter  ficado  inutilisada. 

N.°  13 — Fragmento  de  uma  nitida  e  perfeita  faca  de  silex, 
com  uma  face  plana  e  a  outra  dividida  em  três  facetas,  conver- 
gindo as  lateraes  em  gume  cortante  afiladissimo. 

N.°  14 — Fragmento  superior  de  faca,  ou  lasca  cortante, 
tendo  a  extremidade  estreita  encurvada  para  o  lado  plano.  N'uma 
das  arestas  tem  duas  depressões  e  na  outra  gume  afilado. 

N.°  15  —  Serra  de  silex  obliterada  e  abatida  por  uma  denti- 
culação  irregular  nas  suas  primitivas  arestas  cortantes.  Na  dis- 
posição em  que  se  acha,  forma  na  extremidade  superior  ligeira 
curva  para  a  face  anterior,  e  na  extremidade  inferior  termina  em 
ponta  perforante.  É  singular  este  instrumento  pela  affinidade  da 
sua  forma  com  muitos  dos  últimos  tempos  geológicos,  existentes 
nas  collecções  da  escola  polytechnica,  pertencentes  á  secção  de 
mineralogia  e  de  geologia. 

N.°  16 — Famoso  fragmento  de  perfeita  faca  de  silex  alva- 
cento, um  tanto  recurvado  na  extremidade  existente,  plano  e  liso 


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253 

na  face  anterior  e  dividido  em  três  planos  na  posterior,  tendo  os 
seus  gumes  laleraes  muito  afilados. 

N.°  17 — Fragmento  de  estreita  faca  de  silex,  plano  e  liso 
na  face  anterior  e  na  posterior  dividido  em  três  planos.  Tem 
arestas  cortantes. 

N.°  18 — Base  de  uma  faca  de  silex,  que  parece  ser  da  do 
n.°  16,  faltando-lhe  um  fragmento  intermédio  de  ligação. 

N.°  19  —  Serra  obliterada  de  silex  negro,  com  as  arestas 
denteadas  já  muito  abatidas. 

N.°  20 — Extremidade  superior  de  faca  de  silex  com  dois  gu- 
mes cortantes. 

A  estampa  xiv  representa  primeiramente  dezeseis  pontas  de 
frecha  de  silex,  um  tanto  reduzidas  pela  photographia  nas  suas  di- 
mensões, assim  como  todos  os  mais  objectos  figurados  nas  outras 
estampas. 

Predomina  a  forma  triangular  nestas  bellas armas  de  guerra 
e  de  caça  com  diversas  variantes  nas  linhas  que  determinam  o 
triangulo,  sendo  numas  os  lados  maiores  ligeiramente  convexos  e 
n'outras  quasi  rectilíneos,  com  arestas  acuminadas  ou  denteadas, 
e  as  bases  passando  da  convexidade  á  linha  recta  e  d'esta  a  um 
arqueado  mais  ou  menos  reintrante  até  o  angulo  agudo.  D'estas 
variantes  resulta  o  typo  mitrae forme  (9,  10  e  11)  e  o  de  farpas 
compridas  (12).  São  de  silex  negro  as  de  n.03  1,  12  e  15,  de 
côr  albo-rosea  as  de  n.09  2,  5,  10  e  11,  de  cor  verdoenga  as  de 
n.os  3,  .4,  6,  8,  9,  13  e  16,  e  a  de  n.°  7  tirante  a  alvacento,  sendo 
de  quartzo  alabastrino  a  de  n.°  14. 

A  mesma  estampa  xiv  com  o  n.°  17  representa  um  núcleo  de 
crystal  de  rocha,  d'ondc  foram  extrahidas  muitas  lascas  cortan- 
tes por  choques  de  percussão;  com  este  estava  outro  três  vezes 
maior,  de  que  foram  destacadas  outras  lascas  mais  espessas. 
Este  bello  exemplar  é  assaz  vistoso  por  se  ter  formado  sobre  uma 
crystallisação  de  rútilo  l.  Não  se  pode  affirmarse  é  oriundo  do  paiz. 


1  0  rútilo,  que  parece  ser  o  acido  titânico  crystallisado,  é  ordinariamente  de  còr 
vermelho  escuro,  crystallisa  no  systema  prismático  com  base  quadrada;  os  seus  crystaes 


254 

Com  o  n.°  18  figuro  um  fragmento  de  placa  de  schisto  com 
gravuras,  abrangendo  o  orifício  de  suspensão,  e  com  elle  estavam 
outros  de  menores  dimensões.  Todos  estão  no  museu  e  poderiam 
ser  vistos,  se  o  museu  não  estivesse  escondido  para  todos  sem 
ninguém  o  poder  ver ! 

Aqui  pois  se  vae  observando,  que  a  placa  de  schisto  gravada 
tem  ido  acompanhando  quasi  todas  as  estações  neolithicas  do 
Algarve,  como  padrão  artístico  mais  typico  do  tardio  renasci- 
mento da  arte  de  gravura,  que  surgiu  e  feneceu  nas  ultimas  pha- 
ses  dos  tempos  quaternários;  e  não  ficou  isolada  esta  manifesta- 
ção da  arte  neolithica,  tendo-se  em  vista  o  seguinte  famoso  artefacto 
de  marfim,  com  gravura  ornamental,  representado  na  mesma 
estampa. 

O  n.°  19  figura  um  artefacto  sobremaneira  admirável.  Nos 
tempos  modernos,  sem  o  auxilio  do  torno,  não  facilmente  se 
excederia.  E  uma  tampa  de  caixa  de  marfim  tão  bem  trabalhada, 
que  se  tivesse  sido  vista  n'uma  sepultura  do  terceiro  ou  quarto 
século,  ninguém  duvidaria  julgada  como  produeto  da  arte  ro- 
mana. A  tampa  no  seu  lado  anterior  é  concava  e  tem  parallelo 
ao  bordo  externo  um  filete  saliente  que  deveria  ajustar-se  no  diâ- 
metro da  caixa  a  que  pertencia,  mas  que  não  foi  possível  achar- 
se,  e  no  lado  posterior  é  convexa,  tendo  entre  duas  duplas  linhas 
parallelas  e  traçadas  a  buril,  uma  faxa  ornamentada  de  triân- 
gulos, mostrando  o  estylo  dominante  da  gravura  das  placas  de 
schisto  ardosiano. 

A  estampa  saiu  detestável;  quasi  que  nada  deixa  ver.  O 
sr.  Cartailhac  representa  porém  este  interessante  artefacto  em 
duas  nitidas  gravuras  no  seu  bellissimo  livro  Les  ages  préhistori- 
ques,  etc.  Rara  habilidade  tinha  pois  o  artista  que  levou,  sem  o 
auxilio  do  torno,  a  tal  acabamento  um  tão  delicado  objecto!  O 
facto  de  não  se  ter  achado  a  caixa  pertencente  a  esta  notável 


são  geralmente  prismáticos,  formam  ás  vezes  grupamentos  mais  ou  menos  análogos 
aos  do  oxydo  de  estanho.  Aclia-se  nos  terrenos  graníticos,  etc.  — Beudant,  Minéralogie 
pag\  1G4— 18G5. 


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Ltóiojraphia.  Rua  d«  Moinho  òe  Vento -60 


c25o 

tampa,  mostra  haver  o  monumento  soffrido  grandes  perdas  no 
seu  pecúlio  funerário. 

O  n.°  20  reproduz  cm  menores  proporções  um  ornato  pen- 
dente de  marfim  de  figura  perilbrme,  a  que  falta  a  extremidade 
superior,  cm  que  devia  haver  um  orifício  ou  um  sulco,  que  per- 
mittisse  fixar-lhe  um  cordão  para  ser  suspenso.  Está  muito  obli- 
terado. 

O  n.°  21  representa  uma  bem  trabalhada  cabeça  de  alfinete 
de  osso  ou  de  prego  de  prender  o  penteado.  Tem  um  sulco  bem 
lançado  em  espiral,  como  se  fosse  enrolado  por  um  cordão. 
Falta  o  espigão  a  este  objecto  de  toucador  de  uma  dama  da  ul- 
tima idade  da  pedra,  a  quem  também  pertenceria,  talvez,  o  pen- 
dente de  marfim  n.°  20,  assim  como  a  bella  caixa,  de  que  só  es- 
capou a  tampa,  onde  seriam  guardados  alguns  adornos  mais 
mimosos  cTaquelles  tempos,  algum  collarsinho  de  contas  de  schisto, 
de  calaite,  de.  aragonite,  de  vértebras  de  peixe,  ou  de  conchi- 
nhas da  praia,  se  é  que  não  era  uma  boceta  privilegiada,  ou  co- 
fresinho  destinado  ao  cuidadoso  resguardo  de  algum  amuleto  de 
grandes  virtudes. 

A  estampa  xv  representa,  reduzidos  pela  photographia,  três 
instrumentos  de  pedra  polida,  duas  enxós  e  um  machado.  Esta- 
vam sobre  o  pavimento  do  dolmen. 

A  enxó  n.°  1  é  de  schisto  amphibolico,  formada  por  dois  pla- 
nos parallelos,  com  alguma  curvatura  para  o  lado  da  faceta 
que  lhe  produziu  um  gume  cortante  pouco  arqueado.  Re- 
mata em  extremidade  estreita,  sendo  geralmente  escabroso  e 
mais  ainda  nos  planos  laleraes.  Mede  de  comprimento  0m,197, 
de  largura  na  boca  0m,0G2,  de  largura  máxima  0m,067  e  de  es- 
pessura 0m,014.  E  um  perfeito  instrumento  de  trabalho,  com 
signaes  de  uso. 

A  enxó  n.°  3  esta  incompleta;  falta-lhe  a  extremidade  infe- 
rior. Parece  ser  de  schisto  metamorphico,  um  tanto  micaceo. 
Mede  de  comprimento  0m,073,  de  boca  0m,050,  de  espessura 
0n\014. 

O  machado  n.°  2  é  de  schisto  amphibolico  alterado.  Achei-o 


250 

partido  em  três  pedaços,  como  na  estampa  se  mostra,  e  com  o 
gume  cortante  obliterado,  formado  por  desengrossamento  decre- 
scente. É  elliptica  a  sua  secção  transversal.  Mede  0ru,  123  de  com- 
primento, na  máxima  largura  0m,073,  e  na  maior  espessura 
0m,035.  O  instrumento  já  entrou  partido;  o  que  bem  deixa 
perceber  a  importância  que  merecia  no  conceito  dos  deposi- 
tantes. 

Colligi  no  interior  do  monumento  cincoenta  e  três  lascas  de 
schisto  e  calcareos  de  diversas  formas  e  dimensões.  Lá  estão  no 
museu,  mas  não  se  podem  ver,  porque  o  museu  continua  es- 
condido n'um  plano  inferior  áquelle  em  que  eram  enterrados 
os  frades  e  os  leigos  de  S.  Francisco  da  Cidade.  Entre  essas 
lascas  de  pedras  algumas  ha  ponfagudas,  que,  ligadas  a  uma 
haste,  poderiam  ser  empregadas  como  armas  de  arremeço;  mas 
a  grande  maioria  não  permitte  tal  supposição,  senão  na  única 
hypothese  de  poderem  ter  sido  apontadas  ás  pernas  dos  animaes 
e  assim  feril-os  ou  contundil-os  de  modo  que  ficassem  estropea- 
dos  e  impedidos  de  escaparem  pela  fuga  á  perseguição  do  caça- 
dor; pois  para  este  fim  especial  qualquer  pedra  delgada  poderia 
servir. 

A  grande  quantidade,  porém,  de  pedras  lascadas  que  em  vá- 
rios monumentos  prehistoricos  descobri  como  formando  soleira 
em  que  assentam  os  ossos,  e  os  instrumentos  que  os  rodeiam, 
deixa  também  presumir,  que,  sendo  as  pedras  lascadas  uma  das 
mais  antigas  manifestações  do  trabalho  com  que  os  primeiros  ho- 
mens affirmaram  a  sua  existência  na  terra,  podessem  ter  consti- 
tuído um  culto  de  veneração  em  honra  dos  mortos  e  em  memo- 
ria do  passado.  Além  das  ditas  cincoenta  e  três  pedras  lascadas, 
colligi  mais  uma  de  schisto  stratificado,  de  configuração  quasi 
rectangular,  formada  por  dois  planos  parallelos  e  por  dois  lados 
de  ângulos  rectos  com  um  abatimento  de  curto  fundo  e  de  perí- 
metro oval,  tendo  0m,09  de  comprimento,  0m,052  de  largura 
numa  extremidade,  0m,045  na  outra  e  0m,015  de  espessura. 
Não  me  parece  fácil  interpretar-se  a  applicação  que  teria  tido. 
E  para  mim  um  enigma.  .  .  de  pedra. 


257 

Já  me  referi  aos  dentes  de  um  squaloide  terciário,  o  Carchar- 
rodon  Megalodon,  Agass.,  que  descobri  em  vários  depósitos  nco- 
lithicos,  considerando-os  como  instrumentos  de  trabalho.  No 
dolmen  coberto  da  Nora  encontrei  mais  dois,  certamente  os 
maiores  que  lenho  achado,  os  quaes  sem  duvida  alguma  confir- 
mam terem  as  suas  arestas 'exercido  a  acção  de  serragem  até 
desapparecerem  os  últimos  vestígios  da  denticulação  que  lhes  é 
própria.  Lá  estão  no  museu. 

O  maior  mede  de  comprimento  0m,118,  de  largura  máxima 
0m,G87  e  de  espessura  0m,033;  o  outro  tem  de  comprimento 
0m,10i,  na  maior  largura  0mJ00  e  de  espessura  0m,Q30.  Não 
foram  mui  provavelmente  achados  longe  do  dolmen,  sabendo-se 
que  os  terrenos  litoraes  de  Cacella  pertencem  geologicamente  ao 
terciário  marino,  onde  já  toem  sido  achados  outros  dentes  d'aquelle 
extincto  monstro  do  immenso  mar  que  nos  tempos  terciários  co- 
bria grande  parte  da  Europa,  abrangendo  o  sul  da  península 
hispânica. 

Pela  grande  porção  de  fragmentos  de  louças  de  varias  espes- 
suras e  formas  diversas,  achados  nos  entulhos  que  enchiam  o 
dolmen,  pode  entender-se  que  foram  alli  depositadas  muitas  ur- 
nas e  outras  louças  acompanhando  os  sepultados,  mas  que  tudo 
ficou  destruído  quando  áquelle  deposito  arrancaram  as  pedras 
que  faltam  na  sua  construcção.  Uma  pedra  tosca  de  forma  circu- 
lar estava  entre  as  louças  esmagadas,  deixando  presumir  que  ti- 
vesse sido  operculo  de  alguma  urna  de  maiores  dimensões.  Nada 
mais  colligi,  além  de  uns  ossos  e  dentes  fosseis  de  animaes,  a 
que  não  posso  ligar  importância,  por  terem  sido  achados  nas 
primeiras  camadas  do  entulho. 

Marcella.  —Assim  é  denominado  o  sitio  de  uma  proprie- 
dade rural,  na  freguezia  de  Cacella,  pertencente  ao  abastado  la- 
vrador António  Madeira.  A  Marcella  está  situada  a  oes-noroeste 
e  distante  quasi  2  kilomelros  da  igreja  de  Cacella;  tem  ao  sul, 
a  3  kilometros,  o  sitio  da  Nora,  e  ao  nascente,  quasi  a  13  kilo- 
melros, a  margem  direita  do  rio  Guadiana. 

17 


258 

O  proprietário  da  quinta  já  tinha  notado  a  existência  de 
umas  pontas  de  pedra,  dispostas  em  circulo,  um  tanto  salientes, 
no  terreno  lavrado;  mas  não  sabia  a  significação  d'aquelle  cir- 
cuito. Constando-lhe  porém  que  eu  andava  fazendo  excavações 
em  vários  logares  assignalados  com  vestígios  de  antigos  edifícios, 
teve  a  bizarra  condescendência  de  conceder-me  aquelle  es- 
paço para  ser  explorado,  não  obstante  estar  então  semeado  de 
ervilhas,  que  logo  mandou  arrancar  para  m'o  deixar  desembara- 
çado. 

As  pedras  salientes  eram  os  topos  dos  menMrs  que  formavam 
o  perímetro  proximamente  circular  da  crypta  de  um  famoso  mo- 
numento, que  já  tinha  perdido  toda  a  sua  cobertura  megalithica 
o  o  tumuhis  ou  outeiro  que  necessariamente  rematou  aquella  con- 
strucção. 

A  estampa  xn,  fig.  2,  mostra  a  planta  do  edifício  mortuário 
no  estado  em  que  estava  quando  foi  por  mim  explorado. 

O  monumento  pertence  á  classe  dos  dolmens  cobertos,  e  não 
é  uma  galeria  coberta,  como  erradamente  já  se  lhe  chamou.  E  um 
monumento  dolmenico-tumular,  dividido  em  quatro  corpos  distin- 
ctos,  um  átrio,  de  configuração  trapeziforme,  uma  camará  cen- 
tral rectangular,  e  uma  crypta  circular,  precedida  de  um  curto 
corredor  aberto.  Um  eixo  longitudinal,  medindo  internamente 
10m,70  passa  pelo  centro  de  todos  os  compartimentos  no  rumo 
de  leste  */♦  nordeste  a  oeste  4/4  noroeste,  tomada  a  orientação 
pelo  norte  magnético.  O  átrio,  tendo  já  perdido  a  porta  exter- 
na, é  calçado  de  pequenas  lages  irregulares  de  schisto  e  cal- 
careo  e  foi  flanqueado  por  duas  fileiras  de  menhirs,  de  que  só 
resta  a  do  norte.  Mede  de  comprimento  3  metros,  de  largura,  á 
entrada,  0m,60  e  junto  aos  dois  batentes  lateraes  da  porta  que  o 
separa  da  galeria,  lm,10.  A  letra  B  indica  a  porta  que  encostava 
aos  batentes,  a  qual  achei  tombada  sobre  o  pavimento.  A  camará 
central  C,  de  que  já  faltam  dois  menhirs  no  flanco  do  sul  e  mui- 
tos mais  no  do  norte,  tem  de  extensão  3m,30  e  do  largura,  junto 
aos  batentes  do  corredor  ou  ante-camara  que  precede  a  crypta, 
lm,80. 


259 

Esta  larga  entrada  para  a  crypta,  E,  D,  não  teve  porta,  mas 
Ires  menhirs  (faltando  o  do  norte)  que  a  fecharam.  E  o  único  dol- 
mm  coberto  do  Algarve  que  mostra  uma  ante-camara  aberta  para 
o  interior  da  crypta,  e  ligando  com  o  d'ella  o  seu  pavimento 
igualmente  calçado,  ou  antes  recamado  de  pedras  miúdas  em- 
bebidas no  solo.  À  crypta  é  circumdada  por  treze  menhirs  ergui- 
dos a  pino  e  tocando-se  pelos  seus  flancos  lateraes.  No  centro  a 
letra  G  indica  uma  lage  de  calcareo  proximamente  circular:  sobre 
esta  lage  havia  alguns  ossos  humanos,  uma  urna  cheia  de  terra 
com  lascas  de  silex  (veja-se  a  fig.  2  da  estampa  xxm),  imitando 
uma  d'cllas  a  forma  da  faca  de  secção  transversal  prismática,  e 
havia  também  sobre  a  lage  uns  fragmentos  de  facas  de  silex, 
acompanhadas  de  algumas  pontas  de  frecha,  sendo  uma  a  que 
represento  na  estampa  xvn  sob  o  n.°  6,  que  julgo  ser  um  arte- 
facto, ex  voto,  de  forma  inédita  original,  primoroso  pela  execu- 
ção, e  o  mais  delicado  de  todos  os  d'este  género  que  conheço. 

A  crypta  no  quadrante  de  sueste  manifestou  três  comparti- 
mentos que  indico  com  a  letra  I,  formados  por  lages  toscas  cra- 
vadas no  solo,  mas  pouco  elevadas,  sendo  os  seus  pavimentos 
calçados  de  pedra  miúda.  No  do  lado  do  poente  havia  uma  lage 
tosca  (H)  sobre  que  assentavam  alguns  ossos  humanos,  havendo 
em  todo  o  espaço  fechado  uma  urna  quasi  inteira  (estampa  xxu, 
n.°  1),  e  fragmentos  de  outras,  assim  como  pedaços  de  facas  de 
silex,  uma  ponta  de  frecha  (estampa  xvn,  n.°  3),  dois  núcleos  de 
crystal  de  rocha,  de  que  foram  extrahidas  algumas  lascas  cor- 
tantes (Estampa  xix,  n.os  5  e  6),  uma  grande  placa  fracturada  de 
schisto  com  orifício  e  gravuras  geométricas  nos  dois  lados,  uma 
enxó  de  schisto  amphibolico,  a  (estampa  xviií)  similhante  á  do 
dolmen  da  Nora  (estampa  xv,  n.°  1),  porém  maior,  como  adiante 
mostrarei. 

Com  os  fragmentos  de  espessos  vasos  cerâmicos,  havia  con- 
chas de  molluscos  marítimos  (Ostrca  edulis  L.,  Cardium eduleh., 
Pullastra  decussata  L.,  c  Patella  vulgata  L.),  mas  em  diminuta 
quantidade,  e  dois  grandes  pedaços  de  cinabrio,  ou  sulfureto  de 
mercúrio,  um  pedaço  de  hematite  vermelha,  ou  ferro  oligisto,  e 


260 

alguns  operculos  de  pedras  delgadas  que  cobriam  as  urnas, 
sendo  um  d'elles  de  configuração  cordiforme.  A  significação  das 
tintas  mineraes  em  laes  depósitos  já  ficou  descripta,  quando  me 
referi  aos  graes  de  pedra  de  Alçará.  Tudo  alli  estava  revolvido  e 
obliterado  por  antigas  invasões  e  por  isso  não  foi  possível  recom- 
por um  craneo  ou  achar  os  ossos  correspondentes  a  um  cadáver, 
assim  como  não  havia  inteira  uma  única  faca  de  silex. 

Nos  outros  dois  compartimentos  estavam  esmagados  os  cra- 
neos  e  partidos  todos  os  ossos  longos,  assim  como  todas  as  lou- 
ças, com  excepção  do  vaso  figurado  com  o  n.°  3  na  estampa  xxn 
e  os  três  que  represento  na  estampa  immediata.  Outros  muitos 
objetos,  todos  em  completa  desordem,  acompanhavam  alli  uma 
placa  partida  de  schisto  com  gravuras,  de  que  não  foi  possível 
achar-se  um  fragmento  que  devia  completal-a,  sendo  esta  de  me- 
nores dimensões  de  que  a  outra  a  que  já  me  referi.  Emfim,  es- 
parsos por  todo  o  pavimento  da  crypta  até  ao  átrio  foram  assaz 
numerosos  os  ossos,  e  os  fragmentos  de  louças  e  calhaus  que 
tiveram  diversas  applicações.  Toda  a  cobertura  do  dolmen  tinha 
desapparecido  sem  ficar  um  único  monolitho  em  seu  logar ;  o  que 
deixou  perceber  que  as  invasões  antigas  tinham  sido  praticadas 
pelo  tecto  do  monumento. 

E  um  tanto  extensa  a  lista  dos  arlefactos  encontrados  no  in- 
terior d'aquelle  deposito  mortuário.  Comquanto,  porém,  pela 
maior  parte  já  ficassem  enumerados,  convém  agora  ordenal-os. 


Ossos  humanos.  —  Já  indiquei  o  estado  em  que  achei  os  nume- 
rosos ossos,  que  mui  cuidadosamente  mandei  separar.  Tentei  reor- 
ganisar  ao  menos  um  craneo;  para  este  fim  reuni  todos  os  fra- 
gmentos; dividi-os  depois  em  diversos  grupos,  tendo  em  attenção 
as  espessuras,  e  a  côr,  a  fim  de  ver  se  era  possível  ajustarem-se 
as  peças  pertencentes  a  cada  um;  mas  não  foi  possível  conseguir 
o  meu  intento.  As  mandíbulas  estavam  todas  partidas;  apenas 
um  maxillar  incompleto  deixou  observar  alguns  dentes  incisivos, 
caninos,  e   prémolares,    estando  n'estes   as  coroas  ainda  mui 


EST.   XVI 


IffttyraBki*  flua  do  Mchrfw  deV«nro-60 


C2GI 

proeminentes,  podendo  por  isso  julgar- se  que  prelenceria  a  indi- 
viduo que  a  morte  surprehendêra  em  plena  mocidade. 

Mostram,  porém,  os  incisivos  c  caninos  ainda  embebidos -nos 
alvéolos  um  perfeito  orthognatismo  próprio  das  raças  brancas. 
Entre  os  ossos  longos  manifestou-se  o  mesmo  caso  que  já  notei 
n'um  fémur  extraindo  do  monumento  da  Nora,  isto  é,  uma  fra- 
ctura transversal  tão  lisa,  que  parece  ter  sido  intencional.  Fal- 
tava, pois,  uma  notável  quantidade  de  ossos,  que  certamente  alli 
deveria  haver,  se  não  tivessem  sido  expellidos  por  antigos  inva- 
sores, ou  rebuscadores  de  thesouros  escondidos.  Do  pouco  que 
achei,  apenas  fiquei  presumindo  que  os  soterrados  pertenciam  a 
uma  raça  orthognata;  o  que  igualmente  verifiquei  n'outras  esta- 
ções. Não  permitte  maiores  conceitos  o  exame  osteologico  do  mo- 
numento da  Marcella. 

Vejamos  agora  qual  era  o  pecúlio  artístico  e  industrial  d'aquel- 
les  orthognatas. 

A  estampa  xvi  reproduz  com  alguma  redacção  treze  instru- 
mentos lascados  de  silex:  uma  faca  reduzida  a  serra  (1),  tendo 
os  seus  gumes  lateraes  sido  transformados  num  denteado  irre- 
gular; uma  lamina  cortante  (2)  com  os  gumes  lateraes  um  tanto 
ondulados  á  feição  de  serra;  outras  duas  laminas  cortantes  12 
e  13),  mas  com  um  só  gume  afilado;  e  nove  grandes  fragmentos 
de  boas  facas  (3  a  11),  em  que  só  uma  (5)  mostra  a  face  pos- 
terior dividida  em  duas  facetas,  e  todas  as  mais  em  três,  cuja  de- 
scripção  omitto,  por  já  estar  feita  em  relação  a  outras  similhan- 
tes. 

Com  estas  ficaram  depositados  no  museu  mais  vinte  e  cinco 
fragmentos  de  facas  e '  laminas  cortantes,  entre  os  quaes  alguns 
ha  assaz  interessantes,  mas  que  não  reproduzi  para  não  au- 
gmentar  o  já  crescido  numero  de  estampas.  Já  se  vê,  pois,  que, 
indicando  cada  fragmento  um  instrumento  incompleto,  a  perda 
dos  complementos  que  faltam  é  muito  grande. 

Ha  mais  setenta  e  quatro  pedras,  de  varias  rochas,  capricho- 
samente lascadas  com  diversas  formas,  em  que  predominam  os 
schistos  e  calcareos.  Gomo  já  disse,  algumas  podem  ter  sido  utili- 


262 

sacias  como  armas  de  arremeço,  comquanlo  pela  maior  parle  se- 
riam simplesmente  empregadas  para  recamarem  os  logares  des- 
tinados á  deposição  dos  cadáveres.  Estão  todas  no  museu. 

A  estampa  xvii  mostra  os  restantes  instrumentos  lascados  de 
silex  encontrados  no  dolmen  da  Marcella.  São  primeiramente  nove 
pontas  de  frecha,  pela  maior  parte  de  arestas  lateraes  denteadas 
e  com  a  base  mais  ou  menos  profundamente  aberta  em  arco, 
sendo  notabilissima  a  de  n.°  6,  a  que  já  me  referi,  cuja  nitidez 
de  trabalho  é  admirável.  Com  a  fig.  10  indico  um  exemplar  de 
frecha  cortante  de  forma  triangular  com  uma  larga  faceta  produ- 
zindo o  gume.  E  o  mais  perfeito  exemplar  que  conheço  neste 
género. 

A  mesma  estampa  figura  com  os  n.os  11  e  12  duas  famosas 
settas  ou  ponlas  triangulares  de  lanças  de  silex,  uma  com  as 
arestas  lateraes  de  fino  denteado  e  a  outra  de  arestas  delicada- 
mente retocadas,  a  ponto  de  parecerem  afiladas  em  gume  cor- 
tante, sendo  ambas  de  base  rectilínea,  também  afilada.  Já  me 
referi  a  estes  dois  bellos  exemplares,  um  tanto  reduzidos  pela 
photographia,  como  constituindo  uma  forma  nova  e  muito  espe- 
cial nesta  região.  O  sr.  G.  de  Mortillet  cita  estes  bellos  instru- 
mentos do  Algarve  no  seu  Musée  préhistorique. 

Agora,  com  a  estampa  do  exemplar  n.°  11  á  vista,  não  dei- 
xará de  se  comprehender  que  o  denteado  não  é  uma  invenção 
original,  mas  a  mais  perfeita  imitação  das  arestas  que  guarne- 
cem os  poderosos  dentes  fosseis  de  Garcharodon  megalodon 
Agass.,  encontrados  no  deposito  neolithico,  na  caverna  da  Sin- 
ceira  em  Aljezur,  e  no  dolmen-tumular  da  Nora,  assim  como 
também,  a  meu  ver,  suscitaram  a  idéa  de  serem  transformadas 
em  serras  algumas  lascas  e  facas  de  silex. 

A  estampa  xvm  mostra  reduzida  pela  photographia  uma  ex- 
cellente  enxó  de  schisto  amphibolico,  formada  por  dois  planos 
parallelos  com  dois  lados  de  ângulos  rectos,  sendo  um  tanto  cur- 
vada para  o  lado  da  estreita  faceta  que  lhe  produz  o  gume  cor- 
tante, já  um  pouco  falhado.  Tem  de  comprimento  0m,127,  de 
largura  no  gume  0m,063,  na  extremidade  opposla  0"\027,  e  na 


MAPI  CE JL. LA 


Js/XVII 


concelho  mm  villa.  real 

M ARCE LLA 


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LWioôraphia.  Rua  doMoinhc  deVer.to- 


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MarceHa.-Tuuiuius    (Coilecçiio  do  Estado.) 


Lrthoçr»ph»a  Rua  do  Moinho  t»Vôii*-8Q 


263 

facetado  córle  0m,010,  com  a  espessura  de  0m,01G.  E  similhante 

á  da  Nora  e  aos  bellos  exemplares  de  Aljezur. 

Na  estampa  xix  sob  o  n.°  2  é  representado  um  pequena  es- 
copro do  mesmo  schisto  amphibolico  com  a  extremidade  inferior 
obliterada,  talvez  por  ter  sido  este  instrumento,  de  pouca  força, 
auxiliado,  na  acção  de  cortar,  pelo  choque  do  percutor,  do  mesmo 
modo  que  os  artífices  carpinteiros  empregam  o  formão  e  o  mar- 
tello.  Tem  de  comprimento  0n\057,  sendo  de  0ra,Q20  a  sua  maior 
espessura  e  de  0m,013  a  menor. 

Da  mesma  rocha  é  o  duplo  escopro  n.°  1,  todo  polido  e  com 
gume  cortante  em  cada  extremidade  produzido  por  uma  só  fa- 
ceta. Achéi-o  diagonalmente  partido  e  assim  entrou  naquelle 
deposito,  como  bem  o  mostra  a  incrustação  que  lhe  reveste  os 
planos  fracturados.  Mede  de  comprimento  0m,128,  de  largura 
na  faceta  superior  0ra,0i6  e  na  inferior  0m,010,  de  largura  má- 
xima 0m,029  e  de  espessura  maior  0ra,01i. 

É  também  de  schisto  amphibolico  o  instrumento  n.°  3,  de 
forma  subpyramidal,  formado  por  duas  faces  curvas  e  parallelas 
e  por  dois  lados  chanfrados  nos  ângulos,  que  convergem  na  ex- 
tremidade inferior  terminada  em  corte.  Está  truncado  na  extremi- 
dade larga,  onde  é  provável  ter  tido  gume  cortante  produzido  por 
uma  faceta  do  lado  da  curvatura.  Ficou  portanto  reduzido  a  es- 
copro de  corte  estreito  e  arredondado.  Tem  0^,107  de  compri- 
mento, 0m,025  na  maior  largura  e  0m,011  de  espessura. 

O  n.°  4  representa  um  excellente  machado  de  schisto  polido? 
de  secção  transversal  elliptica.  Com  um  desengrossamento  gra- 
dual produzido  pelo  attrito  nos  dois  lados  mais  largos,  formou- 
se-lhe  o  gume  cortante  sensivelmente  arqueado.  Num  dos  dois 
lados  largos  e  convexos  é  sulcado  por  uma  cannelura  transversal ' 
da  largura  de  0m,017  com  a  fundura  de  Gm,004,  tendo  as  arestas 
abatidas  e  lustradas  pela  fricção  das  ligaduras  de  encabamento. 
No  corte  ha  ligeiras  falhas  provenientes  do  trabalho.  Da  cannelura 


1  O  artista  preferiu  desenhal-o  do  lado  opposto.  talve^  por  lhe  parecer  o  mais  per- 
feito! 


204 

para  a  extremidade  inferior  ó  um  tanto  escabroso  e  no  lado  op- 
posto  um  pouco  falhado.  Tem  de  comprimento  0,n,118,  de  lar- 
gura na  boca  0,n,048,  na  extremidade  inferior  0m,035  e  de  es- 
pessura máxima  0m.Q34. 

O  n.°  5  é  um  núcleo  de  crystal  de  rocha,  donde  foram  des- 
tacadas cinco  lascas  cortantes  por  choques  de  percussão,  cujos 
bolbos  são  visíveis  na  aresta.  Tem  de  altura  0m,052  e  de  espes- 
sura máxima  0m,027. 

O  n.°  6  é  outro  núcleo  de  crystal  de  rocha,  que  forneceu 
quatro  lascas  cortantes.  E  menor  que  o  primeiro.  Tem  0n\046 
de  altura  e  0m,029  na  maior  grossura. 

Não  é  possível  representar  em  estampas  todos  os  objectos 
encontrados  no  monumento,  mas  é  forçoso  descrevemos,  e  por 
isso  não  abandono  ainda  a  secção  dos  instrumentos  de  pedra, 
porque  alguns  ha  que  merecem  especial  menção. 

Misturados  nos  entulhos  e  com  os  já  referidos  objectos,  appa- 
receram  calhaus  de  varias  rochas  e  de  diversas  formas,  attestando 
todos  terem  sido  instrumentos  de  trabalho.  Dividil-os-hei  em  Ires 
grupos,  denominando-os  percutores,  desengrossadores  e  brunidores. 

Pode  facilmente  conceber-se,  que  os  artefactos  polidos  de 
qualquer  pedra  passaram  mais  geralmente  por  três  diversas  ope- 
rações. Para  poderem  chegar  a  esse  estado  de  perfeição,  foram 
primeiramente  esboçados  ou  modelados  por  outras  pedras,  que 
os  desbastaram  por  bem  applicados  choques  de  percussão  até 
lhes  darem  a  forma  que  deviam  ter,  e  attingindo  este  resultado 
pratico,  o  esboço  ficou  apenas  configurado,  mas  grosseiro  e  abun- 
dante de  ângulos  e  depressões.  Às  pedras  de  que  se  serviam 
para  esta  primeira  operação,  chamadas  martellos  ou  percutores, 
eram  calhaus  rolados  e  pedras  angulosas  de  rija  tenacidade,  que 
a  natureza  punha  á  disposição  dos  operadores. 

Obtido  o  esboço  do  objecto  que  se  pretendia  fazer,  era  mis- 
ter desengrossar  e  abater  as  rugosidades  que  lhe  tinham  ficado, 
determinar-lhe  e  aperfeiçoar-lhe  a  forma  até  desapparecerem  as 
saliências  e  cavidades  resultantes  do  anterior  trabalho  de  per- 
cussão. Para  o  conseguirem,  procuravam  aquelles  artifices  outras 


265 

pedras  que  facilmente  gastassem  pela  fricção  as  escabrosidades 
dos  esboços.  Eram  geralmente  de  grés,  de  calcareos  porosos, 
conchiliferos,  ou  de  outras  rochas  de  granulação  mais  ou  menos 
resistente,  conforme  a  natureza  geológica  da  região  em  que  se 
faziam  taes  manufacturas,  as  pedras  fixas  em  que  os  esboços  pas- 
savam a  ser  amolados  com  o  auxilio  da  areia  e  da  agua,  como 
bem  mostram  as  suas  estrias,  até  tomarem  a  forma  e  o  aperfei- 
çoamento que  convinha  aos  fabricantes,  e  as  que  serviam  de 
instrumentos  de  mão  para  conseguirem  estes  e  outros  resultados 
que  as  pedras  fixas  não  podiam  tão  correctamente  produzir.  Em 
diversos  paizes,  e  principalmente  em  França,  ha  grande  numero 
d'essas  rochas  ou  pedras  in  situ,  cuja  superfície  conserva  cavi- 
dades, sulcos  e  fundas  estrias,  que  lhes  ficaram  da  fabricação 
dos  instrumentos  neolithicos,  assim  como  em  quasi  todas  as  es- 
tações prehistoricas  apparecem  outras  pedras  de  pequenas  dimen- 
sões, que  reconhecidamente  tiveram  aturado  uso  nesses  traba- 
lhos. 

Ha,  finalmente,  alguns  artefactos  de  pedra,  de  osso,  de  âm- 
bar, e  ainda  de  outras  substancias,  com  tão  apurado  acabamen- 
to, que  não  podia  ter  sido  somente  produzido  pela  pedra  de  amo- 
lar; pois  n'elles  não  ha  ver  estrias  resultantes  da  fricção  sobre 
areia  molhada,  ou  da  granulação  própria  das  pedras  que  exer- 
ceram a  acção  do  trabalho;  mas  uma  superfície  extremamente 
fina,  polida  e  até  luzente.  Houve,  portanto,  além  dos  percutores  e 
desengrossadores,  outros  instrumentos,  que  levaram  certos  arte- 
factos a  esse  estado  de  admirável  perfeição,  brunindo-os  e  polin- 
do-os  com  apurado  esmero,  e  taes  instrumentos,  bnmidores  e  po- 
lidores, podem  mui  bem  ser  extremados  de  todos  os  outros,  como 
vou  mostrar,  descrevendo  os  que  descobri  no  dolmen  coberto  da 
Marcella. 

Percutores.  —  O  martello  ou  percutor  do  ultimo  período  neo- 
lithico  era  a  primeira  pedra  de  rija  consistência  que  o  homem 
achava  solta  na  terra  com  uma  certa  forma  adaptada  ao  traba- 
lho. Se  o  artífice  pretendia  atacar  um  grande  núcleo  de  silex,  de 


266 

quartzo  ou  de  qualquer  outra  rocha,  para  d'ellc  destacar  algu- 
mas peças  de  avultadas  dimensões,  servia-se  de  um  robusto  ca- 
lhau, com  que  podesse  pôr  por  obra  o  seu  intuito;  se  precisava 
depois  afeiçoar  e  esboçar  a  forma  do  instrumento  que  queria 
fabricar,  já  então  precisava  ter  um  outro  percutor,  anguloso  e 
de  fácil  manejo. 

O  percutor  não  se  confunde,  pois,  com  qualquer  instrumento 
diverso;  é  elle  mesmo  que  se  denuncia;  porquanto,  assim  como 
pelos  choques  fazia  lascar  as  pedras  a  que  se  applicava,  sof- 
fria  elle  também  um  effeito  reversivo  equivalente.  Um  car- 
dume de  pequenas  falhas  nas  extremidades  ou  em  quaesquer 
outras  partes  de  uma  pedra  é  o  seu  mais  significativo  caracte- 
risco. 

Vou  indicar  o  primeiro  não  figurado  em  estampa.  É  um 
instrumento  de  schisto  amphibolico,  de  forma  cónica  e  de  base 
ellipsoidal,  mostrando  no  bordo  da  base  e  no  vértice  ler  exercido 
a  acção  de  percutir  outras  pedras.  E  todo  polido  e  bem  pode  ter 
sido  primitivamente  um  famoso  machado,  que  pelo  trabalho 
tivesse  ficado  obliterado.  Tem  de  comprimento  0m,086,  no  eixo 
maior  da  base  0m,056  e  no  menor.  0m,04i;  no  eixo  maior  da 
extremidade  menos  larga  Gm,025  e  no  menor  0m,19.  Está  no 
museu. 

Indico  também  uns  espheroides  de  quartzo,  que  parece  terem 
sido  percutores  abandonados,  como  outros  muitos  que  no  campo 
se  acham  com  frequência.  Acerca  d'estes  espheroides  já  indiquei 
n'outro  logar  o  conceito  do  sr.  G.  de  Mortillet,  que  julga  terem 
sido  primeiramente  preparados  com  facetas  angulosas,  e  que  de- 
pois de  todas  abatidas  pelo  trabalho,  foram  tomando  a  forma 
arredondada,  a  ponto  de  não  poderem  mais  ser  utilisados.  Os 
eixos  variam  entre  0m,050  e  0m,063.  Estão  no  museu.  São  nu- 
merosos os  percutores  encontrados  em  diversas  estações  do  Al- 
garve e  avulso  nos  campos. 

Desengrossadores.  —  Calhau  de  calcareo  poroso  pardacento 
da  forma  de  polygono  irregular,  dando  n'uma  das  suas  secções 


CONCELHO   X>E    VILLA   ll^AL 


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UlflaiTajiba  Rós  d*  *6cir.ho  dctoío  $ 


267 

um  pentágono  de  lados  desiguaes  c  na  extremidade  do  eixo  per- 
pendicular á  secção  horisontal  do  pentágono  dois  planos  oblíquos 
ligeiramente  convexos.  Todas  as  faces  d'este  solido  foram  produ- 
zidas pelo  atlrito  exercido  n'outras  pedras.  O  seu  maior  eixo 
mede  0n\075. 

Ha  mais  três  outros  sólidos  similhantes  da  mesma  rocha  e 
uns  espheroides  cuja  superfície  mostra  também  ter-sc  gasto  e 
alisado  pelo  attrito. 

Polidores  ou  Brunidores. — Citarei  três  d'estes  instrumentos: 

i.°  Calhau  com  duas  faces  lisas  um  pouco  convexas,  me- 
dindo no  eixo  maior  0m,10  e  no  menor  0m,075. 

2.°  Calhau  de  quartzo,  de  forma  elliptica,  determinada  por 
dois  planos  convexos,  oppostos,  convergindo  em  angulo,  e  liga- 
dos por  uma  faxa  circumdante  de  bordos  abatidos,  de  altura  de 
0m,023,  sendo  o  seu  eixo  maior  de  0m,069  e  o  menor  de  0m,051, 
com  a  máxima  espessura  de  0m,040.  Mostra  ter  sido  muito  gasto 
na  extremidade  mais  estreita  num  e  n'outro  lado,  sendo  mui  po- 
lidas as  duas  facetas  convergentes.  Parece  ter  sido  polidor. que 
trabalhou  com  o  auxilio  da  agua.  E  mui  perfeito. 

3.°  Um  pequeno  calhau  de  schisto  negro  (?),  ou  talvez  de 
basalto  de  forma  elliptica,  achatado,  de  arestas  abatidas,  com 
uma  depressão  na  extremidade  larga  produzida  pelo  attrito.  Mede 
no  eixo  maior  0m,066  e  na  maior  largura  0m,024. 

Tendo  mostrado  que  a  estação  neolithica  da  Marcella  conti- 
nha os  principaes  instrumentos  de  trabalho  de  que  careciam  os 
artistas  e  artífices  da  ultima  idade  da  pedra,  é  mister  igualmente 
mostrar  osproduetos  com  que  tão  mal  armadas  mãos  se  deixa- 
ram memoradas. 

Placas  de  schisto  com  gravuras. — Duas  d'essas  placas  de 
schisto  appareceram  entre  os  ossos  dos  indivíduos  sepultados  no 
dolmen-tumalm  da  Marcella:  e  mui  bem  podem  essas  laminas 
haver  sido  preparadas  na  própria  localidade;  pois  não  faltava 
nesta  região  do  sul  a  maioria  prima,  nem  faltavam  no  próprio 


268 

dolmen  os  instrumentos  para  a  sua  manipulação.  Represento 
uma  só,  um  tanto  reduzida  pela  photographia  (estampa  xx),  cujo 
eixo  maior  mede  0m,205,  o  transversal  máximo  0m,126,  sendo 
de  0m,009  a  espessura  geral,  assim  como  de  0m,004  o  diâmetro 
do  orifício.  Esta  placa  também  tem  gravura  ornamental  na  face 
opposta,  o  que  é  muito  raro.  A  outra,  apesar  de  ser  diversa  no 
lavor,  não  vae  estampada.  Ahi  fica  no  museu. 


Plaga  de  marfim  ornamentada. — A  gente  que  nas  estações 
da  Nora  e  da  Marcella  usava  objectos  de  pedra  com  gravuras, 
não  se  limitava  a  estes  únicos  adornos,  porque  também  os  tinha 
de  marfim  mui  bem  trabalhados.  A  estampa  xxi,  fig.  2,  repre- 
senta uma  ténue  placa  de  marfim,  lisa  n'um  lado  e  no  outro  or- 
namentada de  quadradinhos  mui  regulares,  formados  pelo  en- 
contro de  sulcos  diagonaes,  cruzando-se  perpendicularmente.  Era 
este  ornato  na  parte  superior  pedunculado  e  foi  o  seu  pedúnculo 
talvez  mais  alto  e  atravessado  por  um  orifício  para  poder  ser  en- 
fiado por  um  cordão,  ou  sulcado  para  se  poder  atar,  e  rematava 
na  extremidade  inferior  em  bordo,  arqueado,  finamente  den- 
teado. 

Era  sem  duvida  um  enfeite  pendente  de  grande  apreço 
naquelles  tempos,  em  que  a  arte  prehistorica  parecia  querer 
renascer,  podendo  presumir-se  que  seria  objecto  de  industria  ar- 
tística local,  a  ter-se  em  vista  uma  lamina  delgada  de  marfim 
com  0m,008  de  espessura,  0m,180  de  comprimento  e  Om,0(55  na 
maior  largura,  perfeitamente  cortada  de  um  dente,  que  pode  ter 
sido  de  elephante,  o  que  não  seria  impossível l  ter-se  achado 
naquelle  território,  por  isso  que  uma  espécie  de  elephante,  que 
se  diz  ser  o  Elephas  africanus,  foi  verificada  em  1863  [por  Ver- 


1  Nada  se  pôde  affirmar  nem  negar  com  referencia  á  paleontologia  algarviense.  Por 
cmquanto  não  tem  alli  havido  trabalhos  geológicos  fundamentaes,  de  que  possam  de- 
duzir-se  as  faunas  e  floras  fosseis  daquelle  território.  Antes  das  explorações  em  Santo  Izi- 
dro;  ninguém  affi raiaria  a  própria  possibilidade  de  se  descobrir  alli  uma  espécie  de 
Elephas,  que  só  poderia  finalmente  procurar-se  no  continente  africano. 


MARCHLLA 


jphxxt 


269 

neuil,  Lartet  e  D.  Gasiano  de  Prado  nas  alluviões  quaternárias 
do  valle  de  Manzanares,  em  Santo  Izidro,  perlo  de  Madrid.  Nem 
se  pode  entender  que  aquella  boa  lamina  de  marfim,  tendo  sido 
tão  habilmente  serrada,  não  estivesse  de  reserva  para  algum  tra- 
balho delicado.  E  como  chegaria  ella  a  ser  serrada?  Que  instru- 
mentos e  que  processos  seriam  empregados  para  ser  vencida 
uma  tão  enorme  difíicuMade? 

E  mister  entender  que  a  serrilha  fina  e  forte  do  dente  fóssil 
do  sqnaloide  terciário,  que  se  tem  achado  nos  dolmens-tumuli 
e  na  caverna  da  Sinceira,  assim  como  a  da  faca  de  silex  trans- 
formada em  serra,  assenta  sobre  uma  aresta  d'onde  o  instru- 
mento começa  logo  a  engrossar,  e  por  isso,  applicada  uma  tal 
serra  á  pedra  ou  ao  marfim,  o  seu  corte  não  podia  ir  fundo,  em- 
bora rodeando  o  núcleo,  para  destacar  laminas  da  largura  de 
0m,065,  como  é  aquella  a  que  me  refiro.  O  núcleo,  ao  passo  que 
a  serragem  avançasse,  seria  necessariamente  desbastado  pelas 
enxós,  pelos  escopros  e  facas,  mas  com  perdimento  de  matéria. 
De  outro  modo  não  posso  julgar  que  a  serra,  simplesmente,  po- 
desse  cortar  espaçosas  laminas  de  marfim. 

Uma  única  hypothese  poderia  emittir-se  com  mais  algum 
viso  de  probabilidade,  do  que  a  presumpção  de  poderem  ter  sido 
achados  dentes  de  elephante  no  território  do  Algarve,  como  nas 
alluviões  quarlenarias  do  Manzanares,  e  de  que  os  homens  dos 
tempos  neolilhicos  tivessem  á  sua  disposição  os  meios  práticos 
de  reduzil-os  a  folhas  delgadas  para  fabricarem  pingentes  com 
gravuras,  e  a  grossos  pedaços  para  fazerem  caixas  e  tampas  or- 
namentadas, como  aquella  que  se  achou  na  estação  da  Nora;  pois 
assim  como  a  civilisação  neolithica  se  deixou  affirmada  com  ar- 
tefactos novos  de  substancias  não  conhecidas  hoje  em  varias 
regiões  das  que  provadamente  habitou,  podéra  também  receber 
manufacturas  de  marfim  de  uma  outra  plaga  que  já  contasse 
maior  desenvolvimento  e  progresso,  tanto  mais  dando-se  o  caso 
de  que  as  manufacturas  de  marfim  e  osso  apparecem  na  Europa 
em  grande  numero  de  estações  synchronicas,  o  que  não  suecede 
com  as  placas  de  schisto  gravadas,  que  somente,  sob  o  mesmo 


27G 

eslylo,  toem  sido  achadas  cm  Portugal,  deixando  presumir  que 
haja  sido  uma  industria  artística  d'esta  zona  geographica. 

Gorjal. — Um  artefacto  de  barro  com  mescla  de  grãos  de 
quartzite,  e  da  forma  de  crescente,  com  uma  cannelurà  central 
num  lado  e  com  um  orifício  próximo  de  cada  extremidade,  exi- 
stia entre  os  objectos  do  deposito  mortuário  da  Marcella.  Foi,  re- 
conhecidamente, adorno,  insígnia  de  auetoridade,  ou  amuleto, 
que  se  traria  pendente  do  pescoço,  a  que  teria  adherido  um  pin- 
gente, cujo  cordão  de  suspensão  passaria  pela  dita  cannelurà.  Está 
perfeitamente  conservado,  como  se  vê  na  referida  estampa  xxi, 
sob  o  n.°  7. 

A  forma  de  crescente  nos  tempos  prehisíoricos  deixa  ver  uma 
especial  symbologia  referente  á  lua.  O  sr.  Gagliardini,  director 
da  quinta  regional  de  Cintra,  descobriu  no  sitio  da  mesma  quin- 
ta, conhecido  pelo  nome  das  Barradas,  um  deposito  neolithico 
exeavado  na  rocha,  onde,  entre  muitos  característicos  da  ultima 
idade  da  pedra,  existia  um  objecto  de  calcareo  da  forma  de  pyra- 
mide  cónica  truncada,  o  qual,  entre  outros  ornatos,  mostra  no 
centro  uma  meia  lua  com  as  pontas' para  baixo,  se  porventura  o 
objecto  era  usado  com  o  topo  mais  largo  servindo  de  base.  Este 
bello  artefacto  pertence  á  secção  geológica  e  é  figurado  na  me- 
moria de  Carlos  Ribeiro,  intitulada  Noticia  de  algumas  estações  e 
monumentos  prehistoricos,  pag.  83  (1880).  Estes  symbolos  pare- 
cem reforçar  o  conceito,  a  que  já  alludi,  da  existência  de  um 
culto  consagrado  á  lua. 

A  mesma  estampa  xxi  representa  sob  o  n.°  4  um  fragmento 
de  dente  de  javali  com  duas  arestas  afiladas;  mostra  ao  mesmo 
tempo  sob  os  n.cs  1,  3,  5  e  6  uns  fragmentos  de  ponteiros  ou 
espigões  de  osso  polido;  o  que  não  seria  difficil  fazer-se  com  o 
auxilio  dos  instrumentos  que  ficam  descriptos. 

Tintas  mineraes.  —  Já  me  referi  ao  facto  assaz  significativo 
da  existência  de  substancias  mineraes  destinadas  á  fabricação  de 
tintas,  attribuindo-as  ao  uso  das  tatuagens  ainda  mantido  entre 


271 

algumas  Iribus  selvagens  de  varias  regiões.  No  monumento  da 
Marcella  descobri  a  hematite  vermelha  ou  ferro  oligisto,  c  duas 
massas  granulares  crystallinas  de  cinabrio,  ou  sulphureto  de  mer- 
cúrio. 

Na  America,  na  Africa  e  ainda  n'outras  regiões  do  globo,  cm 
que  alguns  povos  barbaricos  se  adornam  de  tatuagens,  as  cores 
mais  usadas  são  a  vermelha  c  a  preta;  e  assim  como  já  ficam 
indicadas  duas  drogas  que  produzem  a  côr  vermelho  escuro,  e 
vermelho  claro,  os  homens  que  habitavam  esta  zona  do  Algarve 
nos  tempos  prehistoricos  conheceriam  também  o  manganez,  que, 
sendo  pulverisado,  dá  uma  tinta  muito  escura;  pois  este  mine- 
ral acha-se  nas  minas  antigas  do  Murração,  no  concelho  de  Al- 
jezur, nas  de  Valle  de  Pegas,  no  concelho  de  Albufeira,  e  fre- 
guesia de  Paderne,  e  n'outros  logares  assignalados  por  bons 
característicos  neolithicos.  Póde-se  pois  afoitamente  affirmar  que 
o  manganez  já  então  era  tão  conhecido  e  usado,  que  tem  sido 
descoberto  n'algumas  estações  da  ultima  idade  da  pedra  em 
França,  na  Bélgica  e  n'outros  paizes. 

A  limonite,  ou  peroxydo  de  ferro  hydratado,  achei  eu  no  mo- 
numento da  Torre  dos  Frades,  e  no  de  Alcalá,  onde  havia  graes 
de  pedra,  já  figurados  e  descriptos,  em  que  as  tintas  seriam  pre- 
paradas. 

Gomquanto  não  conste  haver-se  encontrado  o  cinabrio  n'este 
paiz,  não  posso  affirmar  que  não  fosse  possível  em  tempos  tão  remo- 
tos achar-se  no  Algarve,  tanto  mais  tendo-se  verificado  em  Olhão 
uma  mina  de  mercúrio  quando  se  abriu  o  poço  publico  logo  á 
entrada  da  villa.  É  porém  mais  provável  que  ao  Algarve  podesse 
chegar  o  cinabrio  da  celebre  mina  de  Almaden.  Fosse  porém  qual 
fosse  a  proveniência  do  que  achei  no  dolmen  da  Marcella,  a  sua 
presença  entre  os  ossos  e  instrumentos  alli  depositados  seria 
para  se  aproveitar  na  fabricação  de  tinta  vermelha,  que  bem  pode 
também  ter-se  empregado  em  colorir  alguns  objectos  de  adorno, 
embora  não  os  houvesse  naquelle  deposito. 

No  mesmo  dolmen-tamnhis  achei  inteiro  e  cheio  de  terra  um 
gargalo  de  vasilha  de  barro,  envolvendo  uns  pequenos  grumos, 


272 

que  ainda  se  observam,  de  tinta  vermelha  finíssima,  de  côr  mui 
limpa,  deixando-me  presumir  que  fora  aquelle  vaso  um  deposito 
de  tinta  já  depurada  para  se  poder  levar  ao  gral  e  ser  talvez 
dissolvida  com  gordura  ou  medulla  de  alguns  ossos  longos  de 
animaes,  que  por  vezes  tenho  encontrado  partidos  por  choques 
de  percutor  n'outros  logares  próximos  de  estações  prehistoricas. 
E  não  era  somente  alli  usada  aquella  tinta  vermelha,  porque  tam- 
bém a  descobri  num  gral  de  pedra,  de  que  darei  noticia  no  se- 
gundo volume  d'esta  obra. 

Tudo  quanto  a  respeito  de  tintas  tenho  dito,  parece  poder 
significar  que  um  dos  caprichos  de  maior  luxo,  uma  das  singula- 
ridades de  mais  requintada  galanteria,  era  a  pintura  da  pelle, 
acompanhada  da  compostura  dos  adornos,  em  que  sobresaía  um 
collar  de  conchas  da  praia,  ou  de  contas  de  pedra,  e  um  amuleto 
pendente,  com  que  se  afugentavam  todos  os  males  da  vida;  pois 
quanto  a  vestuário,  de  pelles  ou  de  algum  tecido  grosseiro  e  pe- 
sado, até  que  o  frio  não  apertasse,  seria  uma  verdadeira  extra- 
vagância, uma  affrontosa  superfluidade. 

La  estavam  também  umas  conchinhas,  e  duas  perforadas, 
como  se  podem  ver  no  museu.  Eram  dos  géneros  Ostrea,  Car- 
dium,  Conus  e  Nerita 

Louças. — A  baixella  cerâmica  da  Marcella  deve  ter  sido  opu- 
lenta. Os  numerosos  fragmentos  que  alli  observei  mostram  que 
havia  profusão  e  variedade  de  vasilhame,  embora  da  mais  rude 
fabricação.  A  gente  d'aquelle  tempo  não  inventou  certamente  o 
testamento,  porque,  levando  comsigo,  quando  ia  a  enterrar-se, 
todas  quantas  alfaias  possuía,  não  tinha  que  testar.  O  thesouro 
cerâmico  soffreu  enormes  avarias.  Os  que  me  precederam  na 
exploração,  não  sendo  alli  conduzidos  por  interesse  scientifico, 
não  lhe  deram  a  minima  importância;  o  que  não  pisaram, 
deixaram  esmagado  com  o  peso  dos  entulhos  que  desceram 
da  cúpula  do  tumulus  em  que  numerosos  indivíduos  esperavam  o 
venturoso  momento  da  resurreição.  Para  reconhecer  a  forma  de 
alguns  daquelles  vasos  foi  mister  procurar  pacientemente  os  fra- 


273 

gmentos  e  collal-os.  Foi  assim  que  consegui  restaurar  os  que 
figuro  nas  estampas  xxn  e  xxm. 

Na  estampa  xxn  o  1.°  é  de  barro  escuro,  pasta  delgada  e 
fundo  convexo,  com  uma  depressão  no  centro,  adherindo  por  um 
bordo  abatido  ao  gargalo,  que  tem  a  forma  de  cannelura  muito 
aberta,  terminada  por  outro  bordo  virado  para  o  lado  externo. 
São  eslas  as  suas  dimensões:  altura  total  0m,068,  diâmetro  do 
bordo  inferior  0m,128,  do  superior  0m,125,  da  linha  central  do 
gargalo  entre  os  dois  bordos  0m,120,  e  altura  do  gargalo  0m,046. 
O  2.°  estava  parcialmente  destruído,  mas  cheio  de  terra  endure- 
cida, tendo  superiormente  incrustada  na  mesma  terra  um  fra- 
gmento de  faca  de  silex,  de  secção  transversal  prismática,  com 
dois  gumes  cortantes. 

O  vaso  tem  o  fundo  convexo,  mas  um  tanto  achatado  no  cen- 
tro e  pega  seu  bordo  saliente  com  o  bojo,  que  é  ligeiramente 
convexo,  rematado  em  bordo  direito.  Póde-se  calcular  o  diâme- 
tro do  fundo  em  0m,065,  o  da  boca  em  0m,090,  e  o  da  circum- 
ferencia  do  bojo  em  0m,097,  sendo  de  0m,073  a  altura  do  eixo 
vertical.  O  facto  de  se  ter  nelle  achado,  como  ainda  se  observa, 
um  fragmento  de  faca  de  silex,  permitte  suppor  que  serviria  para 
receptáculo  de  taes  objectos,  ou  que  nelle  fossem  recolhidos  os 
mais  miúdos  dos  que,  durante  a  vida,  estiveram  em  uso  do  indi- 
viduo a  quem  o  monumento  da  Marcella  deu  abrigo  reservado  e 
honroso. 

O  3.°  vaso  é  assaz  significativo :  tem  a  forma  hemispherica  e 
não  melhor  trabalho  que  os  antecedentes.  A  altura  do  seu  eixo  é 
de  0m,055,  sendo  o  diâmetro  do  bordo  superior  de  0m,144.  Disse 
que  era  assaz  siguiíicativo,  porque  veiu  manifestar  uma  excepção 
aos  usos  funerários  do  tempo,  contendo  cinzas  e  fragmentos  de 
ossos  queimados,  envoltos  nos  torrões  que  actualmente  conserva; 
o  que  bem  claramente  mostra  haver-se  recolhido  naquelle  de- 
posito mortuário  uma  urna  cineraria,  quando  o  systema  domi- 
nante era  a  inhumação,  mui  provavelmente  com  os  cadavares 
dobrados  pelas  articulações  dos  fémures,  por  isso  que  os  outros 
ossos,  não  obstante  já  terem  sido  bastante  revolvidos,  ainda  dei- 

18 


274 

xavam  perceber  n'um  ou  n'outro  logar  o  espaço  que  tinham  oc- 
cupado  após  a  decomposição  das  suas  ligações  musculares.  É 
caso  único  em  toda  a  região  dolmenico-tumular  da  ultima  idade 
da  pedra. 

A  estampa  xxm  reproduz  em  dimensões  reduzidas  pela  pho- 
tographia  outros  três  vasos.  O  1.°,  comquanto  incompleto,  repre- 
senta a  primitiva  configuração.  E  um  vaso  de  tosco  trabalho, 
com  o  bojo  e  o  fundo  convexos,  tendo  o  bordo  superior  inclinado 
para  o  eixo  vertical.  A  pasta  cerâmica  é  delgada  e  compõe-se  de 
terra  escura,  argilla  avermelhada  e  areia  quartzosa  em  pequena 
quantidade.  Não  parece  ter  sido  cozido  em  forno,  por  se  quebrar 
facilmente  com  os  dedos. 

O  n.°  2  é  quasi  espherico  e  de  minguadas  dimensões.  Mede 
de  altura  0m,057,  no  maior  diâmetro  do  bojo  0m,073,  e  no  da 
boca,  que  termina  em  bordo  muito  abatido,  apenas  0m,033.  E  o 
mais  perfeito  da  collecção.  Deve  ter  sido  fabricado  para  usos 
funerários  ou  para  conter  algum  objecto  delicado  dos  que  esta- 
vam em  uso. 

O  n.°  3  é  um  vaso  maior,  quasi  da  mesma  forma  do  antece- 
dente, sendo  porém  mais  abatido  na  -metade  superior.  Ficou  todo 
amolgado  dos  dedos  do  fabricante,  que,  ao  que  parece,  tinha 
mão  pesada  e  avessa  para  não  poder  distinguir-se  nos  primores 
da  arte. 

Saiu  pois  este  aleijão  com  0m,87  de  altura,  0m,139  no  maior 
diâmetro  do  bojo  e  0m,060  no  da  boca,  um  tanto  levantada  so- 
bre um  curto  gargalo. 

No  museu  existem  muitos  fragmentos,  que  mostram  a  diver- 
sidade das  louças  que  já  então  havia.  Ha  duas  azas  ou  pegas,  que 
pertenceram  a  vasos  de  grandes  dimensões  e  espessura  corre- 
spondente; ha  também  uns  grossos  fragmentos  de  espaçosas  vasi- 
lhas de  pouca  altura,  atravessados  de  orifícios  do  diâmetro  de 
0m,009,  assim  como  uma  pedra  com  cavidade  natural  visivel- 
mente aperfeiçoada  para  se  poder  utilisar.  A  cavidade  estava 
cheia  de  terra  com  lascas  de  pedra,  talvez  pertencentes  ao  pecúlio 
deixado  por  um  dos  sepultados.  O  maior  diâmetro  interno  mede 


275 

0m,102  e  tem  a  fundura  de  0m,05.  A  maior  altura  externa  é 
deOra,132. 

Nada  mais  continha  o  dolmen-tumulus  da  Marcella,  que  o 
sr.  António  Madeira  me  permititu  explorar  com  a  clausula  de  se- 
rem applicados  os  objectos  alli  achados  para  o  museu,  já  então 
projectado,  das  antiguidades  do  Algarve,  associando-se  assim  ao 
pensamento  com  que  os  mais  proprietários  me  fizeram  igual  con- 
cessão. 

Era  esta  a  ultima  estação  neolithica,  que  na  secção  sub- 
oriental  da  província  havia  sido  descoberta  na  exploração  geral 
que  me  foi  incumbida  para  o  levantamento  da  carta  archeologica, 
não  obstante  já  muito  anteriormente  haverem  apparecido  em  vá- 
rios logares  d'aquella  freguezia  uns  certos  instrumentos  de  pedra 
em  trabalhos  ruraes,  que  deixavam  presumir  a  existência  de 
mais  algumas  estações  até  quasi  á  margem  direita  do  rio  Gua- 
diana; e  não  ficou  essa  bem  firmada  presumpção  sem  ser  confir- 
mada, como  vou  mostrar. 

Cacella. — Ao  norte  magnético  e  em  distancia  de  1:730  me- 
tros da  igreja  de  Cacella,  no  corte  do  novo  ramal  que  em  1884 
se  estava  fazendo,  a  partir  da  Ponte  Nova,  para  se  abrir  o  ca- 
minho da  igreja  aos  moradores  mais  apartados  da  sede  parochial, 
descobriram  os  trabalhadores  umas  grandes  pedras,  que  arran- 
caram, e  junto  d'ellas  viram  muitos  pedaços  compridos  de  peder- 
neira, que  foram  mettendo  nas  algibeiras,  chegando  a  partir  os 
maiores  para  melhor  caberem,  por  serem  muito  boas  pedras  de 
ferir  lume  para  a  isca  de  accender  o  cigarro.  Com  as  pedernei- 
ras, acharam  também  muitas  pedras  de  raio,  de  diversas  dimen- 
sões, que  mui  provavelmente  teriam  o  cuidado  de  levar  á  noite 
para  casa,  a  fim  de  porem  o  lar  domestico  em  guarda  contra 
raios,  centelhas  e  coriscos.  Só  lhes  faltou  acharem  a  pedra  phi- 
losophal,  e  algum  amuleto,  que  os  defendesse  das  bruxas,  lobis- 
homens  e  do  pavoroso  escrivão  de  fazenda. 

Constando  porem  este  caso  ao  intelligente  e  digno  fiscal 
d'aquelles  trabalhos,  o  sr.  Joaquim  José  Lima  de  Azevedo,  meu 


276 

distincto  consócio  no  instituto  archeologico  do  Algarve,  tomou 
logo  as  providencias  que  julgou  serem  mais  úteis  para  ter  conhe- 
cimento certo  do  logar  do  achado  e  chegar  a  obter  os  objectos  que 
ainda  podesse  salvar  d'aquellas  garras  damninhas. 

O  sr.  Lima  de  Azevedo  desejou  explorar  o  logar  em  que 
tinham  apparecido  as  facas  de  silex,  os  machados  e  enxós  de 
pedra,  mas  como  aquella  obra  estava  dada  de  arrematação  por 
empreitada,  entendeu  que  não  cabia  em  sua  alçada  compellir 
os  empreiteiros  a  consentirem  trabalhos  propriamente  archeo- 
logicos.  Occorreu-lhe,  porém,  a  feliz  idéa  de  levantar  uma 
planta,  que  remetteu  á  secretaria  do  instituto,  em  que  marcou 
precisamente  o  ponto  archeologico,  assim  como  dois  outros  loga- 
res  com  indicios  de  antigas  sepulturas;  e  por  este  bom  serviço, 
que  todos  os  engenheiros  deveriam  imitar,  se  poderá  um  dia 
fazer-se  alli  uma  exploração  em  devida  regra. 

A  estampa  xxm  A  mostra  a  situação  do  monumento  e  registra 
ao  mesmo  tempo  outras  noticias. 

O  sr.  Lima  de  Azevedo  foi  também  informado  de  que  com 
os  instrumentos  de  pedra  estavam  muitos  ossos  humanos  e  louças 
partidas,  o  que  bem  mostra  que  um  monumento  prehistorico, 
porventura  um  dolmen  coberto,  alli  existia.  Obteve  finalmente  um 
grande  machado  de  schisto  amphibolico  de  0m,31  de  compri- 
mento (estampa  xxiv,  3)  de  0m,31  de  comprimento  e  uma  excel- 
lente  enxó  da  mesma  rocha  com  o  comprimento  de  0m,144  (es- 
tampa xxv,  3),  que  logo  enviou  para  o  deposito  do  museu 
archeologico  de  Faro.  Por  todos  estes  serviços  cabem  merecidos 
louvores  ao  sr.  Lima  de  Azevedo,  sentindo  não  ter  tido  similhan- 
tes  occasiões  de  podel-os  igualmente  tributar  aos  engenheiros, 
que,  pelo  contrario,  tantos  monumentos  têem  deixado  estragar  e 
destruir  n'esta  província. 

A  noticia  dos  descobrimentos  feitos  no  ramal  da  Ponte  Nova 
para  a  igreja  de  Gacella  acudiu  quasi  ao  mesmo  tempo  o  sr.  dr. 
Joaquim  do  Nascimento  Trindade,  distincto  medico  residente  em 
Tavira  e  presidente  da  commissão  filial  do  instituto  no  mesmo 
concelho,  e  taes  diligencias  empregou,  que  ainda  conseguiu  obter 


FstJY/f/A 


Imante 

demita  irrui  de.  lemno  ao  norUda  yreji*  cie  Cacei  la  cnd* 
^erumleaeyzenala^tmasantt^ttdadesyue^riameeUreyue.'  m> 

Jfisfiiu&tJrc/teâZoerite  de  Farv 
Estala  Z.30C0 

Sar?  -_/e  rirei ■  rc    de  JttSZ- 
.Jcatfuiin    Jhse  Lima.  de  '^íze-ve-do 


t^eés z><rrdíH  vlclf  eiartaes  evidentes  de  serfultu. 
tAG  desvyrKxdc  jaela  le-ér-a.  t  Act  lau.c*lmt?rtlt 
atarias  dé  sez>i*llierr*.f  e.  /hi  alu,  oua 
/cuzes    de  silea-  e  mevcAad.v Krr/i^ios  de  «w/r 


X   <d  17fC ae  vi" de  Ccce/Za, 


//WJim<r«á».e  c^rvtmtccs   /*stfi /m+nctrw,  e/c 
T\*rrv%4l>$(f)  duéruátUê  fM&  *cr&  <&  ramal ok- 


277 

as  duas  cxcellentcs  facas  de  silex,  que  figuro  na  estampa  xxiv 
com  os  n.os  1  e  2,  um  fragmento  de  outra,  uma  grande  enxó  de 
schisto  amphibolico  (n.°  1)  de  0m,29  de  comprimento,  embora 
infelizmente  fracturada,  e  mais  outra  do  comprimento  de  0m,162, 
muito  perfeita,  que  na  mesma  estampa  é  indicada  sob  o  n.°  2. 
Todos  estes  instrumentos  foram  logo  entregues  pelo  sr.  dr.  Trin- 
dade ao  distincto  cónego  vice-reitor  do  seminário  episcopal,  o 
rev.d0  Joaquim  Maria  Pereira  Botto,  secretario  geral  do  instituto 
archeologico  do  Algarve. 

Estes  actos  de  dedicação  pelas  antiguidades  nacionaes  hon- 
ram os  homens  que  os  praticam  e  abonam  em  subido  grau  a  sua 
intelligencia  a  patriotismo. 

Nada  mais  por  emquanto,  que  me  conste,  se  tem  colligido  da 
estação  neolithica  de  Gacella.  Alli  chegarei  um  dia,  e  talvez  sem 
necessidade  de  recorrer  ao  auxilio  de  certas  repartições,  onde 
ainda  hoje  o  conceito  em  que  são  tidos  taes  descobrimentos,  não 
vae  muito  mais  longe  do  que  o  d'aquelles,  de  ennevoados  be- 
stuntos, que  quebraram  famosas  facas  de  silex  para  talharem  pe- 
dras de  ferir  lume  para  os  cigarros!  Estes  últimos,  emfim,  não 
sabem  o  que  fazem,  ao  passo  que  os  outros  não  fazem  o  que  de- 
viam saber. 

Torre  dos  Frades. — A  uma  antiga  torre  octogonal,  que 
ainda  ha  poucos  annos  se  via  erguida  como  alterosa  vigia,  de  con- 
strucção  mui  provavelmente  árabe,  distando  3  kilometros  a  nor- 
deste da  igreja  de  Cacella  e  uns  1:800  metros  da  raia  do  ocea- 
no, deu  o  povo  a  denominação  de  « Torre  dos  Frades » ,  por  estar 
em  meio  de  um  terreno  que  pertenceu  aos  frades  de  S.  Paulo 
de  Tavira.  Passando  depois  ao  domínio  particular,  quando  o  di- 
reito de  associação  foi  neste  paiz  outorgado  a  todas  as  classes 
sociaes  com  excepção  das  ordens  religiosas,  o  proprietário,  talvez 
duplamente  affrontado  com  aquella  torre,  por  ter  sido  de  frades 
e  de  mouros,  mandou  arrazal-a  e  no  mesmo  logar  edificou  uma 
habitação  campestre,  que  ninguém  vô  de  longe,  seguindo  assim  o 
exemplo  dos  conquistadores  do  Algarve,  que  não  quizeram  dei- 


278 

xar-nos  de  pé  um  único  monumento  da  sumptuosa  architectura 
civil  e  religiosa,  com  que  a  opulenta  civilisação  mahometana  se 
tinha  representado  n'esta  parte  da  península. 

Desappareceu  pois  a  Torre  dos  Frades,  outr'ora  dos  mouros, 
mas  deixou  vinculado  o  nome  que  o  povo  achou  e  lhe  deu,  em 
todo  aquelle  sitio  actualmente  dividido  em  muitas  propriedades 
ruraes,  comquanto  deva  entender-se  não  ser  anterior  ao  século 
xvii,  por  isso  que  d'esse  tempo  data  a  fundação  do  convento  de 
S.  Paulo;  e  assim  continuará  a  ser  proclamado,  emquanto  a  ca- 
mará de  Villa  Real  de  Santo  António  não  se  lembrar  de  dedicar 
aquelle  sitio,  que  ainda  pelo  nome  recende  a  frades,  ao  nome  de 
alguma  celebridade  da  sua  circumscripção,  que  mais  se  tenha 
distinguido  na  travessia  do  Guadiana,  depois  de  ter  conseguido 
confiscar  ao  padroeiro  Santo  António  a  consagração  da  villa, 
substituindo  o  nome  do  santo  pelo  de  algum  outro  santo  de  mais 
recentes  milagres,  como  tem  feito  a  municipalidade  metropoli- 
tana do  nosso  continente  branco,  trocando  designações  locaes 
com  tradições  históricas,  que  deviam  estar  escriptas  com  letras 
de  ouro,  nos  seus  annaes,  para  que  nunca  se  apagasse  a  memo- 
ria dos  que  foram  martyres  da  pátria  e  da  fé,  ou  que  com  seus 
feitos,  já  esquecidos,  tinham  por  único  monumento  commemo- 
rativo  o  rotulo  epigraphico  de  uma  rua  corrente. 

A  habitação  d'essa  grande  área  de  terra  não  é  porém  obra  de 
frades  nem  de  mouros;  mouros  e  frades  edificaram  sobre  minas 
wisigothicas  e  romanas  e  os  próprios  romanas  já  alli  acharam  restos 
de  outros  predecessores  antiquíssimos,  e  tantos  d'esses  restos  havia 
ainda  então,  que  nem  ás  successivas  invasões  nem  a  passagem  de 
dezenas  de  séculos  os  poderam  totalmente  destruir,  como  vou  mo- 
strar com  as  estampas  das  construcções  paleoethnologicas  que  des- 
cobri e  com  as  dos  artefactos  da  sua  synchronica  industria;  o  que 
não  deixou  de  ser  um  tanto  difficil,  porque  o  lavor  agrícola  tem 
arrazado  todos  os  apparentes  vestígios  d'esses  vetustos  edifícios, 
que  só  poderão  achar-se  talvez  em  apreciável  estado  de  conser- 
vação nos  planos  outr'ora  inferiores,  onde  as  inundações  têem 
deposto  os  detritos  desaggregados  dos  pontos  adjacentes  mais 


279 

altos,  formando  depósitos  alluviaes  e  camadas  sedimentares  de 
varias  espessuras,  que  tudo  estão  encobrindo. 

Quando  em  1877  fiz  o  reconhecimento  geral  para  o  levanta- 
mento da  carta  archeologica,  percorri  o  sitio  da  Torre  dos  Fra- 
des, já  meu  conhecido,  onde  em  23  de  outubro  de  1865  tinha 
achado  isolada  na  terra  lavrada  uma  conta  de  calaite  ao  abai- 
xar-me  a  colher  uma  planta  para  o  meu  berbario.  D'alli  tinha  eu 
recebido  por  offerecimento  do  sr.  António  Marcellino  Madeira  três 
instrumentos  de  pedra  polida  de  fórma  pyramidal,  um  espheroide 
de  pedra,  crivado  de  orifícios,  e  dois  vasos  de  barro  quasi  preto, 
sendo  um  de  suspensão;  mas  não  vi  indicio  algum  de  obra  pre- 
histórica.  Além  d'estes  objectos  tinha  obtido  uns  machados  de 
pedra,  também  achados  n'aquelles  terrenos  em  trabalhos  ruraes, 
o  que  me  levou  a  presumir  que  deviam  pertencer  a  um  deposito 
mortuário,  cujo  pavimento  estaria  intacto,  porque  tão  fundo 
nunca  teriam  chegado  a  enxada  e  o  arado.  Tendo  porém  em 
vista  as  instrucções  que  me  tinham  sido  dadas  pelo  governo, 
de  me  limitar  ao  exame  das  antiguidades  locaes  assignaladas 
por  vestígios  apparentes,  não  ousei  emprehender  pesquiza  al- 
guma. 

Ficou-me  todavia  em  lembrança  aquelle  sitio,  e  mais  me 
convenci  de  que  não  laborava  numa  simples  preoccupação,  sup- 
pondo  n'elle  haver  uma  estação  prehistorica,  quando  recebi  de 
Aljezur  um  vaso  de  suspensão,  de  menores  dimensões,  mas  idên- 
tico na  fórma  ao  que  fora  achado  em  1876  na  Torre  dos  Frades; 
e  dei  a  estes  vasos  uma  certa  importância  local,  por  não  haver 
ainda  então  noticia  de  terem  apparecido  em  paiz  algum  da  Eu- 
ropa. Havia  apenas  mais  um,  que  o  perspicaz  Emilio  Gartailhac 
me  communicou  ter  descoberto  na  secção  geológica  de  Lisboa. 
Findas  as  sessões  do  congresso  em  1880,  fui  especialmente  pe- 
dir informações  ácêrca  do  dito  vaso  observado  por  Gartailhac; 
mas  Carlos  Ribeiro  affirmou-me  nunca  tal  cousa  ter  visto,  e  com- 
tudo  já  o  tinha  mandado  estampar  na  memoria  que  naquelle 
mesmo  anno  a  academia  das  sciencias  lhe  publicou  sob  o  titulo 
de  « Noticia  de  algumas  estações  e  monumentos   prehistoricos*, 


280 

saindo  porém  o  desenho  tâo  imperfeito,  que  o  original  continuou 
a  ficar  desconhecido. 

Não  desisti  do  intento.  Passados  cinco  annos  voltei  em  busca 
do  referido  vaso,  por  ser  de  todo  o  ponto  importante  para  a  clas- 
sificado dos  dois  do  Algarve  saber  em  que  condições  de  epocha 
tinha  sido  achado  o  da  secção  geológica.  Tive  emfim  a  fortuna 
de  descobril-o,  andando  alli  a  examinar  outros  diversos  objectos, 
acompanhado  do  distincto  naturalista,  o  sr.  Gotter,  a  quem  logo 
o  indiquei. 

O  vaso  de  suspensão  da  secção  geológica  foi  achado  com  ou- 
tros muitos  objectos  e  ossos  humanos  na  serra  de  Cintra?  dentro 
de  um  dolmen  coberto,  de  camará  circular  e  corredor  alongado,  exi- 
stente no  sitio  da  Folha  das  Barradas,  pertencente  á  quinta  regio- 
nal, e  foi  o  sr.  Gagliardini  quem  salvou  da  destruição  aquelle 
monumento,  e  offereceu  a  Carlos  Ribeiro  os  objectos  que  conti- 
nha, convidando-o  a  ir  completar  a  exploração.  O  dito  vaso  en- 
trou com  todos  os  mais  artefactos  nas  galerias  da  secção  geoló- 
gica, não  sendo  percebidos  os  quatro  furos  que  atravessavam  a 
espessura  da  superfície  convexa  superior  junto  ao  bordo  da  sua 
abertura  circular,  e  assim,  sob  o  n.°  95,  foi  representado  na  dita 
memoria,  onde  tudo  é  descripto  desde  a  pagina  78  em  diante, 
dizendo  Carlos  Ribeiro:  «Com  estes  depojos  estavam  também 
objectos  de  cerâmica  como  tigellas  e  pequenos  vasos  dos  quaes 
dão  idéa  as  quatro  figuras  92  a  95  desenhadas  nos  dois  terços 
da  grandeza  natural.  São  de  barro  grosseiro  e  fabricados  sem 
auxilio  da  roda  de  oleiro. » 

Do  estudo  que  Carlos  Ribeiro  fez  na  quinta  regional  de  Cin- 
tra a  convite  do  sr.  Gagliardini,  deduz-se  que  o  monumento  da 
Folha  das  Barradas  representa  rigorosamente  o  período  neolithi- 
co,  sendo  notável  a  similhança  da  sua  planta  (fig.  82)  com  a  de 
quasi  todos  os  dolmens  cobertos  do  Algarve. 

Já  mostrei  que  o  vaso  de  suspensão  de  Aljezur  pertencia  a 
uma  estação  verdadeiramente  neolithica :  resta-me  agora  descre- 
ver os  monumentos  que  descobri  na  Torre  dos  Frades. 

Tendo  ficado  observados  os  pontos  que  havia  proposto  para 


281 

a  exploração  complementar,  entre  aquclles  que  no  meu  trajecto 
fui  descobrindo  e  deixando  sem  estudo  algum,  por  não  terem  sido 
auctorisados,  cheguei  ao  sitio  da  Torre  dos  Frades,  onde  logo 
tratei  de  pedir  informações  com  referencia  aos  terrenos  em  que 
tinham  apparccido  artefactos  prehistoricos.  Relativamente  ao  vaso 
de  suspensão,  sabia-se  apenas  ter  sido  achado  em  1876  na  cerca 
de  D.  Maria  dos  Martyres  e  Silva. 

Com  a  estampa  xxvi  á  vista  se  perceberá  facilmente  o  que 
vou  expender. 

Observei  minuciosamente  todo  o  terreno  e  notando  haver  nas 
proximidades  do  vallado  que  corre  no  alinhamento  da  azinhaga 
uns  fragmentos  soltos  de  louça  dolmenica,  determinei  um  corte 
com  mais  de  1  metro  de  largura  no  parallelo  do  vallado,  e  che- 
gando a  uns  0m,60  de  profundidade,  appareceram  mais  fragmen- 
tos de  louças.  Logo  pouco  abaixo  achei  uma  soleira  de  terra  ba- 
tida e  muito  apertada  com  0m,80  de  largura  e  mais  adiante, 
em  distancia  de  5m,20  no  rumo  de  su-sudoeste,  manifestou-se  outra 
soleira  com  a  mesma  largura  de  0m,80,  no  mesmo  eixo  transver- 
sal da  primeira.  Mandei  abandonar  o  corte  e  encaminhar  o  tra- 
balho pelo  seguimento  das  soleiras,  tanto  para  es-nordeste  como 
para  oessudoeste,  as  quaes  proseguiam  perpendicularmente  á 
azinhaga  e  já  iam  chegando  á  linha  externa  do  vallado  da  cerca, 
quando  começaram  a  manifestar  maior  amplitude  e  uma  configu- 
ração circular. 

Emfim,  tinha-se  chegado  a  dois  pavimentos  que  abrangiam 
toda  a  largura  da  azinhaga,  achando-se  no  centro  cio  pavimento 
do  primeiro,  a  nor-noroeste,  um  machado  polido  de  schisto  am- 
phibolico,  como  eram  quasi  iodos  os  de  Aljezur,  fragmentos  de 
ossos  e  de  louças,  assim  como  algumas  lascas  dispersas  de  cal- 
careo  rijo  e  de  schisto  stratiíicado,  entre  as  quaes  appareceram 
também  pequenos  restos  de  placas  da  mesma  rocha  com  signaes 
de  gravura.  A  outra  crypta  circular,  a  su-sudoeste,  continha 
cinco  craneos  esmagados  e  mais  dois  inteiros,  rigorosamente  do- 
lichocephalos,  muitos  ossos  partidos,  entre  os  quaes  havia  alguns 
húmeros  furados  na  cavidade  olecraneana  e  libias  tirante  a  pia- 


282 

ticnemicas,  assim  como  muita  louça  feita  pedaços,  toda  de  rude 
fabricação.  Foi  então  que  a  proprietária  da  cerca  e  uns  trabalha- 
dores se  recordaram  de  ter  sido  no  logar  em  que  descobri  o  de- 
posito A,  indicado  na  planta,  que  se  tinham  achado  em  1876  os 
mencionados  objectos. 

Os  jazigos  da  azinhaga,  figurados  na  estampa  xxvi,  foram 
abertos  e  formados  por  excavação  na  rocha  natural,  como  o  havia 
sido  o  famoso  deposito  de  Aljezur,  com  a  configuração  geral  de 
quasi  todos  os  dolmens  cobertos  da  região,  compondo-se  simples- 
mente de  crypta  ou  camará  circular,  e  de  uma  galeria  ou  corredor, 
que  também  se  abriu  por  excavação.  O  maior  diâmetro  da  crypta 
nos  dois  monumentos  mediu  lm,50  e  ambas  as  galerias  tinham 
0m,80  de  largura,  não  se  podendo  saber  qual  foi  a  extensão  que 
tiveram,  por  estarem  destruídos  os  átrios,  assim  como  não  é  pos- 
sível avaliar- se  a  primitiva  altura  interna,  por  terem  os  monumen- 
tos sido  cortados  e  a  terra  emparelhada  para  a  cultura  desde 
tempos  antigos. 

Os  ditos  depostos  não  soffreram  somente  os  estragos  produ- 
zidos pela  enxada  do  agricultor,  mas  os  dos  invasores  que  alli 
foram  procurar  os  thesouros  pertencentes  aos  sepultados;  pois 
sobre  esses  pavimentos,  aonde  a  enxada  nunca  chegou,  tudo  es- 
tava reduzido  a  bocados,  com  excepção  dos  ditos  craneos,  que 
mal  se  poderia  explicar  como  ainda  se  conservavam  inteiros,  se 
não  estivessem  cheios  de  terra  endurecida. 

Um  facto  assaz  singular  denuncia  a  invasão  n'aquellas  man- 
sões mortuárias ;  pois  havendo  sete  craneos  numa  d'ellas,  deve- 
riam também  achar-se  os  ossos  correspondentes  a  igual  numero 
de  indivíduos,  e  comtudo  bem  poucos  alli  jaziam. 

O  systema  de  enterramento  em  tão  apertado  espaço,  tendo 
sido  o  da  inhumação,  só  pode  conceber-se  que  tivesse  podido 
effeituar-se  com  os  cadáveres  dobrados  pelas  articulações  dos 
fémures  e  encostados  em  torno  do  espaço  excavado,  como  parece 
deprehender-se  da  situação  figurada  na  planta,  letra  B,  em  que 
achei  os  craneos,  ou  então,  que  os  enterramentos  se  fizeram  em 
cistos,  passando-se  depois  os  ossos  para  aquelle  deposito;  mas 


283 

eram,  como  disse,  tão  poucos  os  ossos,  que  mais  provavelmente 
pode  julgar-se  que  os  invasores  os  expelliriam  para  melhor  pro- 
curarem os  instrumentos  que  os  acompanhavam,  sendo  porem 
mui  notável  terem  ficado  os  craneos,  embora  alguns  invertidos, 
numa  disposição  relativamente  symetrica. 

A  estampa  xxm,  pertencente  á  collecção  geral  dos  instru- 
mentos de  pedra  isolados,  representa  com  a  figura  2  a  forma  dos 
que  foram  achados  numa  parte  da  galeria  do  monumento  A. 
São  três  rijos  picões  periformes  de  quartzo,  rematados  em  extre- 
midade ponfaguda;  nenhum  d'elles  denota  sensível  indicio  de 
trabalho,  podendo  assim  presumir-se  que  fossem  armas  de  mão, 
como  mui  bem  podiam  igualmente  ser  encabados.  O  seu  golpe, 
dirigido  por  braço  robusto  e  adestrado,  seria  terrível.  Não  rece- 
beram ainda  nomenclatura  alguma  estes  instrumentos,  de  que 
achei  outros  similhantes  em  vários  pontos,  e  iaes  são  o  do  Serro 
do  Haver,  no  concelho  de  Lagos,  figurado  sob  o  n.°  1  na  es- 
tampa iv,  e  outro  do  Monte  de  Roma,  concelho  de  Silves,  repre- 
sentado com  o  n.°  3  na  estampa  xm. 

Foram  aquelles  três  instrumentos  totalmente  preparados  em 
pedra  de  amolar,  mas  estão  revestidos  de  um  envolucro  tão  es- 
pesso, que  não  é  possível  verificar  a  natureza  mineralógica  da 
rocha  a  que  pertencem  senão  por  uma  pequena  falha,  que  um 
d'elles  tem.  A  photographia  reduziu  um  tanto  as  suas  dimen- 
sões. E  porém  notável  estarem  todos  reunidos  e  acompanhados 
de  um  espheroide  de  pedra,  figurado  na  mesma  estampa  com  o 
n.°  3,  crivado  de  buracos  assaz  fundos,  mas  sem  communicação 
alguma  entre  si.  Não  ouso  aventurar  conjecturas  acerca  do  ser- 
viço a  que  poderia  ter-se  applicado  uma  tal  pedra,  cujos  bura- 
cos não  foram  certamente  feitos  com  os  ditos  instrumentos 
ponfagudos,  poisque  na  sua  extremidade  aguçada  não  ha  ver 
estrias  nem  attrito  produzido  por  acção  de  rotação. 

Ha  muitos  outros  instrumentos  do  sitio  da  Torre  dos  Frades, 
taes  como  percutores,  machados,  pontas  de  frecha,  facas,  etc. 
Tudo  isso  está  reservado  nas  minhas  ultimas  collecções,  espe- 
rando a  occasião  de  poder  reorganisar  o  museu. 


284 


Já  me  referi  ao  descobrimento  de  uma  porção  de  limonite, 
que  appareceu  no  logar  que  devia  ter  occupado  a  galeria  ou  cor- 
redor do  primeiro  dolmen  coberto  da  azinhaga,  figurado  na  es- 
tampa xxvi,  e  a  respeito  d'este  achado  expendi  também  as  con- 
jecturas que  me  occorreram,  sabendo-se  que  a  limonite  é  uma 
das  tintas  mineraes  que  com  frequência  se  teem  encontrado  em 
muitas  outras  estações  neolithicas. 

Cerâmica.  —  Numerosos  fragmentos  de  louça  appareceram 
nas  excavações  que  dirigi  quando  foram  descobertos  os  monu- 
mentos tumulares  representados  na  estampa  xxvi.  Vendo  porém 
que  não  era  possivel  reunil-os  para  deixarem  representar  a  con- 
figuração das  urnas  a  que  tinham  pertencido,  não  os  colligi. 


N.°l 


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JFreyutzta  de  úatzl&i  \ 

Tbrre  dos  Ihzdes  ^ 

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Peri&é    cfâelizÂ//v  a<? 


o~Jx*çk  mui-  lá**  -zé 
sc&tsio,  assertoe  ttojpatri- 
tnenéo  dez  erypfe  entre 
a calçada . 


a* 


^ 


escala  1100 


285 

O  vaso  de  suspensão,  que  sob  n.°  1  vae  figurado,  mostra  ser 
de  barro  escuro;  mas  não  se  podem  distinguir  os  elementos  da 
sua  composição,  por  estar  inteiro  e  coberto  de  lustrosa  patina, 
que  parece  repassada  de  uma  substancia  gordurosa.  E  formado 
por  dois  corpos  convexos  de  secção  circular,  ligados  n'um  bordo 
commum,  abatido  e  alisado,  com  o  diâmetro  de  0m,186,  sendo 
superiormente  aberto  em  boca,  também  circular,  cujo  diâmetro 
mede  0m,090.  Junto  do  bordo  da  abertura  é  horisontalmente 
atravessado  na  sua  espessura  por  quatro  furos  dispostos  em  cruz, 
por  onde  seriam  enfiados  os  cordões  para  poder  ser  suspenso  á 
feição  de  lâmpada.  Tem  de  altura  0m,070,  e  em  geral  o  duplo 
das  dimensões  do  de  Aljezur,  sendo,  como  este,  fabricado  sem  o 
auxilio  do  torno:  Acerca  dos  usos  que  teriam  tido  os  vasos  d'esla 
forma,  já  expendi  as  arriscadas  conjecturas  que  me  occorreram, 
e  por  isso  escusado  é  repetil-as. 

A  urna  n.°  2  achou-se  partida;  mas  deixa  conhecer  a  sua 
forma  e  dimensões.  E  hemispherica  desde  a  base  até  o  bordo  sa- 
liente, cujo  diâmetro  mede  0m,122,  onde  assenta  um  gargalo 
ligeiramente  retrahido  em  cannelura  muito  aberta,  com  quatro 
azas  adherentes  e  dispostas  em  cruz.  Tem  0m,98  de  altura  total. 
Em  toda  esta  província  não  descobri  outra  louça  da  mesma  con- 
figuração. 

Além  dos  dois  monumentos  figurados  na  estampa  xxvi, 
appareceu  mais  um  para  reforçar  os  meus  conceitos. 

A  estampa  xxvn  representa  um  terceiro  monumento  a  pouca 
distancia  dos  da  azinhaga  que  dá  passagem  para  o  caminho  pu- 
blico. Está  situado  no  logar  do  Arrife,  em  propriedade  de  Ma- 
nuel Gil  Cardeira,  cuja  casa  de  habitação  se  acha  a  noroeste  em 
distancia  de  310m,70,  ficando-lhe  a  oeste  o  moinho  de  vento  de 
José  Pires  Padinha. 

Os  construetores  cortaram  um  outeiro  e  n'elle  exeavaram 
todo  o  âmbito  do  deposito  que  destinavam  para  abrigo  dos  seus 
morlos  mais  dilectos,  dando-lhe  a  configuração,  que  chega  a  ser 
typica  em  toda  a  região,  e  que  também  prende  pela  forma  com 
a  do  deposito  da  Folha  das  Barradas,  em  Cintra,  a  que  Carlos 


286 

Ribeiro,  tendo  visto  alli  numerosos  enterramentos,  deu  o  simples 
nome  de  sepultura. 

A  planta  mostra  exactamente  o  que  existia  d'esse  monumento 
funerário  por  mim  explorado  em  29  de  julho  de  1882.  Estava 
quasi  arrazado.  O  diâmetro  longitudinal  mediu  3m,70  e  o  trans- 
versal 4m,18,  não  conservando  a  galeria  de  entrada  senão  a  ex- 
tensão apreciável  de  2m,78  com  a  largura  de  lm,35.  O  compri- 
mento total  existente  deu  6m,48,  podendo  presumir-se  que  não 
teria  tido  menos  de  10  metros  de  comprimento  até  o  átrio. 
O  plano  da  excavação  foi  todo  revestido  de  grandes  lages  de 
schisto,  de  que  só  restavam  na  crypta,  e  já  partidas,  as  bases  de 
seis,  e  na  galeria  somente  quatro,  afora  as  dos  batentes  a  que 
encostaria  uma  porta  que  ficava  a  2  metros  de  distancia  da 
entrada  da  camará,  cuja  soleira  era  inteiramente  calçada  de 
pedra  miúda,  emmoldurando  para  o  lado  de  su-sueste  uma 
lage  de  schisto  quadrilonga  com  0m,90  de  comprimento  e  0m,60 
de  largura,  sobre  a  qual  havia  alguns  ossos  reduzidos  a  fra- 
gmentos, pedaços  de  louça,  uma  ponta  de  frecha  de  silex, 
(estampa  xxvm,  fig.  1)  e  uma  lasca  de  osso  (n.°  7)  atravessada 
por  um  orifício  e  terminada  em  ponta,  deixando  perceber  que 
sobre  aquella  reservada  superfície  tinham  sido  depositadas  algu- 
mas relíquias  humanas  de  maior  veneração.  Achei  o  eixo  d'este 
monumento  na  orientação  de  es-nordeste  para  oes-sudoeste,  dia- 
metralmente opposta  á  dos  depósitos  da  azinhaga,  cujo  átrio 
apontava  para  oes-sudoeste;  o  que  bem  mostra  que  n'aquelles  tem- 
pos ainda  não  existia  preceito  algum  no  rito  funerário  em  rela- 
ção a  orientações,  do  mesmo  modo  que  também  ainda  não  tinha 
observância  na  idade  do  bronze,  como  mostrarei  no  segundo  vo- 
lume d'esta  obra. 

Poucos  artefactos  havia  já  no  mui  destruído  dolmen  coberto 
do  Arrife:  appareceram  pedaços  de  ossos,  uma  mandíbula  incom- 
pleta de  individuo  orthognata  com  as  coroas  dos  dentes  arraza- 
das,  três  pontas  de  frecha  de  silex  (fig.  1  a  3),  seis  fragmentos 
de  facas  (fig.  4  e  5),  um  perfeito  machado  de  schisto  amphibo- 
lico  junto  ao  batente  do  lado  de  nor-noroeste,  pequenos  pedaços 


<5**iJl£a/-43Í4u/ M  tytcid**  -IWXXVI/ 


Est.xxvin 


Zith.ogr-a.-ph.ict  da  Imprensa.  Neuiona-l. 


287 

de  laminas  de  schisto  que  parece  terem  tido  gravura,  e  muitos 
bocados  de  louças  misturados  com  lascas  de  schistos  e  calca- 
reos.  As  facas,  as  frechas,  o  machado  e  a  lamina  de  osso  repre- 
sento na  estampa  xxvm.  O  machado  compete  a  um  dos  grupos 
dos  de  Aljezur,  e  é  da  mesma  rocha  a  que  pertence  a  maioria 
dos  instrumentos  d'aquelle  notável  deposito. 

Com  este  monumento  surgiu  mais  uma  confirmação,  que  attesta 
a  solução  do  problema  que  mui  audaciosamente  me  propuz  re- 
solver, descobrindo  monumentos  neolithicos  acompanhados  de 
critérios  similhantes  aos  de  Aljezur,  onde  d'elles  não  havia  um 
único  indicio  apparente.  E  não  foram  só  estes  os  critérios  locaes 
da  ultima  idade  da  pedra;  ha  outros;  mas  darei  aqui  especial 
cabimento  a  dois  instrumentos,  que  mui  presumptivamente  per- 
tencem a  um  diverso  monumento,  que  deixo  reservado  para  futu- 
ros exploradores. 

Appareceu  avulso  na  terra  lavrada  um  perfeitíssimo  macha- 
do, todo  desengrossado  pelo  attrito,  de  schisto  crysíallino,  se  como 
julga  o  distincto  naturalista  o  sr.  A.  Bensaude,  não  é  de  uma 
rocha  amphibolica.  É  achatado;  a  sua  secção  transversal  dá 
uma  perfeita  ellipse;  o  fabricante  formou-lhe  gume  cortante  um 
tanto  arqueado,  mas  não  chegou  a  afilar-lhe  o  corte,  porque  tal- 
vez não  o  destinasse  a  cortar  cousa  alguma,  e  sim  para  ser,  em 
usos  funerários,  o  simulacro  de  consagração  do  famoso  instru- 
mento que  desde  as  mais  remotas  tradições  representava  o  tra- 
balho humano,  embora  um  tanto  diversos  na  forma  fossem  os 
das  primeiras  alvoradas  da  industria  do  homem.  É  pois  um  instru- 
mento digno  das  mais  apuradas  collecções.  Mede  de  compri- 
mento 0m,146,  de  largura  máxima  0m,046,  e  de  espessura 
0m,021.  Appareceu  num  rego  aberto  pelo  arado.  Abençoada 
lavoura ! 

Outro  perfeitíssimo  machado  trouxe  o  dente  do  arado  á  flor 
da  terra,  e  veiu  todo  avermelhado,  ou  antes  saturado  das  argil- 
las  vermelhas  do  logar,  a  ponto  de  encobrir  com  este  envolucro 
a  natureza  mineralógica  da  rocha  a  que  pertence.  Confesso  que 
não  o  entendi;  o  que  não  me  admira,  porque  no  conceito  do 


288  _ 

atilado  mineralogisla  o  sr.  Bensaude  ainda  ficou  duvidoso,  ape- 
sar de  ter  ensaiado  o  reconhecimento  da  rocha  por  um  processo 
chimico,  fazendo  só  uma  pequena  brecha  por  não  ousar  maltratar 
um  objecto  de  tão  singular  aspecto,  que,  a  primera  vista,  parece 
ser  de  madeira  e  não  de  pedra.  O  sr.  Bensaude  deduziu  da  ana- 
lyse,  a  que  era  possível  chegar,  o  seguinte  conceito:  «Rocha  par- 
dacenta, com  indícios  de  schistosidade  rocha  crystallina  meta- 
morphica. »  Julga  emfim,  que  seja  uma  grammatite  schisiosa.  É  o 
único  instrumento  d'esta  feição  encontrado  em  todo  o  Algarve; 
nem  eu  vi  outro  assim  em  alguma  das  collecções  de  instrumen- 
tos neolithicos  do  território  nacional. 

Não  levarei  mais  longe  a  enumeração  dos  artefactos  da 
Torre  dos  Frades;  além  d'estes  ainda  possuo  outros,  porém  me- 
nos recommendaveis,  e  por  isso  omitto  a  sua  descripção.  Ficam 
reservados  para  a  reorganisação  do  museu.  Melhor  será  tel-os  á 
vista  do  que  descriptos.  E  esta  uma  das  principaes  vantagens 
que  dão  os  museus  que  não  são  organisados  á  similhança  de 
armazém  de  adelo,  ou  de  um  salão  elegante,  em  que  só  imperam 
os  dictames  do  bom  gosto. 

Abrirei  aqui  um  parenthesis  para  incluir  outro  instrumento, 
que  foi  achado  avulso  entre  as  estações  de  Gacella  e  da  Torre 
dos  Frades,  no  sitio  das  Vendas  Novas.  Se  não  foi  o  arado,  seria 
a  enxada  que  o  pôz  á  luz  do  sol,  de  que  esteve  ausente  durante 
milhares  de  annos.  E  uma  enxó  de  rara  perfeição,  que  tendo 
sido  aperfeiçoada  em  pedra  de  grés,  foi  depois  totalmente 
brunida  e  lustrada.  Com  mais  fino  polimento  não  será  fácil 
achar-se  outra.  Todo  o  seu  revestimento  apresenta  uma  cor  cin- 
zento-clara,  que  não  deixaria  reconhecer  a  rocha  a  que  pertence, 
se  não  tivesse  junto  ao  gume  uma  pequena  falha  de  recente 
data.  O  sr.  Delgado,  a  quem  mostrei  este  bello  instrumento,  jul- 
gou ser  de  hjdite,  rocha  de  que  só  achei  um  machado  em  Alje- 
zur, sendo  por  isso  notável,  em  vista  da  sua  raridade,  encon- 
trar-se  ao  mesmo  tempo  representada  nas  duas  extremidades  do 
Algarve.  Mede  pois  a  bellissima  enxó  de  hjdite  das  Vendas  No- 
vas 0m,078  de  comprimento,  0m,043,  na  maior  largura  e  0m,017 


c289 

de  espessara.  Yae  figurada  sob  o  n.°  1  na  estampa  xxiv  perten- 
cente á  serie  dos  instrumentos  avulso  existentes  no  museu. 

Nas  proximidades  de  Cacella  e  da  Torre  dos  Frades  não  é 
só  o  sitio  das  Vendas  Novas  que  deixou  presumir  a  existência  de 
monumentos  ncolithicos.  No  mesmo  caso  estão  o  Ribeiro  da  Mor- 
tinha, Santa  Rita,  Alçarias  de  S.  Bartholomeu  c  mais  alguns 
logarcs;  o  que  deixa  perceber  ter  havido  muita  habitação  n'aquel- 
les  terrenos. 

No  segundo  volume  mostrarei  os  descobrimentos  que  fiz  na 
Torre  dos  Frades  em  relação  á  idade  do  bronze. 

Estava  portanto  provado  haver  sido  oceupado  aquelle  terri- 
tório na  ultima  idade  da  pedra  por  um  povo  que,  além  de  saber 
construir  monumentos  dolmenicos  sob  tumidi,  usava  também 
fazer  depósitos  por  simples  exeavação  sem  o  emprego  de  mono- 
lithos  que  os  revestissem  internamente,  comquanto  se  deva  en- 
tender que  a  cobertura  d'esses  depósitos  não  podia  prescindir  de 
grandes  lages,  embora  já  nenhuma  alli  existisse;  o  que  não  é  de 
admirar  numa  localidade  em  que  tantas  construcções  de  casas 
e  muros,  como  hoje  tem,  obrigariam  os  proprietários  a  procura- 
rem o  material  mais  próximo  para  as  suas  obras. 

Ha  de  pois  entender-se  que  toda  aquella  região  era  oceupada 
por  um  povo  da  mesma  origem  ethnica,  desde  as  raias  da  costa 
occidental  até  o  flanco  oriental,  limitado  pela  margem  direita  do 
rio  Guadiana;  que  usava  construcções  diversas  para  os  seus  de- 
pósitos funerários,  ora  servindo-se  de  enormes  monolithos  para 
architectar  solemnissimos  abrigos  consagrados  ao  repouso  e  á 
memoria  dos  mortos,  ora  limitando-se  a  excaval-os  com  as  suas 
poderosas  enxós  de  schisto  amphibolico  nas  localidades  em  que 
a  rocha  permittia  um  tal  trabalho,  ou  em  que  não  havia  possi- 
bilidade de  se  recorrer  ao  auxilio  do  megalitho.  Para  assim  se 
julgar,  bastará  saber  que  os  soterrados  em  Aljezur  e  na  Torre 
dos  Frades  eram  dolichocephalos,  usavam  louças  idênticas  na 
forma,  serviam-se  de  instrumentos  de  pedra  polida,  ornavam- se 
com  placas  de  schisto  gravadas,  e  também  faziam  uso  de  facas  e 
pontas  de  frecha  de  silex,  como  verifiquei  no  monumento  do  Arrife. 

19 


290 

Pertenciam  pois  aquclles  conslrucíores  á  velha  raça  synchro- 
nica  das  faunas  cxtinlas  e  parcialmente  emigradas,  á  raça  que 
assistiu  ás  grandes  convulsões  cósmicas  dos  tempos  post-plioce- 
nos,  raça  que  ainda  não  dava  indicio  da  mescla  brachycephala 
que  se  diz  ter  invadido  a  Europa  na  ultima  idade  da  pedra, 
abandonando  a  Ásia  menor,  a  Arménia  e  o  Cáucaso,  d'onde  se 
affirma  ter  trazido  novas  industrias  e  usos  novos,  que  todavia  se 
manifestam  nas  próprias  plagas  em  que  o  typo  ethnico  era  pu- 
ramente dolichocephalo ! 

Castro  Marim. — A  noroeste  d'esta  villa,  proximamente  a  1 
kilometro  de  distancia,  descobriu  em  1870  o  sr.  António  Men- 
des, collector  da  secção  geológica,  uns  megalithos,  que  lhe  pare- 
ceram pertencer  a  um  dolmen  destruído,  por  ter  visto  alguns 
ainda  erguidos  a  pino,  embora  não  tão  bem  ordenados  que  dei- 
xassem perceber  qual  havia  sido  a  primitiva  configuração  do 
monumento,  cuja  existência  julga  poder  attestar,  pois  que,  fa- 
zendo alli  uma  excavação,  extrahiu  alguns  ossos  humanos,  que 
trouxe  para  a  secção  geológica,  e  entre  elles  uma  tibia  de  sec- 
ção transversal  tirante  a  platicnemica,  assim  como  um  grande 
vaso  de  forma  hemispherica  e  um  percutor  de  grés  fino  com- 
pacto, de  forma  circular,  determinado  por  dois  planos  ligeira- 
mente convexos,  tendo  cada  um  d'elles  uma  cavidade  central, 
que  serviria  para  apoio  dos  dedos,  ou  talvez  para  a  prepara- 
ção de  tintas;  e  achou  também  um  fragmento  de  placa  de 
schisto  com  um  sulco  marginal  em  cada  um  dos  lados,  for- 
mando angulo  recto,  mas  sem  indicio  de  gravura.  Todos  estes 
objectos  observei  eu  na  secção  geológica,  no  armário  51.°,  es- 
tante 3.a  O  dito  percutor  tem  no  seu  maior  diâmetro  0m,095, 
sendo  de  0m,088  o  que  o  corta  perpendicularmente  e  de  0m,026 
o  eixo  da  sua  espessura  entre  as  cavidades  centraes. 

Julgo  portanto  não  poder  duvidar  de  que  alli  tivesse  existido 
um  dolmen  coberto,  cujo  túmidas  já  destruído  deixasse  á  vista 
alguns  esteios,  como  suecedeu  no  serro  da  Pedra,  perto  de  Salir; 
nem  seria  fácil  ter-se  illudido  o  sr.  António  Mendes,  explorador 


291 

sisudo  c  atilado,  a  quem  a  secção  geológica  deve  descobrimentos 
importantíssimos  de  dolmens  e  cavernas,  e  farta  colheita  de  pro- 
duclos  archeologicos  por  elle  conquistados  a  esses  recônditos 
esconderijos  durante  o  seu  largo  e  proveitoso  tirocínio  de  explo- 
rador experimentado,  não  obstante  o  seu  nome  não  ter  sido 
ainda  citado  cm  memoria  alguma  daquellas  em  que  os  seus  des- 
cobrimentos e  os  lhesouros  archeologicos,  devidos  ás  explorações 
que  tem  feito,  são  figurados  e  descriptos  por  mestres  abalisados, 
mas  sem  que  a  respeito  do  seu  nome  se  haja  proferido  uma 
única  palavra  de  louvor,  como  eu  neste  livro  tenho  feito,  citando 
sempre  os  homens  beneméritos  que  me  têem  auxiliado  com  os 
seus  descobrimentos  e  outros  bons  serviços;  e  porque  não  posso 
deixar  de  obedecer  a  este  preceito  de  probidade,  cito  aqui  o 
sr.  António  Mendes,  a  quem  recorri  para  lhe  pedir  os  esclareci- 
mentos que  ficam  registrados,  quando  me  constou,  casualmente, 
haver  elle  feito  uma  exploração  nos  arredores  de  Castro  Marim. 

Percorri  eu  em  1877  os  escampados  que  circumdam  o  serro 
em  que  se  vê  erguido  o  antigo  e  já  um  tanto  desfigurado  castrum 
que  deu  nome  á  villa,  ainda  angulado  no  seu  quadrilátero  primi- 
tivo por  quatro  torres  de  base  circular,  que  D.  Affonso  III  achou 
quando,  segundo  a  sua  legenda  cpigraphica,  mandamt  populare 
Crasíi  Marin;  mas  não  encontrei  vestígios  apparentes  de  dolmens, 
comquanlo  toda  a  região  abunde  em  machados  e  outros  instru- 
mentos de  pedra,  como  se  verá  quando  descrever  os  que  obtive 
no  Sobral,  em  Alçarias,  em  S.  Bartholomeu,  na  Espargosa,  em 
Piza  Barro,  na  Zambujeira,  e  até  dentro  da  própria  vilia,  onde 
o  rev.d0  prior  Lúcio  Floro  Martins  me  offereceu  um  machado  que 
fora  extraindo  do  poço  publico,  e  outro  encontrado  na  demolição 
de  uma  casa,  o'  qual,  em  vista  do  seu  corte  inteiramente  abatido 
e  polido,  pode  dizer-se  que  passou  á  classe  dos  brunidores.  Este 
perfeito  instrumento,  inteiramente  polido,  é  de  rocha  quartzosa 
com  manchas  de  um  mineral  decomposto  que  se  deixa  riscar 
pelo  ponteiro  de  aço.  Mede  de  comprimento  0m,071,  de  largura 
0,n,036  e  na  maior  espessura  0m,24. 

Na  carta  prehistorica  não  foi  indicada  a  estação  neolithica  a 


292 


noroeste  de  Castro  Marim,  porque  já  estava  impressa  quando  re- 
cebi a  noticia  de  ter  sido  descoberta  em  1870  pelo  sr.  António 
Mendes,  cujo  nome,  por  isso  mesmo  que  ninguém  o  tem  querido 
citar,  registro  aqui  com  particular  satisfação,  porque  ás  suas  mui 
acertadas  pesquizas  deve  a  sciencia  valiosas  manifestações. 


Serro  do  Castello. —  É  um  dos  serros  de  Almada  do  Ouro, 
pertencente  á  freguezia  do  Azinhal,  dos  mais  desviados  da  mar- 
gem direita  do  rio  Guadiana.  Está  situado  ao  sul  da  ribeira  de 
Beliche  e  ao  norte  da  ribeira  do  Tanoeiro.  Na  sua  maior  altura 
acha-se  um  dolmen,  que  foi  coberto,  com  a  crypta  ainda  reve- 
stida de  grandes  e  toscas  lages  de  schisto,  medindo  de  compri- 
mento lm,40  e  de  largura  lm,10.  O  corredor  ainda  conserva 
algumas  lages  formando-lhe  os  flancos,  mas  perdeu  uma  parte 
da  sua  extensão  primitiva. 

Actualmente  o  comprimento  total  interno  é  de  2m,20.  Estava 
completamente  despejado.  Os  pastores  de  gado  arranjam  alli  seu 
abrigo  contra  as  chuvas  e  sol  e  lá  dentro  accendem  lume  para 
aquecer  as  comidas.  Mandei  tirar  as' pedras  soltas  que  lhe  co- 
briam o  pavimento  e  junto  d'elle  e  nas  terras  que  enchiam  as 
aberturas  resultantes  dos  monolithos  não  se  ajustarem  nos  seus 
planos  de  contacto,  achei  alguns  fragmentos  de  ossos  humanos, 
um  pedaço  de  faca  de  silex  e  vários  restos  de  louça  igual  á  de 
todos  os  dolmens  neolithicos,  entre  os  quaes  vieram  alguns  que 
certamente  soffreram  a  acção  das  fogueiras  que  os  pastores  lá 
costumam  fazer,  por  mostrarem  haver  sido  queimados  e  serem 
achados  no  cinzeiro,  não  porque  se  tivesse  empregado  a  crema- 
ção naquelle  deposito  mortuário,  pois  que  os  ossos  extrahidos 
das  fendas  a  que  me  referi  não  tinham  o  mini  mo  indicio  de 
fogo. 

Com  alguns  fragmentos  de  louça  está  aquelle  monunento  re- 
presentado no  museu,  faltando  porém  o  bocado  de  faca  de  silex, 
ou  porque  se  perdeu,  ou  mais  provavelmente  por  se  ter  misturado 
com  outros  fragmentos  da  Marcella. 


293 

O  dolmen  coberto  do  serro  de  Caslello,  como  facilmente  se 
notará,  tem  uma  configuração  similhante  ao  do  sitio  da  Nora. 

Por  emquanto  são  os  únicos  de  tal  forma  verificados  no  Al- 
garve. O  de  serro  de  Caslello  differe  pois  de  todas  as  constru- 
cções  sepulcraes  que  nos  outros  cabeços  de  Almada  do  Ouro  até 
quasi  á  ribeira  do  Vascão  fui  achando  isoladas  ou  formando  pe- 
quenas necrópoles  já  pertencentes  á  idade  do  bronze,  como  se 
verá  no  segundo  volume  d'esta  obra.  Não  pertence  pois  ao  género 
cisto,  que  caracterisa  aquellas  sepulturas  quasi  quadradas,  tirante 
a  quadrilongo,  cuja  maior  extensão  interna  medeia  entre  0m,85 
e  lm,20. 

Foi  sem  duvida  alguma  um  dolmen  sob  tumulus,  embora  de 
minguadas  dimensões,  e  pode  julgar-se  pertencente  á  ultima 
idade  da  pedra,  em  vista  dos  seus  fragmentos  de  louça,  por  con- 
star terem  naquelle  serro  apparecido  alguns  machados  de  pedra, 
o  que  não  havia  nos  cistos  dos  serros  de  Almada  do  Ouro  mais 
próximos  da  corrente  do  rio,  e  porque  finalmente  o  trajecto  dos 
monumentos  neolithicos  íVesta  parte  oriental  da  província  mo- 
stra ler  corrido  no  rumo  de  noroeste,  partindo  de  Castro  Marim 
pelo  serro  de  Castello  em  direcção  a  Vaqueiros,  de  que  em  se- 
guida vou  dar  algumas  noticias. 

Já  eu  tinha  notado  que  os  cistos  isolados  e  as  pequenas  ne- 
crópoles da  idade  do  bronze  pertencem  a  uma  linha  que  se  appro- 
xima  da  margem  direita  do  Guadiana,  partindo  dos  montes  da 
Zambujeira  pelo  corte  do  Guadiana  para  Almada  do  Ouro  e 
d'alli  para  Alcoutim  até  o  Valle  de  Nossa  Senhora,  onde  achei 
a  ultima  necrópole  da  epocha  do  bronze,  como  se  verá  no  imme- 
diato  volume  d'esta  obra. 

A  planta  do  dolmen  do  serro  de  Castello  foi,  por  lapso,  reu- 
nida á  de  dois  serros  de  Almada  do  Ouro,  e  por  isso  tem  de 
passar  para  o  segundo  volume.  Ficando  porém  já  descripto  o  mo- 
numento, cuja  orientação  corre  de  su-sueste  a  nor-noroeste,  não 
faz  aqui  falta. 


294 

Vaqueiros.  —  O  rev.do  prior  da  freguezia  de  Vaqueiros  en- 
viou-me  noticia  de  varias  antiguidades  na  área  da  sua  circum- 
scripção,  e  mais  especialmente  de  haver  uns  cabeços  de  montes, 
perto  da  igreja,  em  que  estão  cravadas  no  chão  e  erguidas  a 
prumo,  muitas  pedras  altas  formando  circuito. 

Quando  estive  no  concelho  de  Alcoutim,  pedi  esclarecimentos 
concernentes  ás  antiguidades  locaes  de  cada  freguezia,  mas  ne- 
nhuns obtive  então  da  de  Vaqueiros,  Foi  ha  pouco  tempo  que 
tive  noticia  d'aquellas  pedras,  que  bem  parece,  a  ser  exacta,  re- 
presentarem construcções  do  género  cromlech.  Advirlo,  finalmente, 
que  em  razão  das  informações  que  em  1877  me  deram  de  Va- 
queiros, entendi  ser  inútil  ir  alli  fazer  um  reconhecimento  no 
terreno. 

Não  posso  affirmar  se  aquellas  pedras  constituem  um  monu- 
mento prehistorico,  ou  se  foram  postas  mais  ou  menos  moderna- 
mente para  algum  fim  particular.  Entretanto,  scp  levado  a  julgar, 
que  nas  proximidades  da  igreja,  quer  seja  nos  cabeços  dos  mon- 
tes circumvizmhos,  ou  n'outros  logares,  ha  com  effeito  sufficientes 
provas  de  occupação  prehistorica;  pois  o  sr.  António  de  Paula 
Serpa,  empregado  na  direcção  das  obras  publicas  do  districtode 
Faro,  obteve  da  aldeia  de  Vaqueiros  mui  interessantes  artefactos 
de  pedra  polida,  taes  como  enxós  de  dois  typos,  machados,  e  um 
fragmento  de  placa  de  schisto  com  orifício  junto  ao  bordo  supe- 
rior. 

O  conjuncto  d'estes  três  característicos  já  se  viu  ser  con- 
stante nas  estações  neolithicas  a  que  me  tenho  referido,  e  por 
isso,  comquanto  ainda  não  possa  dizer  que  ha  por  alli  dolmem 
cobertos,  cromlech,  ou  quaesquer  outros  monumentos,  em  vista 
dos  artefactos  de  pedra,  assim  como  de  outros  mais  que  só  agora 
consta  terem  apparecido,  forçoso  ó  presumir,  que  nas  proximida- 
des da  igreja  de  Vaqueiros  deve  existir  uma  estação  prehistorica. 
Procurem-n'a  os  futuros  exploradores,  que  mais  de  um  monu- 
mento mui  provavelmente  hão  de  achar. 

Por  emquanto  limito-me  a  figurar  nas  duas  seguintes  estam- 
pas os  objectos  que  o  sr.  Serpa  confiou  ao  meu  estudo, 


Ik  _ZÍZF 


Concelho  dd/c^uéirri 


Ccll.  c&  &  <J  P&erfxt 


Eu  XXX 


295 

Na  estampa  xxix  mostro  o  perímetro  de  Ires  machados  de 
schisto  amphibolico,  parcialmente  polidos  com  as  suas  secções 
longitudinaes  correspondentes.  Já  ficou  descripto  este  typo,  que 
forma  um  plano  oval  no  corte  transversal.  Todos  devem  ter  sido 
encabados,  mas  mui  principalmente  o  terceiro,  cujo  sulco  hori- 
sontalmente  aberto  cm  canncllura  está  visivelmente  polido  do 
attrito  exercido  pela  ligadura  que  o  prendeu  a  um  cabo.  Os 
instrumentos  de  pedra  com  este  característico  são  já  conhecidos 
em  Portugal  e  alguns  descobri  no  Algarve,  mas  não  são  vul- 
gares. 

Parece  ser  a  America  a  grande  região  em  que  elles  predo- 
minam. A  este  respeito  refere  o  sr.  Florentino  Ameghino  na  sua 
memoria  intitulada  Uhomme  préhistorique  dans  la  Plata  {,  que 
no  interior  da  republica  argentina,  a  partir  de  San  Luis,  Córdova 
e  Mendoza  até  ás  fronteiras  da  Bolívia,  se  acham  machados  de 
pedra  polida  diversos  dos  da  Europa  e  doUruguay,  por  terem 
um  sulco  na  face  superior  que  servia  para  se  poderem  ligar  nos 
cabos,  sulco  que  também  circumda  inteiramente  alguns  instru- 
mentos ou  occupa  apenas  três  quartas  partes  da  sua  circumfe- 
rencia,  approximando-se  este  typo  do  que  é  frequente  no  Mé- 
xico. 

Na  estampa  xxx  a  fig.  1  representa  parte  de  uma  enxó  po- 
lida do  mesmo  schisto  amphibolico  e  das  mesma  forma  das  de 
toda  a  região  algarviense,  com  faceta  obliqua  e  estreita  formando 
o  corte;  o  instrumento  n.°  2  é  de  fibrolite,  todo  polido,  e  per- 
tence ao  grupo  das  enxós,  mas  as  suas  minguadas  dimensões  só 
permittem  suppôr-se  haver  sido  destinado  a  serviços  delicados, 
ou  com  preferencia  a  symbolisar  aquelle  poderoso  instrumento 
de  trabalho  só  em  usos  funerários,  se  o  gume  cortante  não  desse 
indícios  de  ter  tido  algum  uso.  Numa  gruta  da  Cesareda  des- 
cobriu o  sr.  Delgado  uma  outra  pequena  enxó  de  fibrolite,  pouco 
maior  que  a  de  Vaqueiros,  a  qual  pôde  ver-se  na  secção  mine- 


Revue  cTanlhropologic,  deuxième  série,  tomo  n,  pag.  210  a  249.  (1879) 


296 

rálogica  da  escola  polytechnica  de  Lisboa,  acompanhando  outros 
instrumentos  achados  na  Casa  da  Moura. 

Os  n.os  3  e  4  representam  o  segundo  grupo  das  enxós  de 
pedra,  cujo  corte  não  tem  faceta  determinada,  por  ser  produzido 
por  dcsengrossamento  decrescente.  O  n.°  5  indica  um  fragmento 
de  placa  de  schisto  com  orifício,  mas  sem  gravuras,  parecendo 
estar  em  via  de  preparação.  Este  esboço  tem  estrias  nas  duas 
faces,  provenientes  do  attrito  da  pedra  em  que  foi  desengrossado; 
faltava-lhe  pois  ser  brunido  para  a  gravura.  Este  facto,  já  obser- 
vado em  algumas  estações  neolithicas,  vem  talvez  mostrar,  que 
estes  objectos,  de  que  não  ha  noticia  em  paiz  algum  da  Europa, 
eram  obra  artística  de  um  povo  que  vivia  nesta  região  geogra- 
phica  na  ultima  idade  da  pedra. 

Nada  mais  tenho  colligido  ácêrca  da  freguezia  de  Vaqueiros, 
onde  o  apparecimento  de  tão  bons  característicos  neolithicos  pro- 
mettc  importantes  descobrimentos,  quando  se  possa  alli  fazer 
um  reconhecimento  archeologico.  Em  meu  entender  julgo  mui 
provável  haver  naquelles  terrenos  algumas  construcções  fune- 
rárias de  feição  similhante  áquellas  que  descobri  em  varias  loca- 
lidades d'esta  província. 

Junto  da  aldeia  também  ha  noticia  de  sepulturas  e  constru- 
cções romanas.  O  sr.  Serpa  obteve  d'alli  uma  urna  das  chamadas 
de  Sagunto  com  lavor  de  relevo  ornamental,  uns  medianos  bron- 
zes de  Cláudio  I  e  um  denario  da  familia  Porcia  (C.  CAT0), 
assim  como  dinheiros  árabes  dos  Al-Mohades  e  outros  de  ante- 
rior data;  o  que  bem  persuade  que  toda  aquella  accidentada  re- 
gião, situada  entre  as  grandes  ribeiras  de  Odeleite  e  da  Foupa- 
na,  fora  occupada  por  nacionalidades  distinctas  desde  tempos 
remotíssimos. 

São  dezoito  as  estações  neolithicas  que  consegui  descobrir 
em  todo  o  território  do  Algarve.  Nenhuma  era  conhecida  ante- 
riormente ao  levantamento  da  carta  archéologica,  de  que  fui  incum- 
bido pelo  governo.  Outras  muitas  podéra  ter  descoberto;  três  vezes 
mais,  pelo  menos.  Lá  ficaram  condemnadas  á  destruição,  por  não 
me  haver  sido  permittido  dispor  de  mais  tempo  e  dos  precisos 


297 

recursos  exigidos  por  um  trabalho  de  sua  natureza  moroso  c  obri- 
gado a  grandes  despendios.  Fiz,  porém,  o  que  eslava  ao  alcance 
dos  meus  esforços.  Oulros  virão  que,  mais  c  melhor,  saibam  e 
possam  chegar  até  onde  eu  pretendi  parar. 

Com  as  plantas  e  perfis  dos  monumentos  á  vista,  notam-se 
dois  typos  de  consírucção  com  algumas  variantes  c  duas  estações 
mortuárias  simplesmente  exeavadas  na  rocha  natural  sem  reve- 
stimento megalilhico  interno.  O  typo  predominante  é  porém  o  mo- 
numento de  crypta  polygonal  tirante  a  circular,  com  galeria 
rectangular  de  accesso,  começada  por  um  átrio,  sendo  dividida 
até  á  entrada  da  crypta  por  uma  até  três  portas.  E  proximamente 
esta  a  configuração  de  alguns  outros  dolmemjk  explorados  nou- 
tras  zonas  do  reino. 

Os  sepultados  n'estes  monumentos,  até  onde  foi  possível 
apreciarem-se,  manifestaram  pertencer  á  velha  raça  dolichoce- 
phala. 

As  armas  de  guerra,  os  instrumentos  de  trabalho,  os  utensí- 
lios de  uso  e  as  alfaias  de  ornamento,  se  pela  maior  parte  não 
divergem  mui  sensivelmente  dos  typos  mais  geraes  em  outras 
estações  synchronicas  da  Europa,  carecem  nos  seus  respectivos 
grupos  de  vários  artefactos  já  enumerados  no  cadastro  neolithico; 
mas  em  compensação  apresentam  outros  que,  ou  não  estão  ainda 
verificados  no  território  europeu,  ou  são  verdadeiramente  raros. 

E  no  continente  americano,  caso  notável,  que  se  acha  a  mais 
approximada  similhança,  e  até  inteira  paridade,  com  o  typo  ethnico 
mais  antigo  na  Europa  e  com  os  produetos  da  industria  d'esta 
extremidade  sul-occidental  nos  tempos  neolithicos! 

Veja-se  o  que  refere  o  celebre  sábio  de  Buenos  Ayres,  o 
sr.  Florentino  Ameghino,  na  sua  mui  substanciosa  resenha  das 
antiguidades  paleoethnologicas  da  America,  sob  o  titulo  de  Anti- 
quité  de  lliomme  dans  la  Plata,  publicada  na  Revue  tfanthropo- 
logie,  segunda  serie,  tomo  n  (1879). 

Os  factos,  que  vou  referir,  são  sobremaneira  assombrosos, 
tendo-se  diante  dos  olhos  o  atlas  do  velho  e  novo  continentes ; 
constituem  um  problema  elhnographico,  que,  geographieamente, 


298 

com  relação  á  cpocha  a  que  se  referem,  não  sei  explicar,  e  por 
isso  invoco  a  interpretação  dos  sábios. 

O  sr.  Àmeghino,  inventariando  o  pecúlio  industrial  argentino, 
situado  na  região  americana  mais  meridional  enlre  a  emboca- 
dura do  Rio  da  Prata  e  o  Estreito  de  Magalhães,  accusa  como 
typos  vulgares  n'essa  quasi  extremidade  da  terra  no  hemisphe- 
rio  opposto: 

1.°  Pontas  triangulares  de  lança  de  silex.  Estes  instrumentos 
são  indicados  pelo  sr.  de  Mortillet  como  tendo  uma  forma  espe- 
cial, que  só  se  encontra  em  Portugal.  O  sr.  de  Mortillet  viu  no 
museu  archeologico  do  Algarve  os  exemplares  por  mim  colli- 
gidos,  e  cita-os  no  seu  Musée  préhistoriaue. 

2.°  Machados  de  pedra  com  sulco  transversal  O  sr.  Àmeghino 
refere-se  a  estes  machados  com  sulco  na  face  superior,  tomando 
3/4  do  perímetro,  ou  rodeando  todo  o  instrumento,  e  diz  ser  um 
typo  dominante,  que  do  centro  da  republica  argentina  se  vae 
encontrando,  a  partir  de  San  Luis,  Córdova  e  Mendoza,  até  ás 
fronteiras  da  Bolívia,  differindo  assini  dos  da  região  dos  Pam- 
pas, dos  do  Uruguay  e  da  Europa,  e  accrescenta  que  o  mesmo 
typo  de  machados  sulcados  é  frequente  no  México. 

3.°  Placas  de  schisto  com  gravuras.  O  sr.  Àmeghino  relata 
haver  numa  collecção  de  artefactos  prehistoricos  do  Rio  Negro 
placas  de  schisto  com  gravuras,  umas  similhantes  e  outras  idên- 
ticas ás  que  lhe  foram  mostradas  em  Lisboa  por  Carlos  Ribeiro. 
Não  ha  noticia  d'estes  mysteriosos  artefactos  senão  em  Portugal 
e  na  America  do  Sul. 

4.°  Vasos  cerâmicos  de  suspensão.  As  louças  neolithicas  da 
região  meridional  da  America  do  Sul,  existentes  no  opulento 
museu  de  Buenos  Ayres,  de  que  é  distincto  director  o  sr.  F. 
P.  Moreno,  segundo  as  descreve  o  sr.  Àmeghino,  parecem 
ser  assaz  similhantes  ás  de  Portugal.  «La  plupart  de  ces  pote- 


29!) 

ries,  diz  o  sr.  Ameghino,  semblent  appartenir  à  des  marmites 
hémisphériques,  avec  ou  sans  goulot,  de  dimensions  fort  diffé- 
rentes.  On  trouve  encore  des  marmites  de  Irois  formes  diffé- 
rcntcs  et  des  pots  à  eau.  La  plupart  ont  des  trous  pour 
lcs  suspendre,  dautres  étaient  pourvues  d'anses  de  formes 
excessivement  varióes.» 

Todas  essas  formas  appareceram  nos  dolmens  cobertos  do  Al- 
garve, incluindo  os  vasos  de  suspensão  atravessados  de  orifícios, 
entre  os  quaes  figuram  os  fragmentos  de  outro  do  mesmo  género, 
mas  de  calcareo  branco  muito  fino,  achados  no  dolmen  dcAlcalá. 
Na  secção  geológica  ha  também  alguns  excellentes  vasos  de  sus- 
pensão. 

5.°  Ossos  intencionalmente  partidos  para  a  extracção  da  medulla. 
Alguns  ossos  achei  em  varias  estações  do  Algarve  longitudinal- 
mente partidos,  que  me  pareceu  poderem  ter  sido  assim  prepara- 
dos, tanto  para  o  aproveitamento  da  medulla  como  das  esquirolas, 
sendo  notável  que  em  maior  quantidade  apparecessem  em  Alcalá, 
onde  havia  graes  de  pedra  para  tintas,  pregos  de  osso  para  o 
penteado,  e  fragmentos  de  ponções.  Podiam  pois  ter  fornecido 
uma  substancia  gordurosa  para  a  preparação  das  tintas  e  maté- 
ria prima  para  os  artefactos  acima  indicados. 

6.°  Ocre  vermelho.  Diz  o  sr.  Ameghino  que  o  ocre  vermelho 
(limonite)  se  acha  entre  o  pecúlio  neolithico  do  grande  museu  de 
Buenos  Ayres,  devido  ás  explorações  que  o  sr.  Moreno  fez  na 
Patagonia1. 

No  Algarve  a  limonite  appareceu  na  estação  da  Torre  dos 


1  0  sr.  Moreno  descreve  os  seus  preciosos  trabalhos  no  volume  m  da  2.a  serie  da 
Reme  d'anlhropologie.  É  um  verdadeiro  benemérito  da  sciqncia!  O  sr.  Ameghino  honra 
a  sciencia  moderna  com  o  seu  nome,  que  ficará  sendo  uma  das  glorias  mais  assignala- 
das  de  toda  a  America!  Deste  ultimo  cantinho  do  mundo  envio  a  esses  dois  athletas  da 
sciencia  moderna,  e  a  todos  os  seus  confrades  nas  duas  florescentes  Américas,  um  en- 
thusiastico  preito  de  homenagem. 


300 

Frades  c  a  hematite  vermelha  na  de  Alcalá,  assim  como  o  cina- 
brio,  ou  sulphurelo  de  mercúrio,  na  da  Marcella. 

7.°  Typos  ethnicos.  As  collecções  anlhropologicas  que  o  sr.  Mo- 
reno reuniu  no  museu  de  Buenos  Ayres  representam  o  dolicho- 
ccphalo  no  periodo  neolithico.  A  este  respeito  refere  o  sr.  Ame- 
ghino,  que  a  exploração  feita  nos  cemitérios  indigenas  manifestou 
os  cadáveres  dobrados,  assim  como  grande  numero  de  craneos 
de  dois  typos,  o  bracbycephalo,  que  é  alli  o  mais  moderno  e  re- 
presentado pelos  indigenas,  e  o  dolichocephalo,  inteiramente  ex- 
tincto. 

Já  mostrei  que  o  typo  dominante  das  estações  neolithicas  do 
Algarve  é  o  dolichocephalo. 

São,  portanto,  muitas  e  mui  notáveis  as  analogias  existentes 
nas  estações  synchronicas  do  sul  de  Portugal  e  do  sul  da  Ame- 
rica Austral.  Esta  circumstancia,  se  não  fosse  um  facto  compro- 
vado, não  poderia  mesmo  imaginar-se! 

Explica-se  de  um  modo  comprchensivel  e  satisfactorio  a  exi- 
stência do  elephante  africano  em  meio  das  mais  antigas  alluviões 
quaternárias  do  Manzanares,  sabendo-se  que  na  primeira  epocha 
quaternária  a  fauna  e  a  flora  tinham  uma  tal  feição  de  identidade 
nas  duas  fronteiras  margens  da  grande  bacia  mediterrânica,  que 
bem  persuade  terem  ellas  estado  em  pleno  contacto,  como  cer- 
tamente estavam  antes  da  juneção  dos  dois  mares,  posterior- 
mente operada.  Estava  pois  franqueada  a  passagem  entre  o  flanco 
sul-oriental  da  Hispanha  e  o  do  norte-occidental  da  Africa. 

0  torrão  peninsular  podia  portanto  receber  e  alimentar  os 
indivíduos  da  fauna  africana.  Quando  porém  essa  passagem  se 
abateu  e  houve  a  juneção  do  Mediterrâneo  com  o  Atlântico,  o 
Elephas  africanas,  achando-se  clausurado  e  em  condições  clima- 
téricas já  fatalmente  adversas,  extinguiu-se.  A  epocha  da  sua  ex- 
tineção  está  geologicamente  definida  na  estação  de  Santo  Izidro, 
perto  clc  Madrid. 

0  continente  europeu  e  a  America  do  Norte,  havendo  grandes 
analogias  entre  as  suas  faunas  e  floras,  estiveram  em  mutuo  con- 


301 

taclo,  como  propõem  distinctos  naturalistas,  entre  os  quaes 
alguns  consideram  a  possibilidade  d'cssa  ligação  por  meio.  de 
uma  ponte  de  gelo  que  se  houvesse  formado  durante  a  epocha 
glaciaria.  Outros  preferem  marcar  o  trajecto  de  juneção,  como  é 
indicado  pelo  sr.  G.  de  Moi  tillet:  «Elle  a  eu  lieu  à  1'cpocjuc  cliel- 
léennc.  II  suffit  de  jeter  les  yeux  sur  un  globe  terrestre  pour  voir 
quellc  a  dú  s'opérer  par  les  Iles-Britanniques,  les  iles  Féroc, 
1'Islande  et  le  Groenland». 

Quanto  a  mim,  preferiria  aclmittil-a  na  região  polar  entre  a 
Sibéria  occidental  e  o  flanco  oriental  da  iVmerica,  pelo  Estreito 
de  Bering.  O  famoso  Atlas  do  sr.  Stieler's  indica  o  Estreito  de 
Bering  com  uma  largura  entre  75  e  100  kilometros  e  profundi- 
dade de  umas  30  braças.  Quem  observar  com  alguma  attenção 
o  Cabo  Príncipe  de  Galles  no  continente  norte-oriental  americano, 
e  na  Ásia  septentrional  o  fronteiro  Cabo  Ost,  não  pode  deixar  de 
ver  n'essas  duas  pontas  de  terra  os  restos  de  uma  ligação  entre 
os  dois  continentes,  um  tanto  similhante  ao  extenso  isthmo 
de  Panamá,  que  liga  as  duas  Américas.  E  qual  seria  a  causa  da 
destruição  d'essa  ponte  natural  de  15  a  20  léguas?  Seria  ella 
derivada  de  uma  acção  plutonica,  da  erosão  das  aguas,  ou  do 
suecessivo  embate  de  grandes  massas  de  gelo,  actuando  sobre 
aquella  estreita  garganta  que  ligava  as  altivas  frontes  d'esses 
dois  gigantes  coroados  de  gelos? 

O  grande  Cervus  Canadensis,  que  na  Europa  central  ainda 
existia  na  segunda  epocha  quaternária,  passou  a  viver,  como 
actualmente  vive,  nas  frigidas  regiões  da  America  do  norte.  Mas 
pouco  importa,  com  referencia  ao  assumpto  que  suggere  estas 
considerações,  indagar-sea  causa  de  tal  separação.  Tenha-se  ape- 
nas em  vista  que,  ainda  actualmente,  surgem  conjuncturas  em 
que  os  gelos  chegam  a  deter  as  grandes  correntes,  formando  en- 
tre os  dois  cabos  uma  crystallina  e  alterosa  montanha!  Se,  pois, 
este  phenomeno  glaciario  acompanha  os  tempos  que  vão  corren- 
do, porque  não  poderá  admittir-se,  que  no  período  neolithico, 
quando  os  topos  d'esses  dois  cabos  estariam  ainda  porventura 
menos  retrahidos,  igualmente  se  manifestasse? 


302 

Se  assim  foi,  como  hoje  é,  haveria  então  essa  immensa  ponte 
de  gelo,  que  poria  em  communicação,  embora  arriscada  e  diffi- 
cil,  os  dois  soberbos  continentes  do  novo  e  velho  mundo. 

Admittida  esta  hypoíhese,  que  favorece  a  concepção  da  pas- 
sagem do  norte  da  Ásia  pela  região  siberiana,  para  o  norte  da 
America,  e  bem  assim  a  do  transito  entre  a  Europa  e  a  Africa 
pelo  litoral  da  grande  bacia  do  Mediterrâneo,  postas  de  parte 
todas  as  questões  referentes  ás  difficuldades  praticas  e  ao 
tempo,  a  communicação  entre  os  três  continentes  não  seria  im- 
possível. 

Prefiro,  portanto,  como  parecendo-me  mais  praticável,  este 
meio  de  communicação  ao  da  naveta  ou  piroga  excavada  num 
madeiro,  julgando  que  um  tão  perigoso  vehiculo  não  podia  vencer 
as  duas  impetuosas  correntes  que  em  sentidos  oppostos  passam 
pelo  Estreito  de  Bering,  e  muito  menos  ganhar,  em  pleno  ocea- 
no, as  longínquas  distancias  que  se  contam  do  archipelago  bri- 
tannico  ás  ilhas  Feroé,  d'estas  á  Islândia,  e  da  Islândia  ao  Groèn- 
land. 

Emíim,  no  que  todos  mais  ou  menos  concordam  é  que,  com 
effeito,  houve  no  começo  dos  tempos  quaternários  uma  ligação 
entre  os  dois  continentes.  Não  ha  pois  que  admirar,  que  na  Ame- 
rica do  Norte  e  na  Europa  appareça  o  typico  instrumento  de  silex 
chelleano  em  condições  idênticas  e  em  períodos  synchronicos. 

Mas  todas  essas  pontes  de  passagem,  se  comprovadamente 
existiram  e  foram  utilisadas,  terminaram  com  os  tempos  geológi- 
cos, ou  já  não  existiam  quando  o  globo  terrestre  assumiu,  appro- 
ximadamente,  a  sua  configuração  actual. 

Portanto,  nos  tempos  neolithicos,  em  que  se  dá  a  identidade 
de  muitos  factos  concernentes  á  etimologia  e  á  ethnographia, 
tanto  no  sul  da  America  austral  como  no  sul  de  Portugal,  é  for- 
çoso entender-se  que  tantas  cousas  do  mesmo  género  e  lavor  não 
foram  casualmente  ideadas  ao  mesmo  tempo,  e  por  isso,  ou  uma 
das  regiões  foi  a  inventora  e  achou  meio  de  transmittir  á  outra 
as  suas  invenções,  ou  ambas,  tão  distantes  entre  si,  a  ponto  de 
existirem    em  diversos  hemispherios,  receberam  de  um  centro 


303 

commum  os  mesmos  prodactos  industriaes,  ou  o  ensinamento 
para  a  sua  fabricação. 

E  pois  o  que  parece  mais  plausível  e  racional;  mas  ainda 
assim  é  indispensável  que  um  d'esses  focos  de  irradiação  ellino- 
graphica  tivesse  meio  de  dar  passagem  aos  portadores  dos  seus 
produetos,  porque  de  outro  modo  não  podiam  apparecer  na  ultima 
extremidade  occidental  da  Europa  e  na  zona  meridional  das  duas 
Américas,  visto  que  alguns  também  são  frequentes  no  México. 

Parece  pois  não  poder  ser  contestado  o  facto  da  communica- 
ção  que  os  homens  neolithicos  acharam  e  utilisaram  entre  os 
continentes  europeu,  africano  e  americano,  não  obstante  já  esta- 
rem physicamente  separados. 

Affirma-se  não  se  ter  achado  nas  estações  geológicas  da  Eu- 
ropa e  da  America  senão  o  typo  da  raça  dolichocephala,  e  diz-se 
que  o  typo  brachycephalo  nos  ditos  continentes  só  se  tem  mani- 
festado nas  estações  neolithicas1. 

Registra-se,  emfim,  como  facto  de  grande  complexidade  nos 
tempos  neolithicos :  a  introducção  da  agricultura  com  o  trigo  e  a 
cevada,  que  distinctos  naturalistas  referem  ao  Oriente,  especiali- 
sando  o  Cáucaso  e  a  Pérsia;  o  conjuncto  de  varias  espécies  de  ani- 
maes  domesticados  que  se  acham  em  estado  selvagem  na  Ásia  Me- 
nor, na  Arménia  c  nas  vertentes  do  Cáucaso ;  o  sentimento  reli- 
gioso manifestado  por  diversas  superstições ;  o  enterramento  dos 
cadáveres,  até  então  não  usado;  o  rito  funerário;  a  architectura 
megalithica,  as  habitações  terrestres  e  lacustres;  as  armas  de 
guerra  e  de  caça  de  typos  inteiramente  originaes ;  instrumentos 
de  trabalho  de  formas  novas,  parcial  ou  totalmente  polidos  e 
de  cortes  afilados,  taes  como  enxós,  machados,  escopros,  goivas, 
assim  como  outros  muitos  de  differentes  géneros ;  a  introducção 
da  cerâmica;  a  invenção  do  pão,  do  queijo  e  das  bebidas  alcooli- 


1  Não  concordo.  Ao  ultimo  capitulo  mostrarei  a  anterior  antiguidade  do  typo  bra- 
chycephalo puro  no  território  portuguez.  As  classificações,  algumas  vezes  um  tanto  pre- 
cipitadas, já  não  poucos  erros  gravissimos  tècm  causado,  guiando  os  assumptos  a  con- 
clusões absurdas.  Esporo  pois  levar  a  eíteito  a  minha  demonstração. 


304 

cas;  a  galanteria  dos  adornos;  cmfim,  um  ajunctamenlo  de  gran- 
diosas novidades,  manifestando  uma  civilisação  adiantada  e  des- 
envolvida, que  apenas  parecia  conservar  raros  usos  e  costumes 
dos  tempos  anteriores,  e  que  de  todo  os  teria  desconhecido,  se  a 
raça  aborígene  dolichoccphala  não  tivesse  sobrevivido  a  todas  as 
grandes  convulsões  cósmicas  de  que  foi  paciente  testemunha  pre- 
sencial, e  que  ainda  existia,  qual  hoje  existe,  mas  protestando 
contra  tantas  theorias  de  evoluções  e  de  atavismos,  com  que  a 
levaram  até  o  ponto  de  lhe  darem  por  míseros  ascendentes  o  pa- 
voroso gorilla,  o  bruto  chimpanzé,  e  ainda  outro  animal,  já  menos 
bruto  (por  effeito  da  evolução!),  não  ainda  encontrado  na  natu- 
reza, é  verdade,  mas  mui  engenhosamente  e  somente  na  imagi- 
nação de  quem  o  quiz  crear  e  até  baptisar  com  a  crepitante 
antonomásia  de  anthropopitheco,  animal,  que  nos  seus  momentos 
de  ócio  se  entretinha  em  lascar  os  instrumentos  de  silex  que 
Carlos  Ribeiro  descobriu  nos  bordos  da  grande  bacia  lacustre 
que  refrescava  as  raizes  do  Monte  Redondo. 

Pretende-se,  portanto,  que  dos  asiáticos  viveiros  da  procreação 
humana,  onde  as  leis  da  evolução  (!)  tinham  completamente  trans- 
formado os  anthropoides  em  anthropopithecos,  estes  primeiros 
artistas  em  homens  dolicocephalos,  e  estes  ainda  imperfeitos  vi- 
ventes em  apurados  brachycephalos,  saíram  em  grupos  compa- 
ctos os  novos  povoadores  do  mundo,  tomando  orientações  diver- 
sas, e  não  parando  senão  onde  a  própria  terra  tinha  por  limite  a 
grandeza  dos  mares. 

Os  transfugas  chegaram  até  á  ultima  raia  de  terra  firme;  o 
viveiro  era  inexgotavel;  deu  para  tudo!  Saíram  com  o  espirito 
já  dominado  de  superstições;  mas  no  coração  d'esses  desertores 
é  que  ainda  não  tinha  raiado  o  sentimento  saudoso  da  pátria ; 
pois  não  ha  provas  de  torna  viagem.  A  pátria  ...  era  o  mundo! 

O  grupo  que  sabia  talhar,  polir  e  gravar  pedaços  de  schisto, 
lascar  pontas  triangulares  de  silex  e  fabricar  vasos  de  suspensão, 
dividiu-se  em  dois  bandos;  um  d'elles  não  saiu  do  seu  hemi- 
spherio  e  veiu  parar  nesta  zona  occidental  da  Europa,  e  o  outro, 
mais  audacioso  e  temerário,  passou  ao  hemispherio  opposto  e 


305 

chegou  até  á  extremidade  meridional  da  America  austral.  Mais 
para  o  sul  só  havia  a  Terra  do  Fogo. 

Será  este  o  modo  de  explicar  a  identidade  d'esses  produCtos 
industriaes,  que  ao  mesmo  tempo  apparecem  no  Algarve  e  na 
America  do  Sul?  Reservo  algumas  duvidas. 

O  Algarve  não  manifestou  ainda,  talvez,  os  seus  mais  im- 
portantes característicos,  tendo  ficado  por  explorar  as  numero- 
sas cavernas  do  litoral  marítimo  e  de  toda  a  região  central. 
Muito  se  deve  esperar  d'essas  explorações,  se  um  dia  houver 
quem  possa  e  saiba  fazel-as.  Reservem-se  para  então  as  conclu- 
sões. Por  emquanto  apenas  é  licito  descrever  o  que  está  desco- 
berto e  esperar  pelo  que  não  se  conhece. 


FIM  DO  VOLUME  I 


20 


«*!!* 


■*>*♦ 


WJíOlíTHNOLOWA 


E 


TEMPOS  PREHISTORICOS 


SEBASTIÃO  PHILIPPES  MARTINS  ESTACIO  DA  VEIGA 

Sócio  correspondente  da  academia  real  das  sciencias 

da  sociedade  de  geographia  de  Lisboa,  do  instituto  e  da  sociedade  broteriana  de  Coimlir. 

do  imperial  instituto  archeólogico  germânico  de  Roma,  da  sociedade  franceza 

de  archcologia,  da  real  academia  da  historia  de  Madrid,  da  sociedade  económica 

de  Málaga,  da  academia  de  archeologia  da  Bélgica, 

do  instituto  archeólogico  e  geographico  pernambucano,  colleclor 

e  fundador  do  museu  archeólogico  do  Algarve 


VOLUME  I 


LISBOA 

IMPRENSA   NACIONAL 


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GN 
836 

v.l 


Sstacio  da  Veiga,  Sebastião 
Philippes  Martins 
Paleoethnologia